Primárias na Argentina – Por que apoiar a Frente de Esquerda-Unidade?
Israel Dutra analisa as eleições primárias na Argentina e mostra por que é preciso apoiar a Frente de Esquerda-Unidade naquele país.
A Argentina vai às urnas neste domingo, 11 de agosto, para a realização da primeira etapa do processo eleitoral. As primárias (Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias, PASO) definem os candidatos para as eleições presidenciais que acontecem na última semana de outubro. A lei eleitoral, bastante restritiva, impõe que apenas candidaturas que superem a marca de 1,5% dos votos nas PASO possam disputar a eleição. Como as PASO são obrigatórias, se esperam cerca de 25 milhões de votos, separando o número de abstenções da média histórica.
O cenário político no país vizinho é altamente polarizado. Candidato à reeleição, Mauricio Macri encarna a direita neoliberal que pretende construir uma larga hegemonia no poder. Se alinha à direita latino-americana, caminhando para uma linha mais de “direita dura”. Sua eleição em 2015 foi vista como expressão do esgotamento do ciclo Kichnner (“K”). Apoiado nas camadas médias urbanas, com forte polarização ao redor de temas como a corrupção e o chamado “populismo fiscal”, Macri prometeu modernizar as relações sociais no país, normalizar uma Argentina marcada por conflitos políticos e sociais, desde a explosão de 2001, que entraria para a história como uma das maiores ações independentes e populares, o “Argentinazo”.
Fruto dessa polaridade, nasceu uma expressão entre cientistas políticos e analistas: “la grieta”. Se pudéssemos utilzar uma livre tradução, poderíamos afirmar que se trata de uma “fissura”. Tal signo explicaria o país dividido entre as duas principais correntes que disputam a hegemonia desde a tentativa de normalização da via política após “Argentinazo”: os K e sua oposição conservadora. Mesmo depois da morte do patriarca K, Néstor, Cristina seguiu seu legado, com um discurso que apesar de menos radical que as experiências bolivarianas, buscava ocupar o espaço de centro-esquerda, com importantes concessões ao movimento de massas no terreno econômico, social e democrático. O limite dos K foi nunca deixar de apostar numa via de desenvolvimento capitalista subordinada, assim sendo uma das expressões mais moderadas do que alguns (de forma errada) apontavam como “ciclo do progressismo” na América Latina.
Macri venceu a última eleição presidencial sem conseguir avançar nas contrarreformas que o capital nacional e internacional exigiam. Seu plano econômico foi incapaz de trazer crescimento duradouro, levando a choques com a classe trabalhadora organizada, à perda de apoio em amplos setores da opinião e à necessidade de voltar a endividar-se junto ao FMI. Os dados econômicos e sociais foram desastrosos: um terço da população está abaixo da linha da pobreza; o desemprego e o subemprego não param de crescer, bem como a inflação galopante, restando à moeda local, o peso, uma desvalorização em tempo recorde, se comparado com outros países da região.
A disputa eleitoral é um novo round nesse embate. Como principal força de oposição, Cristina e seus aliados abriram mão da cabeça da fórmula, indicando Alberto Fernández, um peronista mais moderado. Cristina assumiu a vice na fórmula conhecida como FF (Fernández-Fernández, o outro sobrenome de Cristina Kichnner). A aliança incluiu vastos setores oposicionistas, como o “peronista de direita” Sergio Massa, governadores que foram vanguarda na luta contra o aborto, toda a burocracia sindical ligada à CGT e dissidências sindicais. Assim conformou-se, com a insígnia de unir os panos “celestes e verdes” que representaram as duas forças em choque quando da disputa da aprovação da lei do aborto, a “Frente de Todos”. Sob o argumento de que nada é pior que Macri, busca arrastar amplos setores para a chamada política do “mal menor”.
Apesar desse cenário nos ser familiar, existem outros e importantes atores na eleição argentina. Dois outros campos políticos burgueses estão representados e devem passar as primárias: o candidato Lavagna, que busca, sem êxito, ser uma terceira via nos marcos do neoliberalismo, e o candidato que se alinha com ideias da direita dura, com uma falsa cara antisistêmica, querendo bancar o “Bolsonaro portenho”, Espert, com um programa de extrema-direita. Não se pode descartar uma votação surpreendente e silenciosa desse nefasto personagem.
A grande novidade para o ativismo foi a abertura e confluência do campo político da esquerda, que vem se fortalecendo e se delimitando nos últimos anos no país, a Frente de Esquerda- Unidade.
Para aplicar seus planos de ajuste, Macri necessitou testar a relação de forças. Apesar de obter algumas vitórias, como uma nova lei trabalhista e a aplicação da primeira fase de uma reforma da previdência, o movimento de massas conseguiu impor certos limites. Acabou por desenvolver um importante ativismo, expresso sobretudo nas batalhas de dezembro de 2017, quando 300 mil pessoas rodearam a Praça de Maio, numa greve geral com caráter popular, contra a reforma da previdência, e na grande mobilização do movimento de mulheres em defesa do aborto legal e seguro, marcada pelo pano verde que levavam às manifestações. Foram milhões de mulheres nas ruas, que, apesar da não aprovação da lei no Senado, representaram uma mudança enorme na consciência popular do país. Nesse caldo de mobilizações, ainda que a conjuntura atual seja menos explosiva pela expectativa eleitoral, o fortalecimento de uma esquerda militante, de tipo anticapitalista, com capacidade de atuar no movimento de massas, foi uma conquista da vanguarda lutadora do país.
Os bons resultados da FIT (Frente de Esquerda e dos Trabalhadores) colocaram os debates do ponto de vista da esquerda no parlamento e nos meios de comunicação. Vale destacar que a Argentina tem como característica o debate político constante na mídia. Contudo, outro traço que marca parte da esquerda radical argentina é o sectarismo, seja pela via da autoproclamação, pela exclusão dos diferentes ou por propostas maximalista. A FIT inicial (composta por PO, PTS e IS) até então não dava margem para unidades mais amplas. O fantasma do sectarismo sempre está presente nas disputas políticas da esquerda argentina, sejam elas eleitorais ou em disputas sindicais. A entrada do MST (Movimento Socialista dos Trabalhadores) na confluência eleitoral, bem como de grupos menores como PSTU e Poder Popular, representou um passo à frente, determinado na nomenclatura Frente de Esquerda-Unidade. Grupos menores como o NMAS e personalidades políticas como Luis Zamora ainda ficaram de fora do processo de convergência, o que denota um grave erro político. A Frente de Esquerda-Unidade apresentou um programa de 20 pontos, orientado pela ruptura com o FMI, para que os ricos paguem pela crise e pela defesa intransigente dos direitos das mulheres.
A primeira etapa do debate eleitoral esteve muito marcada pela chantagem dos mercados. A cada ponto que abria de vantagem nas pesquisas a fórmula FF, a bolsa de valores demonstrava “nervosismo”, numa interferência descarada dos grandes capitalistas e dos Estados Unidos para evitar a todo custo a derrota de seu principal candidato, Mauricio Macri. A resposta que Fernández conhece é a de rebaixar seu programa e “girar à direita”. Cristina dissimulou qualquer verniz “estatista” e se proclamou mais capitalista que Macri. Tudo isso em meio a uma verdadeira chuva de fakenews. No documentário da Netflix “Privacidade Hackeada”, o time da Cambridge Analytica aparece comemorando o resultado “anti-K”. As primárias tiveram um componente forte de fakenews e ataques apócrifos como uma reportagem recente da Folha de São Paulo (“Adivinha o que acontece na eleição argentina”, FSP, 10/11) registrou.
A esquerda argentina, representada na fórmula Del Caño-Romina del Plá enfrenta dois poderosos adversários para se converter num espaço de reorganização política dos trabalhadores, das mulheres, da juventude e das camadas médias. O primeiro é escapar da polarização, afirmando sem unilateralidades, um espaço independente para lutar contra o ajuste que vai seguir, qualquer que seja a força vencedora em outubro. Cada voto na Frente de Esquerda-Unidade é uma aposta num projeto que se levanta para o futuro. O segundo grande problema é vencer as barreiras do sectarismo renitente. A recente crise que atravessa o mais antigo dos partidos da esquerda que compõem a Frente, o PO (Partido Operário), é um sintoma do estrago que o sectarismo faz. Em meio aos debates intensos, parte da imprensa partidária destaca as polêmicas entre seu Comitê Nacional e o líder da fração pública, Jorge Altamira, veterano militante e fundador do mesmo PO. Essa expressão é apenas um das diversas faces do sectarismo na história da esquerda radical do país e do trotskysmo, fortemente implantado na vanguarda da classe e da juventude.
A partir dessa premissa, a esquerda brasileira deve acompanhar e apoiar a Frente de Esquerda- Unidade, lutando para que se amplie a discussão, as decisões internas democráticas e a construção de um programa comum para agitar entre as massas. Um resultado que chegue à casa dos centenas de milhares de votos, como algumas pesquisas indicam, representaria um ponto de apoio nos locais de trabalho, estudo e moradia, convertendo a esquerda num ator minoritário, mas relevante, diante de novas turbulências que nos aguardam.