“Proposta de Paz”de Putin-Trump (rendição da Ucrânia): retrato da crise da ordem imperialista mundial
28 pontos: uma Lista de Desejos de Putin, EUA lucrando com a rapina e um tapa na cara da União Européia
Em 20 de novembro, uma semana antes do tradicional feriado de Ação de Graças nos EUA, foi “vazado” pelo Governo Donald Trump um “rascunho” de “Proposta de Paz”, contendo 28 pontos, apresentado como uma proposta para pôr fim à guerra na Ucrânia. A invasão da fronteira ucraniana pelas tropas de Putin está perto de completar quatro anos (fevereiro de 2022), mas os conflitos nas regiões de fronteira entre os países já duram mais de uma década.
Esse “Rascunho” estava longe de ser alguma tentativa real de mediação, minimamente equilibrado e que pudesse servir de ponto de partida para um processo real de negociação. Seus 28 pontos apresentados foram definidos por grande parte da imprensa internacional como uma “Lista de Desejos” do regime Putin.
Na questão territorial, a proposta não apenas entrega à Rússia todas as áreas por eles ocupadas atualmente – mas ainda transfere para Moscou outras que estão sob controle militar ucraniano, como cerca de 15% da região de Donetsk, além de partes da região do Donbass (no Leste do país), incluindo o reconhecimento internacional da Criméia, Luhansk e Donetsk como russas. Mais que isso, a Ucrânia ficaria obrigada a limitar seu exército a até 600 mil integrantes, significativamente menor do que é hoje. Vale lembrar que a Ucrânia também “herdou” armamentos nucleares da antiga URSS, mas os entregou a Moscou no “Acordo de Budapeste” (1994), sob as garantias de Rússia e EUA de que teria sua soberania garantida por esses países. Até na guerra de narrativas o rascunho reflete a política de Putin: exigindo que cessem “as perseguições às populações de cultura russa” no que restar da Ucrânia e o “fim da propaganda neonazista” por aquele país.
O rascunho também inclui dentre seus 28 pontos uma divisão do espólio ucraniano. Pela proposta, 100 Bilhões de dólares dos recursos russos atualmente retidos pelas potências ocidentais (principalmente UE e EUA) seriam investidos na reconstrução da Ucrânia, explicitamente “sob a direção dos EUA”. O restante dos recursos retidos (aproximadamente mais 100 Bilhões) seria devolvido à Rússia, para investimentos conjuntos com os EUA em sua recuperação pós guerra. Ou seja, no terreno financeiro direto e indireto (reconstrução e saque das riquezas remanescentes da Ucrânia), os EUA são o grande beneficiado, e a Rússia recupera parte de seus recursos perdidos nesses anos de conflito. A União Européia ficaria apenas com a responsabilidade de colocar 100 Bilhões de dólares adicionais nesse “esforço de reconstrução” liderado pela Casa Branca.
O jornal britânico The Guardian publicou que, segundo especialistas, o rascunho parece ter sido redigido originalmente em russo e depois traduzido para o inglês – pela construção sintática das frases, o que não foi confirmado pelas autoridades estadunidenses.
O “vazamento” do rascunho produzido por Washington e Moscou, como era de se esperar, não foi bem recebido especialmente pelo governo ucraniano e pelas lideranças da UE. Logo após sua divulgação, Zelensky gravou um comunicado dizendo que a Ucrânia “estava diante da escolha entre perder sua dignidade ou seu principal aliado”, referindo-se aos EUA. Vale ressaltar que Zelensky vem enfrentando uma grave crise interna, com um escândalo de corrupção que recentemente contou com uma busca e apreensão pela polícia na casa de seu Chefe de Gabinete, Andrii Iermark – além do fato de estar com seu mandato expirado e não ter realizado eleições, devido ao andamento de guerra.
Genebra: nova proposta com 19 pontos e pouco avanço
No final de semana seguinte à divulgação do plano, o enviado especial dos EUA que participou da redação do rascunho Steve Witkoff, o Secretário de Estado Marco Rubio e uma delegação estadunidense foram à Genebra (Suíça) para discutir os 28 pontos. Também esteve uma delegação ucraniana comandada pelo Chefe de Gabinete do Governo da Ucrânia Andrii Iermark (o mesmo citado no escândalo do parágrafo anterior, e que foi demitido quando esse artigo era concluído). Nessa reunião, os 28 pontos foram modificados para uma nova lista com 19 itens, alterando alguns pontos como a demarcação territorial, restrições a forças armadas ucranianas e permissão de filiação à OTAN.
Líderes europeus e ucranianos celebraram os “avanços”, mas Putin imediatamente afirmou que a nova proposta não serve à Rússia, prossegue com os bombardeios e ataques militares. Witkoff deve ir a Moscou na primeira semana de dezembro apresentar as alterações de Genebra – mas não está claro um desfecho para a situação nem sequer seus próximos desdobramentos.
Trump: Redesenho da ordem imperialista mundial
No início desta guerra, havia um debate honesto dentro da esquerda internacional sobre as características do conflito. Por um lado, a óbvia agressão de Putin à Ucrânia – em sua política imperialista de “Grande Rússia” e com metodologia colonial de invadir territórios, anexar e explorar. Nesse sentido, o inegável repúdio à agressão de Putin e a defesa da soberania e integridade territorial da Ucrânia – sem com isso manifestar qualquer apoio político ao corrupto governo Zelensky, e muito menos à OTAN, Biden ou à UE.
Mas existe o debate que, pela posição da Rússia como principal aliado do novo imperialismo chinês, tal conflito teria adotado também elementos de guerra interimperialista (por procuração) entre EUA / UE (via OTAN) e China / Rússia. Isso explicaria os aportes financeiros e militares das potências ocidentais à Ucrânia bem como as sanções econômicas, financeiras e comerciais a Moscou – que já existiam desde o início do século mas tomaram proporções significativamente superiores. E aos aportes da China à economia russa, fundamentais para que essa pudesse resistir às sanções ocidentais, também em proporções não vistas até então. Essas diferenças na leitura do processo dentro da esquerda socialista internacional levaram a distintas nuances nas políticas de como responder ao processo – e são parte dos debates no movimento anticapitalista mundial.
Porém, a situação política mundial hoje é fundamentalmente distinta do que era até pouco tempo. Trump vem com o Projeto de redesenhar de forma categórica a ordem imperialista mundial, para fazer a “América Grande Novamente” – ou, em outras palavras, deter o avanço do imperialismo chinês. Para isso aposta no esvaziamento de organismos multilaterais e na configuração do imperialismo ocidental, vigentes desde o pós Guerra. E pode ter o projeto de tentar descolar Putin da aliança estratégica com a China e, pelo potencial nuclear herdado da URSS, estabelecer um novo pólo de dominação imperialista global. A apresentação dessa proposta é uma total capitulação política e militar a Putin costurada totalmente às costas de seus aliados tradicionais (Europa e OTAN), e mais uma prova inequívoca do momento transitório que estamos vivendo.
Estar com Putin é estar com Trump e a extrema-direita internacional.
Putin é uma figura central no surgimento e avanço das correntes neofascistas e de extrema-direita na última década. Não somente pelo que aplica em seu governo – autoritário, ultra nacionalista, expansionista e colonialista, como fez na Chechênia e agora faz na Ucrânia, seguindo a ideologia da Gran Rússia do ultra reacionário Alexander Dugin. E também pelas relações que estabelece com figuras e correntes de extrema-direita em nível internacional.
Desde a vitória do Brexit no referendo britânico em 2016 (a primeira manifestação de vitória dos setores de extrema-direita contra o establishment tradicional), à primeira vitória eleitoral de Trump nos EUA e a influência do Kremlin em correntes neofascistas. Como exemplos podemos citar a AfD alemã, que hoje é vista como preposto de Putin dentro do Bundestag (parlamento), a histórica conexão com figuras da ultra direita francesa como Le Pen e Zemmour (embora este último tenha dado algumas declarações condenando a invasão da Ucrânia) – e o recente caso do Reform UK, partido de Nigel Farage, que teve uma de suas principais figuras no País de Gales preso há poucos dias por espionagem e envolvimento com o governo russo. Outro exemplo é seu absoluto silêncio e complacência em relação ao genocídio que ocorre na Palestina.
Não há nada de progressivo no regime de Putin, como dizem algumas organizações de esquerda, gerando confusão e ilusão em diversos ativistas. Hoje, estar com Putin é estar com Trump e a extrema-direita internacional. Essa é nossa principal diferença com a posição das correntes campistas, que enxergam em Putin uma miragem “anti-imperialista”, por assumir posições que, ainda que momentaneamente, possam se chocar contra as principais potências imperialistas. O campismo (que tem seu nome derivado da “teoria dos campos”) é uma ideologia estranha ao marxismo, cartesiana, que reduz a análise de uma situação dialética e contraditória a um “Lado A / Lado B” de arquibancada. Isso leva a esquerda, invariavelmente, a derrotas e desmoralização.
O projeto da extrema-direita é o de uma sociedade menos democrática, mais autoritária e opressora, depredadora do meio ambiente e militarizada. Racista, xenófoba, intolerante, fundamentalista religiosa. Essa é a forma de estado que setores da burguesia e do imperialismo querem implementar para que seja possível aumentar a exploração dos trabalhadores e das populações – de forma a deter a queda nas taxas de lucro e deter a crise brutal do capitalismo mundial e do imperialismo. E o regime de Putin reflete perfeitamente esse projeto.