Compartilhar a mudança: uma alternativa para Porto Alegre

A luta pela emancipação do povo vai muito além dos muros da cidade, mas a prefeitura pode melhorar a vida das pessoas e avançar na construção de uma cidade acolhedora, segura e democrática, agregando valor político ao país inteiro.

Luciana Genro 26 abr 2016, 15:58

Este texto tem como base teórica as elaborações de David Harvey, Raquel Rolnik e do Podemos espanhol. É uma contribuição ao debate que teve início no ano passado nos eventos “Cidade para Quem” e “Cidade das Mulheres”, que reuniram quase 2 mil pessoas com a presença de Raquel Rolnik, Marcelo Freixo, Salo de Carvalho, Márcia Tiburi, Rosana Pinheiro-Machado, entre outros e outras lideranças e militantes dos movimentos sociais. Através da plataforma Compartilhe a Mudança e das reuniões e encontros que já estamos realizando com pessoas, grupos políticos, partidos e movimentos queremos dar continuidade a este processo de discussão e de construção programática. Além das pessoas citadas ao longo do texto, quero agradecer à equipe que está ajudando a construir o diagnóstico dos problemas e as propostas para o nosso programa e aos que contribuíram com os textos que estarão disponíveis na plataforma.

Estamos num momento de emergência social no Brasil e na nossa cidade. A crise econômica e a crise social se agravam. O povo vive dificuldades imensas.

Na nossa Porto Alegre os números não mentem:

  • 350 mil pessoas vivem em áreas irregulares, desassistidas pela prefeitura ou com serviços públicos municipais de baixa qualidade;
  • Quase 200 mil pessoas estão desempregadas na Região Metropolitana;
  • 50 mil famílias vivem com renda per capita de R$ 440,00;
  • 70 mil chefes de família, na sua maioria mulheres jovens, têm renda de apenas R$ 880.

Estes números mostram o quanto interessa às representações políticas manterem uma situação que lhes assegura seus privilégios e reproduz infinitamente as desigualdades.

Por trás dos números frios está o povo real, que vive um cotidiano de salários desvalorizados, transporte coletivo precário e caro e saúde pública em franca situação de decadência. Precisamos renovar a política, o país, a cidade.

Precisamos superar obstáculos e construir novos caminhos.

A eleição pra prefeitura abre uma janela de oportunidade. A luta pela emancipação do povo vai muito além dos muros da cidade. Mas, se é verdade que a Prefeitura não poderá solucionar todos os problemas isoladamente, é também verdade que pode melhorar a vida das pessoas, avançar na construção de uma cidade acolhedora, segura e democrática, agregando valor político ao país inteiro.

É tempo de valentia.

Porto Alegre precisa de um conjunto de políticas públicas produzidas com intensa participação da sociedade – a partir dos interesses e necessidades da sua população de baixa renda, da juventude, das mulheres batalhadoras –, que defendam os direitos fundamentais desta cidadania, particularmente na saúde, no transporte coletivo e na educação.

É preciso criar e valorizar os recursos e infraestruturas públicas, garantindo políticas de assistência social qualificadas, saúde, educação, moradia, transporte e lazer de qualidade para todos – e não somente para quem tem condições de pagar.

O grupo político que governa a cidade transformou a Prefeitura num gigantesco aparato burocrático de omissões. Os políticos deste pacto de governabilidade sacrificam os direitos do povo, mas garantem os interesses dos poderosos de sempre, que colocam seus interesses privados acima do interesse público.

A apropriação da cidade pelo seu povo só ocorrerá se os movimentos sociais e as organizações populares unirem-se para derrubar as barreiras da burocracia e da arrogância, que distanciam o cidadão comum dos governos democraticamente eleitos.

A resposta tem que ser de mobilização e de articulação dos movimentos nessa luta para que as cidades sejam nossas.

Precisamos arrombar as portas das instituições que estão tão distanciadas do povo.

Junho de 2013 mostrou que o que parecia inimaginável não é mais impossível.

Para chegar lá nos inspiramos nos melhores exemplos do mundo atual. Na Espanha, as prefeituras de Barcelona e Madri mostram que é possível governar com uma plataforma anticapitalista, cidadã e democrática1.

O fenômeno Bernie Sanders no Partido Democrata dos Estados Unidos, um candidato contra Wall Street em pleno coração do capitalismo e que colocou a favorita Hillary Clinton contra a parede, é outro sintoma de que o imprevisível já não é mais impossível, pois novos possíveis se abrem.

Bernie foi prefeito de Burlington, Vermont, de 1981 a 1989, e enfrentou grandes proprietários de terras urbanas, garantindo moradia acessível aos mais pobres. Ele brigou por uma orla que não fosse somente para a elite, estimulou a economia cooperativa, desenvolveu programas voltados para as mulheres e jovens e ainda criou assembleias de planejamento de bairro, proporcionando-lhes orçamento para realizar projetos.

Nós também podemos.

Democracia real

O novo no Brasil é que importante parte da cidadania não está disposta a resignar-se diante das injustiças e organiza-se para defender seus direitos.

Enquanto o sistema político tenta circunscrever a participação popular ao momento eleitoral, a mobilização social do povo insatisfeito pode fazer a relação de forças ficar favorável à democracia real, na qual a criação de novos poderes democráticos é essencial para a transformação do poder político.

Este é o desafio que propomos para Porto Alegre.

Aqui no Brasil presenciamos a primavera carioca de 2012 que levou Marcelo Freixo a 30% dos votos pra prefeitura do Rio.

Em 2013 este processo deu um salto com as grandes mobilizações de rua, na luta que explodiu contra o aumento das tarifas de ônibus.

Nós do PSOL de Porto Alegre temos orgulho de ter sido parte importante, tanto das manifestações de rua como da ação judicial vitoriosa, encabeçada por Pedro Ruas, Fernanda Melchionna, Roberto Robaina e Luciana Genro.
Temos certeza que 2013 não foi em vão. Seus ecos recentes foram as ocupações das escolas em São Paulo.

Por todo o Brasil e em especial na nossa Porto Alegre vão continuar reverberando as demandas por transporte, educação, saúde, moradia, enfim, pelo direito à cidade – são direitos que não foram atendidos pelos governos e estão mais vivos do que nunca como necessidades do povo e na luta dos ativistas.

As eleições municipais colocam, mais uma vez, o debate sobre a necessidade de mudanças estruturais na nossa cidade.

Mas estas mudanças só poderão se realizar através de um processo, do qual surja um governo popular conquistado e construído a partir de baixo.

Como enfatizam os companheiros do CEDS2 em seu documento “Por um programa de mobilização popular para a eleição municipal”, as últimas gestões da Prefeitura Municipal de Porto Alegre desmontaram grande parte dos serviços públicos.

O desmonte se dá através de terceirizações e da precarização dos serviços.

O remédio é o urgente fortalecimento da Prefeitura como prestadora de serviços sem a intermediação do empresariado.

Reconstruir a máquina pública

É claro que os problemas estruturais do capitalismo não podem ser resolvidos com modelos de gestão presos aos limites dos municípios.

Contudo, se pensarmos em uma luta política anticapitalista que se desenvolva em escalas maiores – nacionais e internacionais – , é inegável que a disputa pela cidade é parte da construção de um novo projeto de poder.
Assim, construir um modelo político de transição entre a barbárie capitalista cotidiana e um país onde a justiça prevaleça a partir de uma organização democrática da maioria passa por elaborar sobre que tipo de cidade queremos.

Isto é, passa pela discussão central de como mobilizar a cidadania para construir seu projeto independente de vida.

Será a partir das experiências que passamos, das lutas que travamos e da construção de novas formas de interlocução que consigam de fato incluir as pessoas e fazer com que elas se sintam protagonistas desse novo momento, desse novo processo político que estamos vivendo agora.

Os próximos anos serão de crise econômica e, portanto, de escassez de recursos públicos. Neste contexto é ainda mais importante chamar a cidadania a definir as necessidades e inverter as prioridades, colocando o interesse público em primeiro lugar.

Porto Alegre tem uma história de uma prática de luta, e aqui, em momentos econômicos difíceis, conseguimos experimentar e inovar, e aprendemos com isso. E como as lutas e os sonhos ainda seguem latentes na realidade, nós vamos conseguir experimentar e inovar de novo. E ir muito mais além.

Cidade para quem?

As cidades são fundamentais no processo de acumulação capitalista. Reivindicar o direito à cidade é essencial para derrotar o sistema capitalista e suas estruturas de poder e de exploração.

Para valorizar o capital e gerar lucro, os capitalistas estão sempre em busca de novas oportunidades de negócios rentáveis. Eles exercem pressão sobre os gestores das cidades para obter as melhores oportunidades.

O problema pode ser visto nas ruas: os capitalistas não estão interessados em garantir uma cidade democrática, aprazível, na qual todos possam sentir-se bem.

Ao longo das últimas duas décadas foram conquistados instrumentos legais importantes para garantir direitos sociais nas cidades.

Temos o Estatuto das Cidades e até um Ministério das Cidades. Conquistamos várias leis, Conselhos, Fundos e Planos, mas estes instrumentos, que foram resultado de muitas lutas sociais – e que depois da chegada do PT ao poder foram institucionalizados –, contêm ambiguidades importantes.

No momento em que nasceram, também a política neoliberal estava entrando com força.

Precisamos fazer com que de fato, e não só de direito, seja garantida a função social da propriedade prevista no Estatuto das Cidades.

Também é fundamental barrar os despejos forçados para garantir o direito inalienável à moradia, que a própria Constituição prevê.

Está mais do que na hora de efetivar uma sobretaxação das grandes propriedades, dos imóveis abandonados e dos vazios urbanos jogados à especulação através da progressividade do IPTU, bem como listar os imóveis públicos, constituindo um Banco de Terras com prioridade para habitação popular.

Muitos destes são devedores dos impostos municipais que poderiam ser cobrados por meio de dação em pagamento, mecanismo previsto na legislação para combater a sonegação e a especulação.

Os pontos mais avançados dos instrumentos legais que conquistamos na luta pela reforma urbana necessitam de mudanças estruturais para serem implantados.

Por exemplo, a lógica dos megaeventos. Ela ilude os cidadãos com a perspectiva de que eles deixarão um “legado” positivo para a cidade, mas na verdade deixam apenas um rastro de obras mal planejadas, inacabadas e superfaturadas através dos famosos “aditivos” aos contratos iniciais.

O legado da Copa do Mundo aqui em Porto Alegre é muito ilustrativo desta inversão de papéis que nós vemos nas cidades, onde quem ganha protagonismo são as grandes empreiteiras e construtoras.

Este legado foi principalmente obras inacabadas e/ou superfaturadas e remoções de milhares de famílias de suas casas. Em Porto Alegre há ainda muitas famílias lutando pelo seu direito de continuar morando em áreas relativamente nobres da cidade e não serem expulsas para áreas mais longínquas.

Há famílias que saíram das suas casas com a promessa de novas moradias mas não receberam nada. Na avenida Tronco, por exemplo, temos um cenário de devastação.

O verdadeiro legado da Copa foram as violações de direitos humanos nestas remoções forçadas e os lucros estratosféricos para as empreiteiras e para a FIFA, dois segmentos desmascarados em grandes escândalos de corrupção.

Dentro desta lógica, o que importa nas cidades é fazer negócio, garantir o lucro e fazer com que os investidores ganhem.

Tudo às custas dos pobres, às custas do bem estar nos bairros e às custas da mobilidade urbana, porque a lógica do automóvel particular cada vez mais inviabiliza a mobilidade urbana das cidades e não há investimento no transporte coletivo e em modais alternativos.

Junto com as pessoas mais vulneráveis, a natureza também é uma das vítimas constantes deste processo eterno de valorização do capital.

Em Porto Alegre a reciclagem ainda atinge uma parcela muito pequena do lixo produzido. Não há uma política de educação ambiental e os contêineres estão somente na região central da cidade.

Ao poder das concessionárias dos serviços públicos, das empreiteiras e das incorporadoras, soma-se nesta nova fase do capitalismo global a financeirização e a globalização das políticas urbanas.

Para o capital financeiro o único bom uso da cidade é aquele que vai gerar o maior lucro no futuro.

Por isso os grandes projetos, como é o caso do Cais Mauá, não contemplam pequenos negócios, lojinhas, moradias, e sim grandes torres, com shopping e escritórios de luxo, capazes de gerar grandes lucros.

O processo de expulsão dos pobres das áreas nobres ou centrais da cidade é a face mais cruel desta necessidade de fazer da cidade um grande negócio.

O sistema atual considera irregular e ilegal aquilo que é a prática concreta de vida das pessoas, a forma como elas se organizam para sobreviver e morar.

Nosso desafio é o inverso desta lógica, é pensar o espaço a partir da forma como as pessoas vivem, das suas necessidades, de como apoiar e desenvolver estas formas, invertendo o sentido da construção da cidade.
Porto Alegre assiste de forma cristalina a expansão predatória da especulação imobiliária na Zona Sul da cidade, especialmente em áreas verdes, e também com as intervenções urbanísticas desastrosas e autoritárias na orla do Guaíba.

Esses projetos não são moldados para suprir a carência de moradia digna ou para produzir espaços qualificados de lazer e de cultura à população. A lógica que os orienta é simplesmente a garantia do maior lucro com o menor custo possível a seus investidores.

Este processo também se expressa na criação do Investe POA, Empresa de Gestão de Ativos do Município de Porto Alegre, que poderá emitir de forma autônoma títulos da dívida municipal, dando em garantia receitas, terrenos, imóveis e o capital de todas as empresas públicas da cidade.

Além de fazer a dívida pública disparar, este mecanismo poderá por em mãos privadas todo o patrimônio da cidade e até mesmo a sua receita, e sem nenhum controle público.

Como definiu Roberto Robaina em artigo no Jornal do Comércio, trata-se de uma sociedade anônima cujo capital social inicial advém dos cofres públicos, mas seu poder e sua propriedade são também dos poderosos acionistas privados.

O governo municipal não tem poderes para mudar o sistema em nível nacional, mas pode e deve confrontá-lo dentro do seu alcance, colocando o interesse público acima do interesse das grandes corporações – que enxergam na cidade apenas uma possibilidade de negócios, não um polo ativo de cidadania e de qualidade de vida.

É preciso acabar com a intermediação privada dos serviços públicos.

Hoje estes serviços estão totalmente subordinados à lógica das terceirizações e concessões, o que limita de forma estrutural o atendimento das demandas sociais, subordinando-as ao interesse das empresas privadas.

Para isto é preciso resgatar a ideia do “BEM COMUM”. Como afirmam os companheiros do Raiz – Movimento Cidadanista em sua Carta Cidadanista, a reconstrução do BEM COMUM inclui o direito à cidade e à livre circulação nos espaços públicos, sem barreiras de qualquer tipo, sejam físicas, financeiras, culturais ou sociais.

Garantir direitos e construir um plano de emergência

Ao mesmo tempo em que lutaremos para atacar os problemas estruturais, apresentaremos um plano emergencial, de medidas concretas, pontuais e viáveis. Um plano para ser aplicado nos primeiros 100 dias de governo.
As medidas contidas neste plano serão construídas a partir do diagnóstico da cidade e da análise das finanças da prefeitura que estamos produzindo.

Ao mesmo tempo em que apontaremos as medidas emergenciais, trabalharemos com o objetivo estratégico de garantir os direitos sociais e os direitos humanos através de políticas públicas com controle social e transparência, exigindo dos governos estadual e federal que repassem os recursos que de direito são da cidade.

A segurança é uma preocupação permanente da população de Porto Alegre. A crise econômica nacional e o desmonte do Estado tem no aumento da violência uma das suas principais consequências.

Porto Alegre sofre diretamente as consequências da política desastrosa de ajuste promovida pelo PMDB no governo do Estado, e o vice-prefeito Sebastião Melo, que é do PMDB e foi o coordenador da campanha de Sartori, não pode ser isentado desta responsabilidade.

Ainda mais que Porto Alegre é a capital brasileira campeã em roubo de veículos, com índices que são quase o dobro da média nacional. É escandaloso que ao invés de cumprir seu papel na fiscalização dos desmanches ilegais, como é sua atribuição, a prefeitura alugue terrenos para este negócio, contribuindo, por ação ou omissão, com o crime de roubo de carros.

Desde sempre se sabe que desmanches são a porta de saída de peças de carros roubados. A fiscalização sobre eles deve ser dura e permanente, como parte de uma política municipal para combater o roubo de carros. O PSOL luta por uma CPI na Câmara Municipal para investigar este fato estarrecedor.

Além disso, a prefeitura pode e deve desenvolver uma política preventiva na segurança pública, que resgate os jovens que são alvo do tráfico e do crime organizado através de políticas de educação, cultura e trabalho.

É preciso também garantia de uma Guarda Municipal presente na cidade e de iluminação pública nas ruas e praças.

No caso da saúde pública também vivemos uma precariedade que atinge diretamente os mais pobres. Uma consulta com especialista em Porto Alegre pode levar dois anos para acontecer.

Por exemplo, áreas como a ortopedia, com 9982 pessoas na fila, estão estranguladas. Na área de saúde mental, conforme o SIMERS, há 7200 pacientes na fila para atendimento. No Pronto Atendimento da Cruzeiro do Sul pacientes de saúde mental são colocados no chão por falta de leito.

Garantir o acesso à saúde pública de qualidade é um desafio fundamental na busca por uma cidade mais justa. É inaceitável que os postos de saúde sigam com falta de médicos e até mesmo de materiais básicos para o atendimento. Os medicamentos são escassos e agora a ausência de farmacêuticos inviabiliza o acesso aos remédios nos postos de saúde.

Exemplo de descaso com vulneráveis sob responsabilidade direta do governo municipal é a situação dos abrigos que acolhem as crianças e adolescentes em situação de risco.

O Secretário da FASC chegou a ter seu afastamento determinado pela Justiça por negligenciar estas crianças, expondo-as a viver em ambientes insalubres e sem atendimento adequado, apesar dos esforços de funcionários dedicados.

Outro exemplo revelador da injustiça social que permeia nossa cidade é que só metade das crianças de 0 a 5 anos consegue lugar em creches e pré-escolas da capital, uma realidade que prejudica as crianças e as mulheres, forçadas a abandonar os estudos ou o trabalho para cuidar dos filhos. Agora é obrigatória a inclusão de 100% das crianças, no mínimo, a partir dos 4 anos.

Combater as desigualdades

Nossa cidade é a capital mais segregada do país, conforme análise feita pelo jornal Nexo a partir do índice demográfico de dissimilaridade.

A cidade “branca” vista por quem circula nas áreas mais nobres de Porto Alegre esconde uma periferia na qual a população negra convive com a pobreza e a falta de serviços públicos básicos.

Para combater esta realidade é preciso revolucionar a urbanização dos espaços públicos com uma perspectiva social, de inclusão, de cultura e lazer.

Isso passa por pensarmos a dinâmica do fluxo entre centro e periferia, que nas grandes cidades obedece à lógica capitalista: a segunda funciona como fornecedora de mão de obra ao primeiro.

Para fazer esse trajeto, a população precisa pagar caro pelo transporte que deveria ser público e se deslocar durante horas em condições totalmente precárias.

Quando retorna para suas casas, no espaço segregado das periferias, o povo ainda precisa encarar a deficiência ou ausência completa nos serviços públicos, que sempre são melhor prestados nas regiões centrais das cidades.
A tarifa de ônibus é uma das mais caras do Brasil. O PSOL, mais uma vez, obteve uma vitória na Justiça que obrigou as empresas a reduzir o preço abusivo das tarifas.

A licitação feita pela prefeitura manteve as mesmas empresas que operavam há décadas na cidade. Não aceitaremos a lógica que impera atualmente, através da qual grupos privados enriquecem à custa de uma passagem cara e oferecem à população um serviço deficiente. A mobilização da juventude e a ação judicial ingressada pelo PSOL questionam este modelo que só serve aos interesses das grandes empresas.

Não podemos aceitar que seja natural uma cidade onde uma parte da população é segregada, com renda per capita mais baixa e serviços públicos precários.

Recentemente a ocupação Lanceiros Negros trouxe à tona esta realidade de exclusão. Protagonizada em sua maioria por negros e negras, a ocupação denunciou a segregação urbana e agora reivindica a transformação do prédio público, abandonado há 8 anos, em uma casa de acolhimento e passagem, para abrigar e proteger famílias em situação de risco e abandono.

A luta pela moradia tem sido cada vez mais forte em Porto Alegre. São cerca de 350 mil pessoas que vivem em áreas irregulares. A bancada do PSOL na Câmara Municipal, com Fernanda Melchionna, Pedro Ruas e depois com Alex Fraga, tem lutado com muita firmeza pela transformação das áreas ocupadas em Áreas de Interesse Social, para que sejam regularizadas e urbanizadas.

O projeto da bancada do PSOL foi aprovado, mas o governo municipal, demonstrando imensa insensibilidade com o problema da moradia para os pobres, vetou a lei, que agora está sob judice.

Subordinar o mandato popular à cidadania

Somente da cidadania organizada pode vir a solução para os problemas das cidades, com sua participação direta na construção de uma democracia real.

A voz e as demandas dessa maioria que já não se reconhece neste regime corrupto precisam chegar nas instituições.

Só assim poderão ser revolucionadas e tornadas de fato representativas. A participação popular não pode, entretanto, ser esvaziada do seu conteúdo de ruptura. Não podemos aceitar um processo decisório concentrado nas mãos do poder econômico que, associado ao poder midiático – que também é controlado pelo poder econômico -, acaba sendo apenas um teatro da participação, da tecnologia da participação.

Por isso é necessário um governo que some a capacidade de gestão da coisa pública à capacidade de envolver as maiorias na configuração do seu próprio futuro.

Um governo que envolva a juventude, trabalhadores, as mulheres, os negros e negras, idosos, sem teto, pessoas com deficiência e a população LGBT na construção, execução e fiscalização das políticas públicas.
É preciso articular inteligência da cidade – os seus atores sociais que estão na iniciativa privada, nas entidades de classe, nos movimentos populares, no funcionalismo público concursado, na cena cultural e nas universidades – na construção coletiva do planejamento urbano.

Por exemplo, o Instituto dos Arquitetos do Brasil, IAB/RS, elaborou um importante documento com 10 pontos fundamentais para as administrações municipais construírem um projeto de cidade, uma contribuição fundamental dos arquitetos e urbanistas que precisa ser levada em conta por um governo que pretenda utilizar-se da inteligência da cidade para governar.

Valorizar e estabelecer uma relação de construção comum com os sindicatos, associações e ONGs populares, assim como com os movimentos sociais dos mais variados tipos, é fundamental para isso.

O desafio é construir uma democracia real em Porto Alegre, onde o governo governe escutando.

Mais importante: onde subordine à cidadania as grandes decisões que impactam a vida urbana, sem distribuir regalias a amigos e sem aparelhar a prefeitura com interesses político-partidários, personalistas e eleitoreiros.

O desafio é qualificar a máquina pública e tirar das empresas privadas o poder de intermediar a relação da população com os serviços que são obrigação da prefeitura é uma necessidade.

Em Porto Alegre, nos últimos 10 anos, foram criadas 13 novas estruturas e órgãos municipais, mas o número de servidores caiu de 14.080 para 13.291 na administração direta, enquanto cresceram as terceirizações e os cargos de confiança.

Caiu também o nível de investimento, que era de 10% da Receita Corrente Líquida em 2005 e baixou para 5,1% em 2015. É preciso reverter o sucateamento da máquina pública, dar protagonismo, qualificação e condições de trabalho aos servidores de carreira. Só assim é possível oferecer serviços públicos de qualidade para a população.

Os integrantes do governo devem perceber-se como servidores dos cidadãos

Nesta condição, não podem esquecer por um minuto que ocupam seus cargos porque o povo lhes delegou um mandato.

Mas este mandato não pode anular a soberania popular, por isso os mecanismos de democracia direta precisam funcionar permanentemente, através de plebiscitos, referendos e consultas públicas, valorizando a participação popular.

Assim, será um governo que avance dos espaços já conquistados e que mova as peças para converter o pessimismo e o descontentamento com a política em vontade popular de mudança e de abertura democrática para novas possibilidades de governança urbana e cidadã.

No final dos anos 80 e anos 90, a experiência da esquerda no governo, hegemonizada pelo PT, e a implantação do Orçamento Participativo, transformaram Porto Alegre em uma referência mundial, símbolo da democracia participativa e referência de luta por “um outro mundo possível”, com o Fórum Social Mundial.

Mesmo depois da derrota do PT, em 2004, o OP seguiu existindo, muito embora tenha perdido muito como instrumento de autêntica participação popular.

Ao mesmo tempo que o OP foi perdendo força e capacidade de canalizar a vontade de mudança, Porto Alegre foi perdendo sua capacidade de ser uma referência de mudança.

Este caminho deve ser retomado. Mas para esta retomada é preciso ser consciente de que não apenas os governos do PMDB esvaziaram e transformaram o OP em simulacro do que era, mas que também os governos do PT em nível nacional sepultaram a possibilidade do próprio PT assumir novamente qualquer papel hegemônico numa linha de mudança.

No governo federal, ao invés de promover o OP no plano nacional e reforçar tais experiências nas cidades, aceitou reproduzir a lógica do Congresso Nacional. Os 300 picaretas de sempre seguiram com seu poder no país.

Por tudo isso é preciso fazer um profundo balanço deste processo – que não é objeto deste texto – para que a cidade possa seguir na vanguarda da construção de instrumentos participativos que não se limitem a administrar a escassez e sejam expressões autênticas da cidadania, sem subordinação aos interesses dos governos de plantão. Instrumentos autônomos e capazes de empoderar a cidadania para discutir e decidir as prioridades da cidade.

O direito à cidade é um direito comum e não individual, por isso é preciso o exercício de um poder coletivo para reformular os processos de urbanização.

Para esta profunda mudança que estamos propondo a auto-organização da cidadania é fundamental. A partir dos bairros e dos locais de trabalho, estudo, cultura e lazer é possível garantir que as pessoas sejam protagonistas da mudança.

Já vemos a proliferação de redes e grupos locais que se articulam para garantir que sua voz seja ouvida. Estes espaços são cruciais para fazer o diagnóstico dos problemas e mobilizar a força coletiva para resolvê-los.

Transparência, combate aos privilégios e à corrupção

A participação é o eixo ordenador deste projeto. A transparência e o combate aos privilégios e à corrupção são sua coluna vertebral.

As paredes deste governo devem ser de vidro, através do qual todas as ações sejam visíveis e sujeitas ao controle social.

É preciso construir mecanismos de controle que impossibilitem as negociatas, as propinas e as diversas formas de corrupção disseminadas nas relações entre o público e o privado, como demonstrado pela Operação Lava Jato – a ponta de um iceberg de grandes dimensões e que se projeta de forma intensa também na cidade.
Por exemplo, é preciso fortalecer a Controladoria-Geral do Município, dar transparência e publicidade às auditorias e estimular a criação de um comitê cidadão de especialistas que acompanhe de perto este trabalho de controle do uso do dinheiro público.

Da mesma forma é preciso acabar com qualquer tipo de privilégios e mordomias com o dinheiro público, começando com @ prefeit@ e o primeiro escalão do governo a dar o exemplo.

É preciso reduzir a diferença entre os salários mais altos e os mais baixos, restringir o uso dos carros oficiais, diárias e outras formas de privilégio.

Os cargos em comissão (CCs) devem ser drasticamente reduzidos. Os servidores concursados têm que ser valorizados, sendo chamados a assumir o protagonismo das políticas públicas e não serem subordinados a cargos de confiança sem conhecimentos técnicos.

Essas medidas não vão resolver o problema da escassez de recursos, que está relacionada também a problemas nacionais, mas recolocam os agentes políticos municipais em sintonia com o povo e fornecem o justo exemplo de que é possível governar sem privilégios.

É na cidade que vamos converter o pessimismo e o descontentamento com a política em vontade popular de mudança

Esta disputa pela cidade é também uma luta anticapitalista. É uma luta pela construção de um novo tipo de poder.

Um poder que seja efetivamente popular, articulado com a sociedade, com a cidadania e com os movimentos sociais.

A cidade parece ser algo pequeno em relação ao sistema, mas é na cidade que o sistema se materializa.

É na cidade que o sistema se concretiza como excludente, como opressor, como discriminatório.

É na cidade que os LGBTs não têm acolhimento, onde são perseguidos, discriminados e desenvolvem a luta pela igualdade.

É na cidade que as mulheres enfrentam a violência e encontram o seu espaço de luta por um salário igual ao dos homens e pelo direito de andar livremente nas ruas sem serem assediadas.

É na cidade que a juventude é criminalizada e busca o seu espaço de lazer e de sociabilidade.

É na cidade que os trabalhadores se organizam para lutar pelo salário, pelos seus direitos.

É na cidade que os negros e as negras são segregados.

É na cidade que podemos democratizar o acesso à educação, à cultura, ao esporte, enfim, ao desenvolvimento pleno do ser humano.

É na cidade também que há uma proximidade maior do poder público com as pessoas e, portanto, onde podemos construir um movimento de luta pela democracia real.

É tempo de valentia, de superar obstáculos e construir novos caminhos. A eleição municipal de 2016 abre uma janela de oportunidade para que enfrentemos este desafio e possamos colocar Porto Alegre mais uma vez na vanguarda da construção das mudanças que o Brasil precisa.


1 Quando milhões de espanhóis tomaram as ruas em maio de 2011 e alguns meses depois a direita ganhou as eleições, os que não acreditam na mudança acharam que seus prognósticos estava sendo confirmados. Erraram. Menos de 4 anos depois surgiu o maior partido da nova esquerda do mundo, o Podemos, que se construiu e ganhou, com seus aliados, várias prefeituras, como as de Madri, Barcelona, Cádiz, Valencia, La Coruña e Zaragoza, e nas eleições nacionais revelou-se a força de esquerda que mais cresceu, encerrando o bipartidarismo que caracterizou a Espanha nas últimas décadas.

2 O CEDS (Centro de Estudos e Debates Socialistas) é um grupo político e sindical que não pertence a nenhum partido e atua em vários movimentos sociais, especialmente na direção do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (SIMPA) e nos entregou sua contribuição ao debate municipal na forma do texto “Contribuição programática do CEDS para a eleição municipal de Porto Alegre, destinada aos partidos da esquerda socialista à militância de esquerda em geral – 28/01/2016”.


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Pedro Micussi