Vida militante e saúde mental

Bruno Magalhães analisa as relações entre a vida militante e a saúde mental.

Bruno Magalhães 10 set 2019, 11:42

“Quando há tantos a quem devemos lamentar quando a aflição se tornou tão pública, e expôs à crítica de toda uma época nossa frágil consciência, nossa angústia, de quem iremos falar?” (W. H. Auden, Em memória de Sigmund Freud)

O tema da saúde mental está cada vez mais presente na militância e se aprofunda em tempos de crise generalizada. As angústias, frustrações e outras formas de sofrimento da vida contemporânea afetam camaradas das diversas organizações e influenciam diretamente estes grupos através de adoecimentos, afastamentos e comportamentos patológicos. É um assunto difícil e muitas vezes evitado no contexto militante, o que torna importante a tentativa de trazer à tona e politizar este debate.

  As respostas das organizações de esquerda perante esta questão não costumam dar conta de suas complexidades. Não podemos ter a ilusão de que uma posição política contrária ao processo de exploração e opressão da sociedade capitalista seja por si um antídoto contra as marcas que imprime na subjetividade humana. Apesar de sua potência transformadora e de seu exemplo de intervenção consciente perante a realidade, é sempre importante lembrar que a ação militante não promove nenhum tipo de imunidade ao sofrimento psíquico por si mesma.

  É um tema delicado se tendo em vista as variações entre os diversos coletivos e a multiplicidade de suas formas organizativas. Entretanto, questões como a relação incômoda entre dever e culpa no cumprimento de tarefas, as frustrações geradas pelas expectativas de sujeitos perante seus coletivos, os sintomas ligados às características atuais do mundo do trabalho, entre outras, são bastantes comuns aos distintos agrupamentos. Nesse sentido, certas formas de sofrimento psíquico de militantes políticos reproduzem internamente sintomas típicos oriundos da forma de reprodução neoliberal do modo de produção capitalista.

  Não se trata aqui de diagnosticar estes sintomas ou propor terapias, uma tarefa reservada para profissionais, mas de refletir sobre o sofrimento psíquico na vida militante para pensar como evitar abordagens sectárias e posições superficiais. A reflexão sobre a construção das subjetividades no mundo neoliberal pode ajudar na percepção de determinados mecanismos e aumentar nosso horizonte de possibilidades individuais e coletivas, ajudando na ruptura com automatismos e repetições que reproduzem sofrimento.

  É importante notar que não se trata de um texto acadêmico nem profissional sobre o tema, é uma aproximação inicial realizada de forma leiga a partir da própria dinâmica da militância, e todas as críticas e correções são muito bem vindas.                       

Estado e subjetividade

  É impossível pensar o sofrimento psíquico sem contextualizar a sociedade na qual estão os sujeitos que sofrem. Cada modo de produção organiza a vida do sujeitos que nele vivem através de formas políticas próprias e cada diferente forma de organização social é também uma diferente forma de produção de angústias. Isso faz com que cada reflexão sincera sobre o sofrimento psíquico individual carregue em si um âmbito de crítica social e, ainda que existam continuidades estruturais entre as diferentes épocas e seus modos de vida, cada contexto histórico produz suas inquietações particulares.

  É preciso então pensar primeiro sobre o sistema de produção no qual vivemos com suas características e dilemas atuais. No capitalismo, a identidade subjetiva se constrói a partir da sociedade contratual fundada sobre a lógica da troca de mercadorias, ou seja, do mundo no qual o Estado burguês surge como mediador de “sujeitos de direito” que constroem uma percepção de si e coordenam suas relações sociais através de contratos considerados “justos” perante as normas do Estado e de seus critérios de moralidade. As violentas relações de opressão e exploração do trabalho são escondidas atrás de uma roupagem ideológica cínica na qual muitas vezes os conceitos de “justiça” e “direitos” significam exatamente o contrário do que parecem significar.

  A divisão formal entre o poder político e o poder econômico ocorrida ao longo dos últimos séculos estabeleceu as relações jurídicas estatais como normatizadoras dos mecanismos de produção e circulação de mercadorias, ampliando a lógica do mercado para muito além de aspectos econômicos e atingindo profundamente todos os âmbitos da vida humana. Nessa lógica contratual, a troca de mercadorias torna-se o modelo universal balizador das relações humanas, de seus pensamentos e comportamentos, sacralizando a ideia da equivalência das trocas no conjunto das expressões da vida humana.

  O Estado organiza a exploração capitalista do trabalho e normatiza o comportamento dos sujeitos para a manutenção desta exploração a partir desta ideia fundamental de equivalência de trocas onde os sujeitos são livres. A subjetividade no capitalismo forma-se então mediada por esta contradição permanente: no lado formal os direitos que garantiriam a igualdade entre sujeitos durante a celebração dos contratos e no lado real a exploração e a espoliação dos trabalhadores e trabalhadoras justificada pela existência destes direitos. Segundo o jurista soviético Evgeni Pachukanis:

  “Depois de ter sido feito escravo das relações econômicas que se constituem por detrás de suas costas na forma da lei do valor, o sujeito econômico recebe, como que à guisa de compensação, já na qualidade de sujeito jurídico, um presente raro: uma vontade juridicamente presumida, que o torna absolutamente livre e igual em meio aos demais possuidores de mercadorias como ele. (…) E essa ideia do isolamento, do encerramento em si mesmo da personalidade humana (…) corresponde inteiramente ao modo de produção mercantil, em que os produtores são formalmente independentes um do outro e não são ligados por nada, além de uma ordem jurídica artificialmente criada. Essa própria condição jurídica (…) nada mais é que o mercado idealizado, elevado às etéreas alturas da abstração filosófica.”[1]

  No trecho acima, Pachukanis defende que a forma política do modo de produção capitalista (o Estado) leva ao “encerramento em si mesmo da personalidade humana” dos sujeitos, ligados entre si exclusivamente por uma “ordem jurídica artificialmente criada”, ou seja, abstratamente iguais e independentes perante o sistema jurídico apesar de suas profundas desigualdades econômicas e sociais. O cinismo da afirmação “todos são iguais perante a lei” torna-se regra e delimita o molde apertado da expectativa de vida na qual o Estado burguês comprime os sujeitos, reduzindo a imaginação política, diminuindo o campo de possibilidades e limitando qualquer perspectiva que vá além das fronteiras do Estado. A vida humana se enquadra então nos estreitos limites impostos pelo capital enquanto as iniciativas políticas se enquadram nos estreitos limites da política estatal.

  Somos socializados como sujeitos de direito e nossa subjetividade psíquica é inseparável de nossa subjetividade jurídica. Nossos marcos de relações humanas são desenhados a partir dessa posição inescapável onde desde cedo aprendemos os códigos e normas contratuais que permitem (e ao mesmo tempo exigem) uma vida ajustada ao mundo das mercadorias e sua forma estatal. Segundo Alysson Mascaro:

  “[o Estado] Não é apenas um aparato de repressão, mas sim de constituição social. A existência de um nível político apartado dos agentes econômicos individuais dá a possibilidade de influir na constituição de subjetividades e lhes atribuir características jurídicas e políticas que corroboram para a própria da circulação mercantil e produtiva. (…) A reprodução do capitalismo se estrutura por meio de formas sociais necessárias e específicas que constituem o núcleo de sua própria sociabilidade. As sociedades de acumulação do capital, com antagonismo entre capital e trabalho, giram em torno de formas sociais como valor, mercadoria e subjetividade jurídica. Tudo e todos valem num processo de trocas, tornando-se, pois, mercadorias e, para tanto jungindo-se por meio de vínculos contratuais.”[2]

  Nas relações atomizadas da sociedade contratual predomina a lógica da acumulação em todos os âmbitos, e a identidade do empreendedor no livre mercado torna-se o modelo ideal. A afirmação de sua posição enquanto sujeito de direito, que possui garantias jurídicas para celebrar contratos e vender o melhor de si buscando o acúmulo de capital, torna-se então a finalidade geral da existência humana e demonstra o enraizamento profundo da lógica mercantil. É como diz Marx:

  “(…) o modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser que determina sua consciência”[3].

  “Este modo da produção não deve ser considerado no seu mero aspecto de reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se já, isso sim, de uma forma determinada da atividade destes indivíduos, de uma forma determinada de exprimirem a sua vida, de um determinado modo de vida dos mesmos. Como exprimem a sua vida, assim os indivíduos são. Aquilo que eles são coincide, portanto, com a sua produção, com o que produzem e também com o como produzem. Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção.” [4]

  “A produção das ideias, representações, da consciência está a princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparecem aqui ainda como refluxo direto do seu comportamento material. O mesmo se aplica à produção espiritual como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, etc., de um povo. Os homens são os produtores das suas representações, ideias, etc., mas os homens reais, os homens que realizam, tal como se encontram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do intercâmbio que a estas corresponde até às suas formações mais avançadas. A consciência, nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo real de vida. Se em toda a ideologia os homens e as suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmera obscura, é porque este fenómeno deriva do seu processo histórico de vida da mesma maneira que a inversão dos objetos na retina deriva do seu processo diretamente físico de vida.”[5]

  O processo de determinação de nossa consciência nos obriga a pensar profundamente sobre nosso ser, este reflexo invertido em uma câmera obscura, esta experiência subjetiva histórica que compartilhamos durante esta fase neoliberal do modo de produção capitalista. E para contextualizar o debate sobre a subjetividade militante é preciso ter em mente tanto nossas condições históricas estruturais dadas pelo modo de produção capitalista como sua influência contemporânea na racionalidade humana em sua formação predominante atual, a do neoliberalismo.

A razão neoliberal        

  Pode-se dizer que o neoliberalismo é a radicalização do capitalismo clássico e, ao mesmo tempo, uma ruptura de perspectiva com esta tradição anterior. Enquanto o liberalismo clássico via a economia de mercado como um modo natural e autônomo de organização social, os colapsos econômicos do século XX levaram seus sucessores neoliberais a defender a necessidade de uma influência direta e constante sobre a sociedade para viabilizar esta maneira de organização social. E, para garantir a dita liberdade promovida pela economia de mercado, o neoliberalismo se apoia no fortalecimento de um Estado esvaziado de seus serviços sociais mas ao mesmo tempo com mecanismos de controle fortalecidos para garantir a manutenção da exploração, justificando ferramentas violentas e autoritárias contra a classe trabalhadora assim como os modelos econômicos antecessores.

  O processo de surgimento do pensamento neoliberal remonta o Colóquio Walter Lippmann, seu marco inicial realizado em 1938 a partir da Universidade de Chicago e da London School of Economics para responder questões colocadas aos liberais após a crise de 1929. A posição dos precursores do neoliberalismo naquele colóquio em Paris é esclarecedora:

  “A palavra mais importante na reflexão de Lippman é ‘adaptação’. A agenda do neoliberalismo é guiada pela necessidade de uma adaptação dos homens e das instituições a uma ordem econômica intrinsecamente variável, baseada numa concorrência generalizada e sem trégua. A política neoliberal é requerida para favorecer esse funcionamento, combatendo os privilégios, os monopólios e os rentistas. Ela visa a criar e preservar as condições de funcionamento do sistema concorrencial.

  À revolução permanente dos métodos e das estruturas de produção deve corresponder igualmente a adaptação permanente dos modos de vida e das mentalidades. Foi o que entenderam claramente os “primeiros liberais”, inspirados pela necessidade de reformas sociais e políticas, mas foi também o que esqueceram o “últimos liberais”, mais preocupados com a manutenção do que com a adaptação. A bem da verdade, os adeptos do laissez-faire supunham que esses problemas de adaptação se resolviam por magia, ou melhor, nem existiam.

  O neoliberalismo repousa sobre a dupla constatação de que o capitalismo inaugurou um período de revolução permanente na ordem econômica, mas que os homens não se adaptam espontaneamente a essa ordem de mercado cambiante, porque se formaram num mundo diferente. Essa é a justificativa de uma política que deve visar à vida individual e social como um todo, como dirão os ordoliberais depois de Lippman.

  (…) Longe de negar a necessidade de um quadro social, moral e político para melhor deixar funcionarem os mecanismos supostamente naturais da economia de mercado, o neoliberalismo deve ajudar a redefinir um novo quadro que seja compatível com a nova estrutura econômica

  Mais ainda, a política neoliberal deve mudar o próprio homem. Numa economia em constante movimento, a adaptação é uma tarefa sempre atual para que se possa recriar uma harmonia entre a maneira como ele vive e pensa e as condicionantes econômicas às quais deve se submeter”[6]

  A política neoliberal então proposta deveria visar “a vida social e individual como um todo” no intuito de “mudar o próprio homem”, e não apenas criar condições para que sua suposta natureza capitalista florescesse. Ao contrário dos defensores do laissez-faire, os primeiros neoliberais defendiam uma profunda intervenção estatal no modo de vida para permitir a “preservação de eficiência da ordem do mercado”[7].

  A disputa por um modo de viver profundamente baseado nos valores de mercado não se restringiu aos espaços acadêmicos e ganhou o mundo nas décadas posteriores. Em entrevista de 1981, a ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher deixa evidente sua política em prol deste novo tipo de racionalidade:

  “O que me irritou em toda a direção da política nos últimos 30 anos é que sempre foi orientada para a sociedade coletivista. As pessoas se esqueceram da sociedade de indivíduos. E eles dizem: eu conto, eu importo? A resposta curta é sim. E, portanto, não é que eu estabeleça políticas econômicas; é que me proponho realmente a mudar a abordagem, e mudar a economia é o meio de mudar essa abordagem. Se você mudar a abordagem, realmente estará com o coração e a alma da nação. Economia é o método; o objetivo é mudar o coração e a alma.”[8]

  Nas últimas décadas do século XX, a disputa neoliberal pelo “coração e pela alma” dos indivíduos foi essencial para a expansão da mentalidade de mercado de maneira inédita. Os governos de Thatcher no Reino Unido (a partir de 1979) e Ronald Reagan nos EUA (de 1981 a 1989) incorporaram essa posição e combinaram uma profunda disputa ideológica com o incentivo à uma reorganização dos métodos de produção e um intenso ataque às organizações dos trabalhadores e aos movimentos sociais.

  As mudanças nos métodos produtivos se combinaram às narrativas do sucesso individual e dos benefícios do livre-mercado, estabelecendo maior controle do tempo e das práticas dos trabalhadores ao mesmo tempo que buscavam ganhar suas “almas” para um modelo de competição que permitiria seu desenvolvimento individual. O toyotismo, modelo marcado pela flexibilidade e pela adaptação das linhas de produção, se encaixou como uma luva no nascente mundo neoliberal e remodelou não somente suas plantas produtivas, mas todo um conjunto de percepções e expectativas dos trabalhadores. Conforme Rafael Silva:

  “As atuais técnicas de gestão – o toyotismo ou ohnismo, as ferramentas de gestão, os mais diversos sistemas de padronização, o conceito da qualidade total – atuam se apropriando dos saberes dos trabalhadores, padronizando suas atividades, de forma a possibilitar a troca de efetivos – até mesmo realizando mudanças geográficas na produção -, a precarização da situação do trabalhador através de terceirizações e simplificação da tarefa e, ao mesmo tempo, a intensificação da produção e do trabalho para os que permanecem na ativa. Esses efeitos ainda são camuflados pelas falsas crenças de ganho de sentido no trabalho, à medida que a empresa dá ênfase à “colaboração”, à participação dos trabalhadores com suas ideias, à igualdade e redução das distâncias hierárquicas, ao horário flexível, etc. Se não fosse o suficiente, a facilidade em fragmentar a produção e precarizar funções na medida em que os sistemas avançam em sua padronização e informatização do trabalho, resulta em uma maior dificuldade de resistência por parte dos trabalhadores, seja devido à redução do poder de barganha pelo enorme exército de reserva (qualificado) e pela perda de importância em seus saberes que já foram convertidos em capital de conhecimento, seja pela dificuldade de cooperação e organização entre estagiários, temporários, terceiros, efetivos, estáveis, etc.”[9] 

  Ataques importantes à organização dos trabalhadores também estão diretamente relacionados a esse processo. O golpe de Pinochet em 1973 transformou o Chile no “laboratório neoliberal”, e as derrotas das greves históricas dos controladores de voo norte-americanos em 1981 e dos mineiros ingleses em 1984 tiveram enorme significado político para a retirada de direitos de categorias de trabalhadores do mundo todo.

  A derrocada do bloco soviético no final da década de 1980 aprofundou ainda mais a posição neoliberal e, apesar das crises econômicas vividas desde então, ela continua sendo vendida como única possibilidade de organização social viável. Sua razão particular torna-se a norma de ação e pensamento no Brasil desde os anos 1990, se refletindo na eliminação de barreiras comerciais, na derrubada de regulamentações sobre a mão de obra e na adaptação completa do Estado e da casta política às necessidades do capital financeiro.

  Neste início do século XXI, podemos arriscar que esta racionalidade neoliberal reestrutura as relações humanas a partir de sua difusão generalizada. Um mundo de tempos e espaços cada vez mais mercantilizados leva à fragmentação e ruptura das diversas esferas da vida em prol da produtividade constante, remodelando rotinas e expectativas a partir desta necessidade. Esta nova racionalidade articula as expectativas e desejos humanos através de suas próprias necessidades produtivas, exatamente com defendia explicitamente Margareth Tatcher.

  O “sujeito empresarial” protagonista destas relações sociais é um competidor por natureza, incorporando em sua forma de vida certas características das próprias empresas em sua subjetividade e se relacionando com o mundo a partir daí, cristalizando nele próprio o padrão corporativo. A competição contra os pares, a defesa do patrimônio, a exaltação da própria imagem e a busca constante por trocas lucrativas, sejam elas econômicas ou simbólicas, marcam este modo de viver radicalmente inspirado na forma-mercadoria.

Forma de vida neoliberal

  Esta “forma de vida” neoliberal partilhada generalizadamente no contexto histórico atual articula os diversos campos da experiência humana através de finalidades mercadológicas, e partir desta perspectiva pode ajudar a pensar sobre as particularidades do sofrimento psíquico entre militantes. Segundo Vladimir Safatle:

  “Chamamos de ‘forma de vida’ um conjunto socialmente partilhado de sistemas de ordenamento e justificação de conduta nos campos do trabalho, do desejo e da linguagem. Tais sistemas não são simplesmente resultados de imposições coercitivas, mas da aceitação advinda da crença de eles operarem a partir de padrões desejados de racionalidade. Pois toda forma de vida funda-se na partilha de um padrão de racionalidade que se encarna em instituições, disposições de conduta valorativas e hábitos.

  Nesse sentido, trata-se de demonstrar como ‘cinismo’ é a categoria adequada para expor a normatividade interna da forma de vida hegemônica do capitalismo contemporâneo. Falar de ‘hegemônica’ implica, nesse contexto, admitir que, mesmo não sendo aquela que numericamente cobre a maioria dos casos, ela tem a força de determinar a tendência de desenvolvimento de todas as demais. Tal hegemonia vem do fato de essa forma de vida implementar modos de cultura e valoração que realizam a normatividade intrínseca ao processo de reprodução material da vida na fase atual do capitalismo.”[10] 

  Nossa forma de vida está diretamente relacionada ao mesmo padrão de racionalidade que norteia o processo de reprodução material capitalista. A modulação “do trabalho, do desejo e da linguagem” a partir da perspectiva das necessidades do capital alicerça esta racionalidade trazendo consigo tanto aspectos fundamentais das relações de mercado como novos elementos característicos da fase atual do sistema. E esta racionalidade afeta diretamente também a forma como encaramos nossa militância política.

  A vida militante não se realizada separada destes “sistemas de ordenamento e justificação de conduta” e nosso sofrimento psíquico possui elementos comuns originários de estruturas do pensamento neoliberal incorporados em nossos modos de viver. As características exigidas pelo modelo de organização social (como o rígido controle do tempo, o foco na concorrência e a individualização de desempenhos) influenciam as fileiras de movimentos e organizações, reproduzindo diversos mecanismos presentes no processo de exploração capitalista contemporâneo e sendo ponto de partida para sofrimentos e sintomas que percebemos em nós mesmos e em nossos companheiros e companheiras.

  Questões incômodas reconhecidas no interior da militância como as repetições da divisão social e sexual do trabalho, as reproduções de comportamentos machistas, racistas e LGBTfóbicos, a despolitização dos conflitos interpessoais, entre outras, são frutos deste contexto histórico de exploração e alienação, fragmentado e competitivo, no qual estão inseridas. E as dificuldades das organizações na abordagem destes tipos de problemas também estão relacionadas aos mecanismos gerenciais deste contexto.

   Questões muitas vezes rotuladas de forma simplista como “subjetivismo” podem ser fruto de análise e formulação política. Qualquer experiência organizativa contemporânea é marcada por esta racionalidade neoliberal que organiza as relações humanas e concorre para alienar militantes e ativistas dos verdadeiros sentidos de sua ação transformadora. Nesse movimento, quando nos recusamos a debater os sintomas do mal-estar social e sua expressão através dos sintomas particulares acabamos como reprodutores inconscientes da mesma lógica que declaramos combater.

  A “natureza cínica do capitalismo contemporâneo” [11] promove o acirramento de formas de alienação e sofrimento para ajustá-las de maneira correspondente à esta forma de vida contemporânea, retirando a reflexão sobre cada tarefa ou função, esvaziando os sentidos na ação política e congelando as possibilidades de pensamento. Na militância, esta combinação entre a evidência dos sintomas e a alienação sobre seus sentidos gera dois efeitos contrários porém análogos: por um lado afasta camaradas da dinâmica militante, que honestamente a identificam como parte das causas de seu sofrimento, enquanto por outro obstrui a autorreflexão daqueles que continuam, negando a questão das subjetividades e adubando desvios como o sectarismo e a burocratização.

  Portanto, é necessário pensar nos sintomas psíquicos particulares apresentados no contexto da militância também como indicadores que exigem uma reflexão coletiva, não somente para entender suas raízes como para estabelecer políticas que dialoguem com estas questões tanto em seus aspectos particulares como no âmbito das organizações políticas e movimentos.

A racionalidade neoliberal na militância

  A militância socialista é a iniciativa consciente diametralmente contrária à esta forma de organização social, mas não está imune à influência da racionalidade neoliberal. Em diversos aspectos podemos observar seus refinados mecanismos de reprodução, seja de forma subjetiva através de comportamentos e formas de sofrimento, seja na forma objetiva da burocratização e de outros desvios políticos.

  A racionalidade neoliberal aprofunda a alienação do trabalho ao estabelecer a competição voraz em um processo produtivo radicalmente fragmentado, transformando cada vez mais os sujeitos em competidores apartados do processo geral e definidos por seu rendimento funcional individual. Nesta dinâmica, quanto mais internalizada estiver a lógica da competição maior será o desempenho do competidor na aplicação de seu procedimento, e neste contexto a reflexão sobre os processos gerais é combatida porque pode inclusive atrapalhar o andamento dos procedimentos específicos.

  Em outras palavras: não se espera que um atendente de telemarketing reflita sobre toda a cadeia de atendimento, e sim que se especialize em seu procedimento específico e tenha um rendimento maior que seus pares com a mesma função. Ele deve estar preparado para se adaptar a uma nova função a qualquer momento, continuando sua competição pelo rendimento, mas nunca terá qualquer tipo espaço para refletir sobre a gestão dos processos gerais nos quais está inserido.

  A lógica militante funciona de forma inversa. Nas organizações políticas e movimentos sociais espera-se que toda a militância reflita sobre as questões gerais dos coletivos que compõe, inclusive exercendo democraticamente influência sobre os rumos desses coletivos. Ao contrário da subserviência do capital, a lógica emancipatória da militância socialista coloca a crítica no centro e através dela articula e organiza sua ação na realidade. A formação teórica funciona para a ampliação dessas “armas da crítica” que alargam as possibilidades de reflexão tanto sobre processos particulares como gerais.

  O trabalho militante é diametralmente oposto às relações de trabalho capitalistas porque não é alienado, não tem seu fruto expropriado e pode ser reconhecido coletivamente através de muitas formas, seja em uma vitória do movimento social, uma conquista sindical, um sucesso eleitoral, no fortalecimento das organizações, nos novos camaradas que se aproximam, na produção intelectual crítica, no desenvolvimento dos processos mais amplos, entre tantas outras. Nesse sentido, apesar de ser afetado pelas responsabilidades e pressões similares aquelas do mundo do trabalho capitalista (e na maioria das vezes sofrendo as duas formas de pressão combinadas), os militantes partem de uma posição de autonomia em sua relação com a atividade política.

  Entretanto, a militância não se articula a partir de interesses particulares ou por relações de afinidade, ainda que estes sejam elementos importantes, mas sim pela compreensão comum que os sujeitos tem entre si para agir coletivamente na realidade e por esta autonomia exercida por cada camarada em sua ação política. E, para esta ação, a seriedade e constância são elementos essenciais que impõe à vida militante patamares cada vez mais complexos de exigências a medida que se aprofunda a atividade política.

  Portanto qualquer forma de militância séria se organiza para o avanço de uma agenda política que, caso tenha sucesso, leva a ainda mais atividade, mais responsabilidades e mais pressão. O crescente compromisso com um projeto coletivo leva os indivíduos a uma relação profunda com suas organizações, diferentemente das relações utilitárias constitutivas do mundo do trabalho capitalista, mas que também gera um esforço gradualmente cada vez mais profissional e impõe duras escolhas de vida aos militantes.

  Para este impasse não há saída. Idealizar a militância como um espaço que pode superar internamente as pressões sociais do mundo do trabalho é impossível não só por um motivo externo, afinal o mundo do trabalho capitalista continua existindo, mas também por um motivo interno porque a ação política dos trabalhadores precisa responder aos seus desafios com rigor e eficiência, e isso exige bastante das pessoas que aceitam esta responsabilidade. Apesar de ainda podermos avançar muito na construção de relações mais saudáveis, não é possível pensar os espaços da militância como exclusivamente terapêuticos porque as tarefas impostas a estes espaços tem outro sentido coletivo prioritário.

  Como a militância não é um espaço livre da dinâmica das relações capitalistas nem isento da reprodução de sintomas sociais, os esforços que exige e as decisões pessoais que implica obviamente também constroem narrativas de sofrimento, e não há como ser de outro jeito. Uma ação política completamente apartada das práticas e dos símbolos presentes em nosso momento histórico seria uma ação fora da realidade, um retorno as propostas já desmoralizadas do socialismo utópico.

  Perceber isto é importante porque o debate sobre o sofrimento psíquico dos militantes não pode partir do patamar da sacralização dos espaços da militância, mas sim de suas necessidades na vida real, com todas as contradições e reproduções de sintomas oriundos do modo de produção capitalista. A mentalidade de nossa época nos torna sujeitos empresariais e este processo tem relação direta com nossas crises subjetivas, com nossos conflitos pessoais e com a despolitização de nossa ação política.

Sofrimento psíquico no contexto militante

  Os preconceitos que envolvem a questão da saúde mental tem origem no histórico de violência e segregação que constituiu a maior parte da história das terapias para os sintomas psíquicos, e o combate aos antigos modelos de tratamento continua sendo parte importante da luta pela atenção pública à saúde mental. A ideia do sofrimento psíquico como processo análogo a um doença física, tão compartilhada não só entre a população como na vanguarda, parece ser um resquício dos antigos modelos de tratamento e exige uma abordagem distinta.

  É necessário encarar de forma científica o fenômeno do sofrimento psíquico e enquadrá-lo como elemento importante de análise da época em que vivemos, buscando romper com tabus e preconceitos que rondam o tema. Para Freud, as diversas formas de sofrimento e seus sintomas decorrentes são mecanismos de comunicação das estruturas psíquicas humanas sobre os impasses e insuficiências que verificamos perante a natureza (corpo e mundo externo), as formas de organização social e aos modos com os quais nos relacionamos com outros seres humanos. Conforme diz:

  “O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos. O sofrimento que se origina desta fonte nós experimentamos talvez mais dolorosamente que qualquer outro; tendemos a considerá-lo um acréscimo supérfluo, ainda que possa ser tão fatidicamente inevitável quanto o sofrimento de outra origem.”[12]   

  Esta percepção das origens do sofrimento é importante para qualificar nossas posturas, reduzindo uma prática comum nas organizações que encara sintomas psíquicos como frutos do acaso, de maneira semelhante às doenças causadas pelos vírus e bactérias. Não se trata aqui de aprofundar este debate, mas de verificar que as formas de sofrimento e seus sintomas são parte do desenvolvimento da história dos sujeitos que os sofrem e não simples fruto de contingências genéticas ou momentos de fragilidades aleatórios. Da mesma forma sinaliza Christian Dunker:

  “As doenças mentais não são nem doenças, no sentido de um processo mórbido natural, que se infiltra no cérebro de alguns indivíduos, seguindo um curso inexorável e previsível, nem mentais, no sentido de uma deformação de personalidade. As doenças mentais, ou melhor, seus sintomas, realizam possibilidades universais do sujeito, que se tornam coercitivamente particulares ou privativamente necessárias. Em outras palavras, um sintoma é um fragmento de liberdade perdida, imposto a si ou aos outros. Por isso, há algo que concerne a todos, de maneira universal, em cada uma das formas particulares de sofrimento. Assim, a normalidade é apenas normalopatia, ou seja, excesso de adaptação ao mundo tal qual ele se apresenta e, no fundo, um sintoma cuja tolerância ao sofrimento se mostra elevada”[13]

  Perante esta interessante provocação, nosso primeiro passo é afirmar que a questão do sofrimento nunca trata somente de uma situação específica, como se a pessoa que se queixa estivesse inoculada aleatoriamente por uma doença. A questão está sempre relacionada ao contexto subjetivo das experiências de laços sociais construídos e rompidos, e isto traz sempre o debate sobre o coletivo porque as organizações e movimentos são importantes na construção destes laços na vida militante.

  Não se pode separar formalmente as inseguranças que geram angústias em companheiras mulheres do ambiente político no qual elas vivem, não se pode separar os efeitos da sensação de exclusão vivida pela militância negra da postura das organizações perante a luta antirracista, não se pode separar as angústias geradas pela escassez material da reflexão sobre o desenvolvimento político de camaradas da classe trabalhadora. Estes não são três exemplos, mas três vertentes de uma questão que sempre surge unificada nas queixas dos indivíduos que sofrem e, ao invés de selecionar militantes somente entre os normalopatas, as organizações e movimentos precisam estar dispostas ao diálogo sobre sofrimentos e sintomas como parte da reflexão necessária sobre si mesmas.

  Reforçar os sentidos políticos amplos das nossas tarefas ajuda a afastar posturas sectárias e autoproclamatórias tão atraentes quando se realizam embates políticos entre a esquerda ou com outros setores da sociedade. A busca pela construção de agrupamentos que se proponham lutar pela realização de nossos sonhos de uma sociedade mais justa é uma tarefa carregada de sentido histórico, mas também abre espaço para a autocontemplação e para a construção de novos fetiches que influenciam na reprodução de sintomas da alienação no contexto da militância. Ao debater sobre a “lógica do condomínio” que identifica como marca da racionalidade neoliberal no Brasil atual, Dunker realiza outra reflexão que também nos ajuda a pensar a militância:

“A utopia é uma ilusão que se sabe ilusão. Justamente por isso ela exerce a função reguladora própria do ideal. Quando a função do ideal é substituída pela função de um objeto determinado, está estabelecida a condição para os três tempos da fantasia do condomínio: fascínio totalitário, redução identitária e servidão voluntária. Ora, essa substituição regressiva, que procura alocar um objeto empírico no lugar da falta estrutural, dissociando crenças e saberes, mimetizando regras particulares com leis universais, é exatamente a estrutura social do fetichismo. Esse modo de divisão primário (…) é correlato psicanalítico de outro processo de produção de falsos universais, ou seja, o que Marx chamou ‘fetichismo da mercadoria’.”[14]

  Os três tempos da fantasia ditos acima podem ser analisados também na vida militante como parte do cenário do sofrimento subjetivo. O fascínio totalitário (a organização como resposta total à realidade), a redução identitária (a organização como expressão acabada de determinada identidade) e a servidão voluntária (a troca da reflexão particular pela “segurança” proporcionada pela organização) são três movimentos que podem se combinar no processo de alienação do trabalho militante, fortalecendo posturas que interditam o diálogo e rompendo laços de confiança e solidariedade em diversos níveis.

  Muitos debates políticos realizados na redes sociais são exemplo disso, falando sobre questões totalizantes de forma fragmentada, reduzindo a heterogeneidade do mundo real e servindo prioritariamente à autoafirmação, realizados com poucas palavras, muitos símbolos gráficos e alta velocidade. Todos sempre se consideram vitoriosos neste tipo de debate justamente porque ele não produz sínteses, não costuma superar posições nem formular para o futuro, deixando ao final quase sempre um mal-estar gerado pelo bloqueio das possibilidades de diálogo. Não por acaso muitos declaram sofrer a partir da interação com as redes sociais devido a esta dificuldade da comunicação na qual assumir posturas cínicas e realizar ofensas é muito mais simples.

A questão da culpa

  Este processo de alienação também parece fortalecer a sensação de culpa. O sofrimento psíquico no contexto militante é frequentemente envolto em uma aura de culpa, como se os militantes estivessem em eterna dívida com os coletivos nos quais estabelecem seus laços ou como se a existência de um sintoma significasse fraqueza ou falta da compreensão política. Esta sensação de culpa não por acaso atinge ainda mais as mulheres e também parece estar ligada às exigências do mundo do trabalho capitalista, turvando a consciência sobre o processo da ação militante (tornando-a cada vez mais externa ao próprio militante, que vai transformando-se em simples operador), introjentando os valores do sucesso empresarial individual e endereçando as responsabilidades de cada situação concreta exclusivamente para os indivíduos que as vivem.

  A posição simplista que determina o capitalismo como origem exclusiva dos sintomas particulares e em seguida propõe a militância enquanto única saída terapêutica possível é um exemplo de discurso que fortalece esta reação de culpa, anulando questões subjetivas que tendem a se amplificar quanto mais as tentamos esconder. Nesse sentido se aproxima do discurso das corporações que se utilizam de campanhas de autoajuda na tentativa de moralizar um ambiente de trabalho degradante pois os dois casos desfocam as relações estabelecidas concretamente em prol da afirmação de um discurso ideal impossível.

  A ideia jocosa porém difundida do “milita que passa”, onde a alternativa para o sofrimento psíquico é sempre uma nova tarefa ou o incremento de responsabilidades, acaba por fortalecer duas saídas ruins nos momentos de crise: a primeira é a aceitação do “milita que passa” e a tentativa de negação dos sintomas, recusando a reflexão subjetiva; a segunda é o abandono da militância sem mediação, declarando-a como fonte de origem do sofrimento. Os personagens destes dois caminhos distintos tem em comum tanto a visão negativa um pelo outro como a postura de negação de uma possível síntese que se utilize das angústias que ambos vivem como ponto de partida para a construção de novas relações militantes.

  As duas saídas recusam verdades existentes em ambas as posições extremadas. Estas verdades existem tanto no “milita que passa” (afinal se organizar contra o capitalismo é a única ação científica contra os mórbidos sintomas sociais que vivemos) como no abandono da militância (afinal ela também é uma fonte de sofrimento), e o diálogo entre as duas posições é o diálogo existencial permanente da vida militante. Infelizmente, uma carga moral despolitizada pode impedir este diálogo em meio a sensações de culpa, inseguranças e frustações, e acaba por substituir a análise das questões subjetivas no contexto militante por posições que recusam este debate.

  Um exemplo desta recusa está na utilização do verbo “quebrar” para quem se afastou da militância, construindo uma barreira discursiva que divide bem o lado de dentro do lado de fora. Este linguajar sectário demonstra a dificuldade em lidar com o tema da subjetividade pois existe um número infinito de questões que levam à redução da atividade militante ou ao afastamento e na imensa maioria das vezes são marcadas pela divisão social e sexual do trabalho. Isso faz com que a grande parte daqueles e daquelas que recebem este estigma na verdade deveriam ser disputados permanentemente por organizações que se demonstrem cada vez mais receptivas e saudáveis em suas dinâmicas internas.

Pensar e agir diferente

  Uma nova abordagem sobre a questão do sofrimento psíquico na militância é possível e urgente. Refletir sobre os processos sociais do nosso tempo e sua influência na luta socialista é o dever cotidiano de cada militante e o tema das subjetividades se faz cada vez mais presente neste momento de colapso e transição que vivemos em escala mundial. E formular iniciativas práticas para dar respostas aos novos desafios precisa ser a consequência imediata desta reflexão.

  O primeiro passo perante a questão do sofrimento psíquico parece ser então a mudança de postura. Este tema não pode ser um tabu nas organizações e movimentos, mas da mesma forma não pode ser tratado como exaltação ao subjetivismo, as organizações precisam propiciar espaços saudáveis de fala e escuta sem que esta postura signifique interromper sua mobilização e seus processos ordinários. Nesse sentido, os militantes e ativistas precisam ser acolhidos de forma politizada pelas organizações, sem juízos morais perante as situações de sofrimento e sempre refletindo o que cada situação de dor pode produzir enquanto acúmulo coletivo para as futuras lutas.

  Também é necessário estimular o diálogo e a escuta entre a militância, não só entre militantes com perfis similares, mas também aqueles em diferentes tarefas e mesmo em diferentes organizações. Perante a identificação do sofrimento psíquico é importante que todos e todas tenham camaradas de confiança com os quais possam compartilhar questões particulares, falar e escutar, buscando nomear e caracterizar o que vivem. Na mesma medida em que o neoliberalismo fragmenta e instrumentaliza as relações humanas, parte de nossa postura deve ser humanizar, aprofundar e diversificar as relações vivenciadas no contexto militante, buscando dar mais riqueza ao nosso panorama de possibilidades. Uma organização na qual militantes não se sintam a vontade para falar entre si sobre suas questões subjetivas está reproduzindo os piores sintomas do modo de produção atual.

  A busca por acompanhamento e apoio profissional a partir do desenvolvimento de sintomas também deve ser incentivada. As diversas propostas terapêuticas tem aprofundado o debate sobre temas contemporâneos essenciais e ajudado muitos militantes, colaborando com a construção da autonomia individual tão importante para o desenvolvimento de quadros políticos. Em um ambiente saudável não se pode haver nenhuma insinuação de culpa perante o militante que identifica que sofre, assim como não pode haver nenhum tabu sobre este tema e nenhuma restrição à busca por apoio terapêutico.

  Como muitas vezes a ajuda profissional é escassa o apoio à iniciativas de clínica social é central. Os tratamentos terapêuticos no campo da saúde mental são cada vez mais essenciais à medida que os elementos de degradação social avançam, e proporcionar espaços terapêuticos orientados profissionalmente, sejam individuais ou coletivos, será uma tarefa cada vez mais necessária nos diversos espaços onde a militância se desenvolve, principalmente nos territórios onde as formas de violência do mundo capitalista se fazem mais presentes entre os trabalhadores e a juventude.

  Muitas vezes a percepção de um sintoma também produz mudanças na dinâmica de tarefas e isso deve ser debatido da maneira mais tranquila e aberta possível nos espaços apropriados, sempre respeitando as queixas e demandas de quem as declara e ao mesmo tempo politizando-as, identificando-as no contexto das necessidades da organização e trabalhando para que o processo de desenvolvimento da questão colocada ocorra de maneira comum. Aqueles que acompanham a dor de seus camaradas também sofrem, e esta característica transitiva do sofrimento torna muito importante este processo de diálogo organizativo porque uma mudança de tarefas ou um afastamento gerado por algum tipo de mal estar ou sintoma apresentado afeta todos que testemunham e vivem este tipo de situação.

  A relação militante com o tempo também pode ser melhor desenvolvida, afinal a atuação política se dá em distintas temporalidades que precisam ser respeitadas. O tempo da luta parlamentar corre de modo diferente do tempo da construção territorial, o tempo de uma greve é totalmente diferente do tempo da rotina de trabalho, e levar isso em consideração é essencial porque as demandas de padronização generalizada do nosso mundo tendem a apagar estas diferenças essenciais para a ação política. E este apagamento gera angústias tanto na militância que opera em tarefas mais dinâmicas (que se queixa pelo ritmo frenético) como na militância que opera em tarefas de temporalidade mais lenta (que se queixa pela falta de reconhecimento).

  Politizar o tempo significa ter uma relação menos alienada com o conjunto de atividades exprimidas em determinada faixa temporal, e esta tarefa passa tanto por organizar tempo para o estudo como separar tempo para o descanso e a reflexão, dando sentidos para todos os diversos momentos da vida e enriquecendo os sentidos das próprias tarefas políticas. A relação entre trabalho assalariado, trabalho político, desenvolvimento de interesses individuais e descanso é parte essencial de uma dinâmica de militância que seja sustentável a longo prazo, e ajudar a organizar esta relação entre os militantes é parte importante da tarefa dos dirigentes políticos.

  Escutar com atenção, falar com cuidado, refletir sinceramente e demonstrar apoio são comportamentos importantes perante quem busca suporte e diálogo. A crise de nossa sociedade apresenta sintomas cada vez mais duros e esta postura de apoio mútuo é essencial para a construção de laços sociais que nos fortaleçam para enfrentar esta realidade embrutecedora. Isto de forma alguma deve substituir os espaços terapêuticos profissionais, e muito menos paralisar o funcionamento das organizações, mas se faz cada vez mais necessário que os espaços militantes se construam mais saudáveis e acolhedores para o conjunto da classe trabalhadora e da juventude.


[1] PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo. São Paulo: Sundermann, 1917, pgs 142-143.

[2] MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, pgs 19-21.

[3] MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008, pg 49.

[4] MARX, Karl. A ideologia alemã. In Obras Escolhidas. Lisboa: Avante, 1982, pg 5.

[5] Idem, pg 26

[6] DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016, pgs 90-91.

[7] Idem, pg 178

[8] THATCHER, Margareth. Interview for Sunday Times.1981. Acessado em https://www.margaretthatcher.org/document/104475 (tradução livre)

[9]SILVA, Rafael A. A exaustão de Sísifo: articulação entre toyotismo, neoliberalismo e teoria do capital humano. Londrina: Revista Mediações, vol 11, nº 1, 2008, pg 148.

[10] SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008, pg 12.

[11] Idem, pg 19.ta

[12] FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. São Paulo: Penguin & Companhia da Letras, 2011, pg 20.

[13] DUNKER, Christian. Mal estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo, Boitempo, 2015, pg 32.

[14] Idem, pg 59.


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Pedro Micussi