“Nós podemos reinventar o mundo”
No aniversário de seu nascimento, publicamos entrevista com o educador brasileiro em 1993 sobre a importância da esperança para as transformações.
O educador Paulo Freire não gosta de dar entrevistas. Ele reclama que a imprensa deturpa suas declarações. Ao anunciar o projeto pedagógico que pretendia implantar quando assumiu a secretaria Municipal da Educação de São Paulo, em 1989, um grande jornal paulista anunciou em manchete no dia seguinte: “A partir de agora, escrever errada será certo”.
Para superar essa resistência, Nova Escola teve uma ideia: que tal convidar o também educador Moacir Gadotti, amigo pessoal e chefe de gabinete do secretário Paulo Freire, para um bate-papo com ele? Isso traria a vantagem adicional de propiciar uma conversa mais aberta e mais rica, um diálogo entre dois educadores profundamente comprometidos com a transformação da escola brasileira.
Deu certo. E o resultado foi uma aula de vida, em que Paulo Freire coloca sua aguda inteligência para refletir sobre sua experiência como secretário da Educação, sobre os rumos do ensino público, sobre liberdade, sobre democracia, e sobretudo falar de sua esperança, que ele retrata no livro Pedagogia da Esperança – Um Reencontro cem a Pedagogia do Oprimido (Paz e Terra). A esperança de que é possível acabar com a opressão, com a miséria, com a intolerância e transformar o mundo num lugar mais gostoso e mais justo para se viver. “A esperança faz parte de mim como o ar que respiro”. define.
Mais importante educador brasileiro, conhecido e respeitado em todo o mundo, Paulo Freire já escreveu mais de 30 livros, entre eles Pedagogia da Oprimido, de 1968, um marco na pedagogia brasileira e que influenciou educadores em todas as partes do mundo. Aos 72 anos, Freire continua produzindo num ritmo impressionante. Desde que deixou a Secretaria, em 1991, já escreveu quatro livros – Educação na Cidade (Cortez), Professora Sim, Ta Não – Cartas a Quem Ousa Ensinar (Olho D’Água) e Política e Educação (Cortez), além de Pedagogia da Esperança. E está terminando o quinto, que se chamará Cartas a Cristina. Cristina é uma sobrinha, também educadora, com quem se correspondia nos tempos de exílio.
Por causa de sua pedagogia libertadora e sua militância política, Paulo Freire foi exilado após o golpe militar de 1964. Retornou ao Brasil em 1980, após a anistia. No exílio, desenvolveu projetos em vários países da América Latina, Europa e África, lecionou na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. A maior parte do tempo trabalhou para o Conselho Mundial de Igrejas, com sede em Genebra, na Suíça.
Nove anos depois do retorno, assumiu a Secretaria Municipal da Educação de São Paulo, na gestão da petista Luíza Erundina, cargo que ocupou por dois anos e meio. Acusações semelhantes às que lhe foram dirigidas durante o regime militar ele sofre agora da atual administração paulistana, chefiada por Paulo Maluf: a de desenvolver uma proposta pedagógica politizada e ideológica. Paulo Freire se defende dessas acusações nesse bate-papo com Moacir Gadotti, outro importante educador brasileiro, autor de 15 livros, dos quais os dois últimos – História das Idéias Pedagógicas (Ática) e Pedagogia da Práxis (Instituto Paulo Freire) – acabaram de ser lançados.
Moacir Gadotti – O brasileiro é um povo que vive de esperanças,só que uma atrás da outra vão embora, e sempre vem a frustração depois. Foi assim com as diretas já, com a Constituinte, com o Collor… Hoje vivemos um momento de incertezas, parece que o chão que pisamos está se movendo, e nós, no Brasil, não conseguimos enxergar a dia de amanhã. De onde vem essa esperança de que é possível transformar o mundo a que você se refere em Pedagogia da Esperança?
Paulo Freire – É uma pergunta que exige uma reflexão, mesmo que sucinta, em torno de nós próprios. O que estamos sendo no mundo João, Maria, Carlos? E não importa aí a classe social, embora esta tenha uma influência fantástica na forma como estamos sendo. Mas o que estamos sendo, por que estamos sendo, como estamos sendo, quem estamos sendo? Isso me permite fazer comparações. Por exemplo: olho agora o quintalzinho de minha casa e vejo outros seres também vivos, mas de ordem natural -uma jabuticabeira e o canil onde está o Jim, um pastor alemão -, e já poderia estabelecer comparações entre como eu estou sendo, como a jabuticabeira está sendo e como o Jim está sendo. Sem ir muito longe, eu chego a uma primeira conclusão, de que as relações que há entre eu e as minhas jabuticabeiras e entre eu e Jim não são as mesmas que há entre eu e você. Há uma qualidade diferente nessas relações. Segundo, eu posso tomar como referência, para me distinguir dos outros dois seres (o Jim e a jabuticabeira), que, embora os três seres sejamos finitos, inacabados, incompletos, imperfeitos, somente eu entre os três sei que somos finitos, inacabados e incompletos. A jabuticabeira não sabe. Ela tem outro tipo de saber.
É isso que você quer dizer quando escreve no livro que “eu sou esperançoso, por imperativo existencial”?
É isso também. Eu sou esperançoso porque não posso deixar de ser esperançoso como ser humano. Esse ser que é finito e que se sabe finito, e porque é inacabado sabendo que é inacabado, necessariamente é um ser que procura. Não importa que a maioria esteja sem procurar. Estar sem procurar é o resultado, é o imobilismo imposto pelas circunstâncias em que não pudemos procurar. Mas não é a natureza do ser. É por isso que quando as grandes massas sofridas estão, como eu chamo em Pedagogia da Oprimido, mais imersas do que emersas na realidade social, política e econômica, estão sendo proibidas de ser. Por isso é que elas ficam apáticas. A esperança não floresce na apatia. Cabe ao pedagogo, ao filósofo, ao político, aos que estão compreendendo a razão de ser da apatia das massas – e às vezes da apatia de si mesmos – a briga pela esperança. Eu não posso desistir da esperança porque eu sei, primeiro, que ela é ontológica. Eu sei que não posso continuar sendo humano se eu faço desaparecer de mim a esperança e a briga por ela. A esperança não é uma doação. Ela faz parte de mim como o ar que respiro. Se não houver ar, eu morro. Se não houver esperança, não tem por que continuar o histórico. A esperança é a história, entende? No momento em que você definitivamente perde a esperança, você cai no imobilismo. E aí você é tão jabuticabeira quanto a jabuticabeira.
A esperança é uma marca, é a expressão ontológica do ser humano?
A esperança é uma invenção do ser humano que hoje faz parte da nossa natureza que se vem constituindo histórica e socialmente. Ou seja, a esperança é um projeto do ser humano e é também a viabilização do projeto. Por isso é que os ditadores, tanto quanto podem, aniquilam a esperança das massas. Ora sob o susto, o medo, o pavor. Ora sob o assistencialismo. Eu não sou contra a assistência, porque não é possível você ver um homem morrendo e dizer que não dá pão porque é assistencial. Isso está errado, é um crime. O que não podemos ser é assistencialistas, quer dizer, transformar a assistência em uma estratégia. Mas como tática é absolutamente válida.
O que há de novo no novo livro e o que permanece de Pedagogia do Oprimido?
Permanece um monte de coisas. Além da crença, da esperança, permanece o respeito e a convicção da importância do papel da subjetividade. Quando os marxistas – e também os não-marxistas – de natureza de pensar puramente mecanicista me criticavam nos anos 70, me acusavam de ser idealista, kantiano, na melhor das hipóteses de neo-hegeliano, por causa de minhas propostas de conscientização que entravam em choque com aquelas idéias de que a superestrutura condiciona a consciência. Hoje estamos vendo emergir a crítica segura e séria a esse mecanismo de origem marxista, que não foi competente para explicar o próprio papel de sua luta contra o projeto capitalista – luta na qual anulou a presença do indivíduo, o gosto do indivíduo, o medo do indivíduo, o prazer do indivíduo.
Então você continua criticando esse mecanicismo que sustenta a tese da inexorabilidade do homem e de que há uma sucessão na história que inevitavelmente levará ao socialismo?
Claro. Veja como há uma contradição enorme nessa inexorabilidade: brigava-se pela inexorabilidade. Se a coisa vem de qualquer maneira amanhã, por que eu vou morrer hoje lutando por ela? Vou esperar. Esse mecanicismo deveria inclusive conduzir à apatia. E está provado que não é assim.
Veja que coisa engraçada: você diz na Pedagogia da Esperança que “a luta de classes não é o matar da história, mas certamente é um deles”. Você, que foi criticado na Pedagogia do Oprimido por não usar a expressão luta de classes, sabe que agora vai ser criticado porque está usando?
Isso é interessante. Sabe um dos riscos que a gente vai enfrentar no começo do milénio – e já está enfrentando hoje? E que muita gente de esquerda ficou de tal maneira inquietada com a queda do Muro de Berlim, que perdeu parâmetros e se sente imobilizada. Essas pessoas estão aturdidas diante da história precisamente porque pensavam que o amanhã era inexorável, e não tiveram tempo de se reconstruir e de se repensar.
Mas quais são esses riscos ?
Primeiro, de uma minoria dessas pessoas conseguir chegar ao poder e reativar em si, odientamente, o gosto stalinista. O segundo risco é de alguns desses que estão impactados caírem num imobilismo tal que passem a acreditar no discurso neoliberal de que a luta entre as classes sociais se acabou, de que a ideologia se acabou, de que a história se acabou. Esse segundo grupo constitui um perigo enorme para a própria progressividade, termina por dar força à maioria de direita e à minoria de esquerda que pretende reativar o stalinismo. Um terceiro risco que estamos correndo no começo do milênio em face de todo esse desarranjo histórico é exatamente o poder do neofascismo, que se assanha sobretudo na Europa, mas também no Terceiro Mundo (seja o surto de neonazismo em São Paulo, essas ameaças de fuzilar nordestinos, esse racismo de direita). É uma ameaça assustadora, que é de natureza material mas sobretudo espiritual, ideológica – o que não se via anteriormente. O educador não pode estar distante dessa preocupação. Isso tem que estar sendo discutido nas classes primárias, com linguagem de menino.
Você também tem se preocupado bastante com o sectarismo, não é?
Em Pedagogia da Esperança, eu retomo e avanço um pouco em relação à Pedagogia da Opressão, em que eu já havia feito a crítica do sectarismo. Lá, eu era radical e não sectário. Hoje eu me acho mais radical – e mais longe ainda da sectarização. Foi a experiência histórica, e portanto política e social, me ensinando que eu teria de me convencer de não estar mais tão certo de minhas certezas. Essa certeza da incerteza, da busca da incerteza, em vez de matar em mim a aventura da esperança, me levou mais para a aventura da esperança. Quer dizer, no momento em que eu descubro que não posso estar mais tão certo de minhas certezas, tenho a esperança de descobrir um pouco de luz na incerteza. Então, eu fico mais curioso, mais indagador, mais competente. E isso me levou necessariamente a ficar mais não-conciliador; de compreender o diferente, e não de negá-lo.
O que significa respeitar a diferença? É simplesmente, tomo diz a ideologia burguesa, respeitar o pobre, respeitar o negro…?
Trata-se de entrar na pele dele e aprender também.
No livro A Filosofia Mestiça (Nova Fronteira), que é fantástico, o educador francês Michel Serres afirma que todos nós somos mestiços e que não há nenhuma educação se não conseguir compreender – mais que compreender, assimilar – uma outra cultura que não a sua. Você concorda?
A posição que eu chamo substantivamente democrática parte pare compreender a necessidade. Não é como um favor. Eu tenho a necessidade de compreender um diferente de mim, se eu quiser crescer. Portanto, a minha radicalidade fenece no agora, Gadotti, momento em que eu me nego a compreender o diferente de mim. Segundo, quando eu compreendo o diferente descubro que há um diferente diferente, que há um diferente que é antagônico. Ou seja, ele é tão diferente de mim que não dá para dialogar comigo em termos profundos. Mas ao descobrir a possibilidade da existência do antagônico, que é o diferente mais radical, eu descubro também que até com o antagônico eu aprendo. E que, portanto, não posso me fechar sectariamente. No fundo, a minha briga não é contra contra os outros; é contra mim mesmo, no sentido de não me permitir cair na sectarização. E a sectarização é a negação do outro, é a negação do contrário, é a negação do diferente, é a negação do mundo, é a negação da vida. Quer dizer, ninguém pode continuar vivo se sectariza. Veja como o stalinismo era a antivida, como o nazismo é antivida. E a democracia só se autentica quando é vida. E esta só é vida quando é móvel, quando tem medo. É preciso se abrir ao máximo, às emoções, ao riso, aos desejos, inclusive a essa antivida que é o cientificismo. O cientificismo é uma antivida porque esse sonho de uma rigorosidade absoluta contra a não-rigorosidade do saber é a negação da vida também.
Na Pedagogia da Esperança você aborda a questão da mulher, da armadilha que a linguagem nos coloca, por exemplo, quando afirmamos que os homens fazem a história, ou quando, para nos defender diante de certas perguntas que as mulheres nos fazem sobre o uso da linguagem, nós afirmamos que, quando falo em homem, a mulher necessariamente esta incluída. Como sair dessa armadilha?
Em primeiro lugar, a gente tem de reconhecer que a linguagem é uma produção social, com uma presença individual nessa produção social. Segundo, é precisamente por isso que a linguagem é corpo ideológico. Não é possível pensar em linguagem sem ideologia e sem poder. Terceiro, a própria gramática nasce historicamente como uma regulamentação do poderoso, de quem tem poder. Nas culturas machistas, evidentemente que a linguagem se amolda a esse machismo. Numa perspectiva progressista, é absolutamente fundamental que se reinvente também a linguagem, por que não é possível você democratizar uma sociedade deixando de lado um dos aspectos fundamentais do que fazer da sociedade, que é a linguagem humana. Num tempo de busca de igualdade, de superação das ideologias restritivas, não é possível permanecerem sintaxes proibitivas da mulher. Certa vez, falando a um auditório onde havia 1500 mulheres, de repente olho e vejo a cara de um homem e digo: “Todos vocês”. Isso não é gramática. Isso é ideologia. Eu tenho que dizer “todas vocês” mesmo. Eu falo nesse livro que é possível que alguém diga que a invenção da linguagem, antes da invenção das estruturas sociais, era puro idealismo. Não é. No momento em que você não pensa a história como determinismo, mas como possibilidade, a reinvenção da linguagem faz parte da reinvenção do mundo. Então, você pode até começar pela briga da reinvenção da linguagem.
Nos Estados Unidos, já é comum referir-se aos negros não como nigger, mas como african american. É uma forma de começar a falar politicamente correto, não é?
Concordo. Mas o que você enfrenta de obstáculos quando faz isso… E sabe qual é a minha resposta? Prefiro enfeiar o meu discurso a fazê-lo mais bonito mas inautêntico do ponto de vista político. E acho mesmo que o feio aí vira esteticamente bonito, porque iluminado pelo acerto político.
Essa questão se liga a uma outra armadilha de linguagem, que você trata no livro Professora Sim, Tia Não. Você diz na página 25: “A tentativa de reduzir a professora à consição de tia é uma ?inocente? armadilha ideológica em que, tentando se dar a ilusão de adocicar a vida da professara, o que se tenta é amaciar a sua capacidade de luta ou entretê-la no exercício de tarefas fundamentais “. O que quer dizer com isso?
Que não se deve tirar da professora o dever de ela ser professora, o dever de querer bem, de amar não apenas o menino, mas o próprio processo de que ela faz parte como um dos sujeitos, que é ensinar, que é formar. O que é preciso é que ela saiba que, quando a chamam de tia, no miolo desse tia o que existe, nem sempre lucidamente para a diretora da escola, é o seguinte: tia não pode fazer greve. Quanto mais você reduz a profissionalização a uma amorosidade parental, tanto menos a professora terá condições de brigar. Pelo menos é o que a ideologia espera. Digo também que ela pode gostar de ser tia e pode preferir continuar a ser chamada de tia. Nada contra isso. Mas é preciso que saiba o que há de manha ideológica quando chamam você de tia.
Outro preocupação manifestada no livro é com relação à identidade cultural das crianças, que a escola ignora. Diante desse sistema que coloca uma única idéia de cultura, um currículo monocultural, o que pode fazer um professor em sala de aula para transformar essa escola e esse currículo?
Um grande número de professoras e professores se sente absolutamente manietado dentro de uma administração autoritária. Esse tipo de administração estimula as professoras a virar tias, o conceito pelo qual elas explicam ou se acomodam ao imobilismo que o autoritarismo espera delas. Mas acho que é possível fazer educação popular na escola. Claro que uma coisa é você nadar a favor da correnteza e outra é nadar contra. Se você tem uma administração aberta, democrática, você nada a favor da corrente quando defende uma série de posturas político-pedagógicas abertas. E nada contra o corrente, quando o conceito de participar é proibido, é um pecado. Então fica difícil você defender a participação e sobretudo viver a participação. Mas que é possível, é.
O que você faria, como professor, na sala de aula?
Uma das coisas que a professora deveria fazer, por exemplo, para compreender a cultura multiculturalmente. é comentar com os alunos as diferenças e dizer que, quando você discute tal coisa do conteúdo do programa, essa coisa não é universal, ela tem suas dimensões regionais, até de família, e entra aí o problema de classe. A cultura de classe existe. A linguagem de classe existe. Há uma sintaxe que é da classe trabalhadora e outra que não é. É preciso saber como você reinventa a linguagem, compreendendo a diversidade dessas sintaxes, como consegue recriar a linguagem de forma correta. E como professor você pode testemunhar diariamente a sua postura e aí compreender muito bem a relação dialética entre tática e estratégia. Quer dizer, você tem o sonho estratégico, que é o da multiculturalidade, mas tem que ter táticas para falar dele, porque você pode cair nos exageros do discurso – que são idealistas, voluntaristas – e você pode perder o emprego. E a questão sua não é perder o seu emprego; é manter o emprego e ajudar o seu sonho. Acho que não há fórmulas para isso. Você tem que recriar todo dia as suas táticas para superar o exclusivismo de uma compreensão cultural estreita.
A experiência vivida na Secretaria da Educação te deu ma impulso danado para escrever. Quais são seus planos para os próximos 50 anos?
Quem me dera esses 50 anos… No momento estou escrevendo um livro de que gosto muito, que está cheio de afetividades, que vai se chamar Cartas a Cristina. É uma sobrinha que se correspondia comigo desde que era criança e eu estava no exílio. Um dia, recebi uma carta em que ela me dizia: “Até hoje conheci tio Paulo através de minha mãe, meu pai e minha avó. E agora que cheguei à universidade comecei a conhecer um outro Paulo, através de referências um pouco assustadas (estávamos ainda no Estado militar), não mais do tio Paulo, mas do professor Paulo Freire. E estou tão curiosa de saber sobre o Paulo Freire tio dos outros todos, e não só o meu, que queria pedir um favor: faça cartas para mim sobre sua vida, sobre sua infância”. Achei fantástico e respondi que ia fazer.
E depois desse livro?
Tenho um sonho de fazer um ensaio sobre Amílcar Cabral (líder revolucionário que fundou o movimento de libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde, na África). Acho muito oportuno trabalhar um pouco isso. Num momento em que se pensa que nunca mais vai haver revolução, eu, pelo contrário, acho que vai haver. Não depois de amanhã e não igual às que já houve. A gente precisa compreender que a história não se acabou. O que está acabando é uma maneira de fazer história. Hoje a gente está começando a viver uma nova maneira de ser históricos, que é preciso que a gente perceba. Tudo que a gente puder fazer para esclarecer isso é dever fazer.
Falando em esclarecer, o que você diz das críticas que o atual secretário municipal da Educação, Solon Borges dos Reis, tem feito à administração anterior, da qual fizemos parte? Ele anunciou a desativação da Mova (Movimenta de Alfabetização de Adultas) porque tinha objetivos político-ideológicos. Ele também pretende trabalhar mais com a profissionalização, ao contrario de nós, que trabalhamos mais com a autonomia da escola e com participação – segundo o professor Solon, palavras associadas à pedagogia libertadora de Paulo Freire. Ele diz que vai enfatizar a pedagogia para a responsabilidade.
Devo sublinhar, em primeiro lugar, que o professor Solon tem o dever de procurar afirmar sua gestão de secretário na posição e na opção político-ideológica que ele tem, que o governo de que ele faz parte tem. Nesse sentido, ele é tão político quanto nós. Não existe neutralidade a que ele faz referência. Ele não é neutro. Ele está procurando canalizar a sua administração numa perspectiva não apenas pedagógica, mas numa opção político-ideológica que diverge da nossa, que é oposta à nossa. E é um direito que ele tem.
Aliás ele confessa isso quando diz que “os valores da administração do PT não são os valores que nós queremos para a educação”.
Exato. No livro Política e Educação, há um texto sobre educação e responsabilidade, em que eu discuto a compreensão de responsabilidade associada à educação e enfatizo essa questão da opção da opção política, do responsável pela responsabilidade pedagógica. Defendo o direito de o professor Solon defender sua opção. Por isso eu também digo nesse texto que não é possível, rigorosamente, uma continuidade administrativa, quando acontece de uma administração conservadora seguir-se a uma administração progressista. Como é que eu, um educador que me considero progressista, posso continuar uma obra reacionária? E como é que um reacionário, um conservador, pode continuar uma obra progressista? Os aspectos puramente administrativos são pouquíssimos. Todo problema administrativo está iluminando e fundando uma questão política. Por exemplo, as prioridades são políticas, ideológicas.
Esse fato não reforçaria a idéia de que mais importante no fundo é fortalecer as propostas político-pedagógicas das próprias escolas, para que elas resistam um pouco mais à descontinuidade administrativa?
Acho que sim, mas isso também bate no poder político de quem tem a administração central. Por exemplo, como pode uma administração conservadora aceitar, primeiro, a própria idéia de autonomia da escola? Não pode, porque uma das características do conservantismo é exatamente a centralização do poder. Quando você pergunta o que é que significa a própria autonomia da escola, a resposta tem um ponto de partida político e ideológico. Não é uma pergunta puramente da ciência da administração, não é uma pergunta cuja resposta dependa da pedagogia. A prática educativa vai refletir um sonho político-ideológico de quem define a autonomia. Outra coisa: é absolutamente errada a idéia de que nós não fazíamos uma educação para a responsabilidade ou educação responsável. Só que a nossa responsabilidade se fundava noutros valores. A nossa responsabilidade tinha que ver, sobretudo, com a ontologia, com a qualidade de ser do ser humano. Quer dizer, eu sou responsável como educador com relação a esse núcleo básico que nos marca, que nos caracteriza – e que se constituiu histórica e socialmente e não a priori da história -, que é a vocação de ser mais. A minha responsabilidade é com isso. Por isso falo em ontologia. Eu sou responsável na minha prática educativa no sentido de ajudar-me e ajudar os outros a ser mais. E não é possível ser mais sem libertação. Então, a pedagogia da libertação é profundamente responsável.
Qual é a diferença entre a pedagogia da libertação e essa que está senda posto em prática?
A diferença entre ela e a outra que se diz responsável – e que é tão responsável quanto nós – é que a conservadora é responsável diante dos interesses dos dominantes. Agora, dizer que a que é responsável diante dos interesses dos dominantes é a única responsável é um absurdo. Como eu também não posso dizer que somos os únicos responsáveis. Mas eu tenho que distinguir em que ponto eu sou responsável. A minha utopia não é a utopia do conservador. O conservador quer conservar, por isso é reacionário – porque não é preciso conservar o que é legítimo luta-se para consevar o que é ilegítimo.
Que balanço você faria hoje do que foi feito na sua administração?
Não tenho um balanço, mas se você perguntar se eu estaria arrependido de alguma coisa, eu te diria que, apesar da legitimidade do arrependimento, eu não tenho nenhum. Eu faria de nova a mesma coisa. Quando nos juntamos para administrar a Secretaria, não pensamos que éramos os maiores educadores do Estado. Segundo, nenhum de nós pensou que por isso mesmo somente nós seríamas capazes de fazer alguma coisa positiva. Terceiro, nenhum de nós pensou que estávamos ali escolhidos por Deus para salvar a educação de São Paulo e depois a brasileira. O que sabíamos era que éramos capazes de fazer uma coisa séria e apostávamos, sem nenhuma falsa modéstia, que éramos capazes. E tínhamos opções políticas. Sabíamos, por exemplo, que defendíamos uma escola que, sendo pública, deveria tornar-se uma escola popular. E você. Gadotti, acrescentava que era preciso esclarecer o que é o popular: quando queremos que a escola pública se torne popular, eficaz, democrática, não estamos pensando em fazer uma escola ruim para os meninos que nasceram ricos. Estávamos convencidos de que devíamos fazer uma escola que, tendo o gosto, o cheiro do popular, não tivesse nojo da burguesia. A gente queria que essa escola tivesse a cara brasileira, portanto uma escola aberta, feliz, crítica, que provocasse a criatividade dos meninos e não o medo. Para isso, precisávamos de uma administração que fosse assim também. Não é possível pensar no sonho democrático da escola tendo uma administração autoritária.
Por isso você promoveu mudança, nos estruturas de poder da Secretaria?
Fizemos uma mudança estrutural. na qual o secretário perdeu possivelmente 60% do puder arbitrário que tinha. Eu não podia mais nomear nem uma secretária de escola. Vinham as indicações das bases. Se não se arrebentar com aquele gosto colonial de administrar – em que cabia ao secretário dispensar até a professora que perdeu aula no mês de setembro do ano anterior -, não se pode falar na autonomia da escola. Procuramos os Conselhos de Escola, criados por Mário Covas em 1985 e arquivados por Jânio Quadros. Os Conselhos de Escola foram um salto extraordinário no servido da ingerência dos pais, dos alunos e das professoras frente ao poder central do diretor.
Você acha que esse gosto peta liberdade, pela autonimia, pela participação é uma marca deixada pela sua administração e que vai ficar?
Eu acredito nisso. Mesmo que esse gosto sofra momentos de abafamento, em que sente que não pode se expressar. Porque, afinal de contas, o gosto de vir a ser faz parte da ontologia do ser. Ninguém pode decretar que os homens e mulheres deixem de sonhar. Isso é negócio de ditador.
Extraído de: https://novaescola.org.br/conteudo/266/paulo-freire-nos-podemos-reinventar-o-mundo