O futuro do socialismo pode ser o seu passado

Em artigo publicado pelo The New York Times em especial sobre a Revolução Russa, Sunkara faz uma análise da revolução de Outubro à luz dos movimentos anticapitalistas do presente.

Bhaskar Sunkara 17 jul 2017, 19:34

Cem anos depois do trem blindado de Lênin chegar à Estação Finlândia e desencadear os eventos que levaram aos gulags de Stálin, a ideia que nós deveríamos retornar a essa história nos inspirarmos pode soar absurda. Mas havia uma boa razão para que os Bolcheviques uma vez se chamarem “social- democratas”. Eles eram parte de um amplo movimento de partidos em crescimento que buscavam lutar por maior democracia política e, usando a riqueza e a nova classe trabalhadora criada pelo capitalismo, estender os direitos democráticos para as esferas econômica e social, o que nenhum capitalista permitiria.

O movimento comunista inicial nunca rejeitou essa premissa ampla. Ele nasceu de uma sensação de traição por parte dos partidos de esquerda mais moderados da Segunda Internacional, a aliança de partidos socialistas e trabalhistas de 20 países fundada em Paris em 1889. Em toda a Europa, partido atrás de partido fez o impensável, abandonando suas promessas de solidariedade às classes trabalhadoras entre todas as nações e apoiando seus respectivos governos na I Guerra Mundial. Aqueles que permaneceram leais às velhas ideias se autodenominaram “comunistas” para se distanciar dos socialistas que haviam cometido um abate que custou 16 milhões de vidas. (Em meio à carnificina, a Segunda Internacional se desmoronou em 1916).

Certamente, a movimentação nobre dos comunistas a fim de parar a guerra e criar uma via humana para a modernidade na Rússia atrasada acabou aparentemente afirmando a noção burkeana de que qualquer tentativa de revogar uma ordem injusta acabaria somente por criar outra.

A maioria dos socialistas tem sido castigada pelas lições do comunismo do século XX. Hoje, muitos dos que teriam se animado com a Revolução de Outubro têm menos confiança nas perspectivas de transformar radicalmente o mundo em uma única geração. Eles colocam uma ênfase no pluralismo político, no dissenso e na diversidade.

Ainda assim, o espectro do socialismo evoca o medo de um novo totalitarismo. Um relatório recente da Fundação Memorial das Vítimas do Comunismo revela que os jovens tendem a ver o socialismo favoravelmente e que um “impulso Bernie Sanders” pode estar contribuindo para um giro millenial contra o capitalismo. Ano passado, o próprio presidente da Câmara de Comércio dos Estados Unidos, Thomas J. Donohue, achou necessário lembrar os leitores que o “Socialismo é um Perigoso Caminho para a América”.

A direita denuncia ainda o socialismo como um sistema econômico que levará à miséria e privação, mas com menos ênfase no autoritarismo político que frequentemente andava de mãos dadas com o socialismo no poder. Isso talvez ocorra em virtude das elites hoje não terem os direitos democráticos na linha de frente de seus pensamentos – talvez porque eles sabem que as sociedades que eles dirigem são difíceis de justificar nesses termos.

O capitalismo é um sistema econômico: um modo de organizar a produção para o mercado através da propriedade privada e da motivação do lucro. Na medida em que permitiu a democracia, ele fez isso com extrema relutância. É por isso que os primeiros movimentos operários como os cartistas britânicos no começo do século XIX organizaram-se em primeiro lugar pelos direitos democráticos. Dirigentes capitalistas e socialistas acreditavam igualmente que a luta pelo sufrágio universal encorajaria trabalhadores a usar seus votos na esfera política para demandar uma ordem econômica que os colocasse no controle.

Não funcionou desse jeito. Por todo o Ocidente, os trabalhadores vieram a aceitar uma espécie de compromisso de classe. O empreendimento privado seria domesticado, não superado, e uma maior parcela de uma torta em crescimento forneceria benefícios universais através de generosos estados de bem-estar. Os direitos políticos também seriam consagrados, à medida que o capitalismo evoluía e adaptava-se de tal forma que uma sociedade civil democrática e um sistema econômico autoritário fizeram um improvável, porém aparentemente bem-sucedido, emparelhamento.

Em 2017, tal arranjo está bastante morto. Com os movimentos da classe trabalhadora adormecidos, o capital tem surtado, traçando um curso destrutivo, sem mesmo a promessa de crescimento sustentado. A raiva que levou à eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e ao voto pelo Brexit na Grã-Bretanha é palpável. As pessoas sentem-se como se elas estivessem em um trem fugitivo com um destino desconhecido e, por uma boa razão, desejam voltar às misérias familiares.

Em meio a essa turbulência, alguns temem um retorno para a Estação da Finlândia através de líderes abertamente socialistas como o Sr. Sanders e Jean-Luc Mélenchon na França. Mas a ameaça para a democracia hoje está vindo da direita, não da esquerda. A política parece apresentar dois caminhos a seguir, ambas as formas decididamente não-stalinistas de coletivismo autoritário.

A “Estação Cingapura” é o destino inconfesso do trem do centro neoliberal. É um lugar onde pessoas de todos os credos e cores são respeitadas – desde que conheçam o seu lugar. Afinal, as pessoas são grosseiras e irracionais, incapazes de governar. Deixem a administração da Estação Cingapura para os especialistas.

Esta é uma visão viável para as elites que analisam o surgimento de um populismo errático de direita com medo justificado. Muitos deles argumentam a necessidade das medidas de austeridade para manter uma frágil economia global e preocupam-se com o fato de que os eleitores não querem sofrer no curto prazo para se poupar das disfunções de longo prazo. O mesmo se aplica à ameaça iminente de mudança climática: a ciência é incontestável entre os cientistas, mas ainda assim está em debate na esfera pública.

O modelo Cingapura não é o pior de todos os possíveis pontos finais. É aquele em que especialistas são autorizados a ser especialistas, capitalistas são autorizados a acumular e trabalhadores comuns são autorizados a ter um semblante de estabilidade. Mas não deixa espaço para os passageiros do trem gritarem “Pare!” e a pegarem um destino de sua própria escolha.

A “Estação Budapeste”, assim nomeado por causa dos poderosos partidos de direita que dominam a Hungria hoje, é a parada final da direita populista. Budapeste nos permite ao menos nos sentir de volta ao comando. Chegamos lá, desaclopando alguns dos vagões, acelerando para a frente e lentamente retrocedendo. Nós estamos todos nisso juntos, a menos que você seja um estrangeiro que não tem um ticket e, então, má sorte.

O “trem Trump” é dirigido dessa maneira. O presidente Trump não pode oferecer ganhos tangíveis para as pessoas comuns desafiando as elites, mas ele pode oferecer uma valorização superficial do “trabalhador” e estimular a raiva pelas supostas causas do declínio nacional – imigrantes, acordos comerciais ruins, globalistas cosmopolitas. A imprensa, a academia e quaisquer outras partes não- conformes da sociedade civil estão sob ataque. Enquanto isso, além de ter que ajustar mais protecionismo e políticas de imigração restritivas, tudo permanece o mesmo para a maioria das corporações.

Mas há uma terceira alternativa: voltar à “Estação Finlândia”, com todas as lições do passado. Desta vez, as pessoas conseguem votar. Bem, debater, deliberar e depois votar – e ter fé que as pessoas podem organizar-se juntas para traçar novos destinos para a humanidade.

Despojado para a sua essência, e voltado às suas raízes, o socialismo é uma ideologia da democracia radical. Numa época em que as liberdades estão sob ataque, o socialismo procura empoderar a sociedade civil para permitir a participação nas decisões que afetam nossas vidas. Uma burocracia estatal enorme, é claro, pode ser tão alienante e antidemocrática quanto as salas de reuniões corporativas, por isso precisamos pensar fortemente sobre as novas formas que a propriedade social poderia tomar.

Alguns grandes conceitos já devem estar claros: cooperativas de trabalhadores, competindo em um mercado regulamentado; serviços governamentais coordenados com a ajuda do planejamento do cidadão; e a provisão dos conceitos básicos necessários para viver uma boa vida (educação, habitação e cuidados de saúde) garantidos como direitos sociais. Em outras palavras, um mundo onde as pessoas têm a liberdade de atingir suas potencialidades, independentemente das circunstâncias do nascimento.

Nós só podemos chegar a esta estação da Finlândia com o apoio de uma maioria; essa é uma das razões pelas quais os socialistas são defensores tão enérgicos da democracia e do pluralismo. Mas não podemos ignorar a perda de inocência do socialismo ao longo do século passado. Podemos rejeitar a versão de Lênin e os bolcheviques como demônios loucos e optar por vê-los como pessoas bem intencionadas tentando construir um mundo melhor em uma crise, mas nós devemos descobrir como evitar suas falhas.

Esse projeto implica um retorno à social-democracia. Não a social-democracia de François Hollande, mas a dos primeiros dias da Segunda Internacional. Esta social-democracia envolveria um compromisso com uma sociedade civil livre, especialmente para as vozes de oposição; a necessidade de verificações e balanços institucionais sobre o poder; e uma visão de uma transição para o socialismo que não requer uma ruptura do “ano zero” com o presente.

Nossa Estação Finlândia não do século XXI não será um paraíso. Você pode sentir desgosto e miséria lá. Mas será um lugar que permite a muitos agora esmagados pela desigualdade participarem da criação de um novo mundo.

(Artigo originalmente publicado em 26 de junho pelo The New York Times. Tradução de Charles Rosa)


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Camila Souza