Globalização, imperialismos, caos geopolítico e suas implicações

Primeiros elementos de análise e resposta às perguntas que hoje nos são colocadas, as “teses” não pretendem ser exaustivas ou apresentar conclusões finais. O objetivo principal é iniciar um processo internacional de reflexão coletiva.

Pierre Rousset 26 abr 2016, 18:26

As burguesias britânicas e estadunidenses (sob os mandatos de Reagan e Tatcher) foram as primeiras a impor as políticas antissociais neoliberais. Em seguida, há um quarto de século, a implosão da União Soviética fez possível a globalização destas políticas em sua completa dimensão. Isso não se traduz numa forma estável de dominação internacional, mas sim em uma situação cronicamente caótica. Alguns imperialismos tradicionais continuaram seu declive, enquanto novos poderes capitalistas se consolidaram por si mesmos, aumentando suas rivalidades geopolíticas. Em muitos países e regiões, a violência universal dos ditames neoliberais deu lugar à decomposição do tecido social, às crises agudas de regime, e evidentemente aos levantes populares, mas também ao perigoso desenvolvimento contrarrevolucionário. A expansão do capitalismo na China e na Rússia deu um impulso adicional à crise ecológica global – em particular ao aquecimento global – pelo qual na atualidade muitos povos estão pagando um alto preço.

No passado, fizemos algumas tentativas de avaliar as implicações políticas da globalização capitalista. Em retrospectiva e vendo a aceleração das agitações geopolíticas, é, entretanto, necessário voltar ao tema. Além de oferecer primeiros elementos de análise e resposta às perguntas que hoje nos são colocadas, as “teses” que seguem não pretendem ser exaustivas ou apresentar conclusões finais. O objetivo principal é iniciar um processo internacional de reflexão coletiva. Com frequência, estes se baseiam em análises já compartilhadas, embora acabem por impulsionar ainda mais a discussão das implicações destas análises. Com este fim, arriscamos simplificar demasiadamente as realidades complexas, que “filtram” as evoluções atuais, as quais constumam ser incompletas; pretendemos revelar o que parece novo.

I. Uma nova galáxia imperialista

Uma primeira observação, a situação de hoje é bastante diferente daquela que prevalecia no início do século XX ou durante as décadas compreendidas de 1950 a 1980. De particular interesse:

  • Uma mudança profunda e uma diversificação da situação dos imperialismos tradicionais: os Estados Unidos “superpotência”; o fracasso da constituição de um imperialismo europeu integrado; “redução” do imperialismo francês e britânico; imperialismos militares “sem dentes” (Alemanha sobretudo, mas também Espanha em relação à América Latina); subordinação do imperialismo japonês; crise e desintegração social em alguns países ocidentais (Grécia) pertencentes historicamente à esfera imperialista…
  • A “tendência do mundo”, o “coração” da produção mundial de mercadorias se encontra agora na Ásia e não no Ocidente. As noções clássicas de “centro” e “periferia” são, portanto, obsoletas.
  • A afirmação dos novos proto-imperialismos, começando com a China, a qual está emergindo agora como o segundo poder mundial, mas sem ignorar o caso particular da Rússia.
  • Um desenvolvimento desigual para cada imperialismo, forte em algumas áreas, mas débil em outras. A hierarquia dos Estados imperialistas é em consequência mais complexa de estabelecer do que foi no passado. Os Estados Unidos obviamente se mantêm em primeiro lugar, e é o único que pode declarar ser o mais poderoso em quase todas as áreas, embora registre uma diminuição relativa em termos econômicos, uma redução do orçamento militar e ressente os limites de seu poder global.

A caracterização de novas potências não é a única pergunta que nos é apresentada. Necessitamos também melhores revalorizações da mudança de status dos imperialismos tradicionais e da ordem imperialista em sua totalidade.

II. Instabilidade geopolítica crônica

Segunda observação: a globalização capitalista não deu à luz o estabelecimento de uma “nova ordem” internacional, mas exatamente ao contrário.

  • A concorrência inter-imperialista reviveu e é um tanto mais universal em relação à maioria das regiões do mundo (com exceção da América Latina, em grande medida?). O tempo dos “quintais”, zonas praticamente exclusivas de influência, terminou. China está exigindo entrar nas grandes ligas. O governo japonês está tratando de reduzir sua dependência militar dos EUA para se liberar das cláusulas pacifistas da Constituição japonesa. A fronteira entre a UE e a Rússia se converteu de novo numa zona de conflito.
  • O velho (Brasil…) ou o renovado (pós-apartheid da África do Sul…) “sub-imperialismos”, entre os que alguns postulam seguir a “via chinesa” (Índia), podem tomar vantagem da nitidez das rivalidades entre poderes a fim de participar de maneira mais agressiva na concorrência do mercado mundial.
  • As alianças geopolíticas que no passado se “fixaram” pelo conflito Leste-Oeste, por um lado, e o conflito sino-soviético no outro (o que explica, por exemplo, no sul da Ásia, o eixo da Índia e Rússia frente aos EUA, Paquistão e China no outro) que voltou a ser mais fluido e incerto. Regimes latino-americanos tentaram afrouxar as rédeas impostas por Washington.
  • A erupção das revoluções árabes; depois, a brutalidade da contrarrevolução em vários países desta região, contribuíram para a criação de uma situação sem controle numa ampla zona que se estende desde o Oriente Médio até o Sahel (e mais além). Depois da implosão da URSS, num primeiro momento a burguesia e os Estados imperiaistas (tradicionais) tiveram uma atitude muito conquistadora: a penetração dos mercados do Oriente, as intervenções no Afeganistão (2001) e o Iraque (2003)… Logo se estancaram militarmente e houve a crise financeira. A emergência de novas potências, as revoluções árabes… tudo isso leva a uma perda da iniciativa e do controle geopolítico: Washinton hoje atua mais por reação às emergências que pela intenção de impor a sua ordem.

Uma das perguntas que nos é apresentada devido à evolução da situação internacional é o enlace entre o ponto de inflexão depois de 1989 (do imperialismo conquistador) e o que se concretizou em meados da década de 2000 (da instabilidade geopolítica).

III. Globalização e crise de governabilidade

As burguesias imperialistas buscavam levar vantagem do colapso do bloco soviético e da abertura da China ao capitalismo para criar mercados globais com regras uniformes, que lhes permitissem reproduzir seu capital a vontade. As consequências da globalização capitalista só podiam ser muito profundas – multiplicando por outro lado pela evolução que, em sua eforia, estas burguesias imperialistas não tinham querido prever.

Este projeto consistiu no fato de:

  • Privar as instituições eleitas (parlamentos, governos…) do poder de tomar decisões estratégicas e que incorporaram em sua legislação medidas que se decidiram em outra parte: na OMC, os tratados internacionais de livre-comércio, etc. Para tanto, foi um golpe na democracia burguesa clássica – que se transcreve no plano ideológico pela referência à “governabilidade” no lugar da democracia.
  • Fazer ilegal, em nome do direito predominante da “concorrência” e dos “métodos adequados” da dominação burguesa, que flui da história específica dos países e regiões (de compromisso histórico do tipo europeu, o tipo de populismo latino-americano, dirigismo estatal de tipo asiático, e muitos tipos de clientelismo redistributivo…). De fato ilegalizar todas estas formas surgidas das relações moduladas com o mercado mundial, e para tanto derrubar as barreiras para a livre acumulação do capital imperialista.
  • Transtornos geopolíticos radicais, impulsionados por uma mobilidade sem precedentes do capital imperialista, a financeirização, a crescente internacionalização das linhas de produção, em particular, o “re-centrado” da produção na Ásia e o debilitamento da Europa. Estas comoções mundiais vão acompanhadas de novas diferenciações dentro dos grupos regionais, em particular dentro da União Europeia.
  • Um nível sem precedentes de financeirização, o desenvolvimento de capital fictício o qual é inerente ao capitalismo moderno e que em anos recentes tomou proporções consideráveis. Está dando lugar a um maior grau de distanciamento do capital fictício dos processos produtivos, enquanto que a relação entre prestatário inicial e prestamista inicial se distende. A financeirização sustentou o crescimento capitalista, mas seu desenvolvimento excessivo acentua as contradições deste crescimento.
  • Uma interminável espiral de destruição de direitos sociais. As burguesias imperialistas realmente tomaram a medida da debilidade e a crise do movimento operário no chamado “centro”. Em nome da “competitividade” no mercado mundial estão aproveitando a oportunidade para levar a cabo uma ofensiva em curso sistemático para destruir os direitos coletivos que foram conquistados, em particular durante o período que seguiu à Segunda Guerra Mundial. Estes princípios não pretendem impr um novo “contrato social” que seja mais favorável a eles, senão que querem acabar com este tipo de acordos para ter em suas mãos todos os setores potencialmente rentáveis os quais lhes haviam escapado como os que pertencem aos serviços públicos: a saúde, a educação, os sistemas de pensões, o transporte, etc.
  • Uma modificação entre o papel atribuído aos Estados e à relação entre o capital imperialista e o território. Com algumas poucas exceções os governos já não são mais co-pilotos de projetos industriais em grande escala ou do desenvolvimento de infra-estrutura social (educação, saúde). Embora sigam apoiando em todo o mundo “suas” empresas transnacionais, ao final (dado seu poder e internacionalização) não se sentem dependentes de seu país de origem como fizeram no passado: a relação é mais “assimétrica” que nunca… o papel do Estado, sempre essencial, está se contraindo: contribuir para o estabelecimento de normas para universalizar a mobilidade do capital, a abertura de todo o setor público aos apetites do capital, o que contribui para a destruição dos direitos sociais e para manter sua população marginalizada.
  • Assim então estamos tratando com dois sistemas hierárquicos que estão estruturando as relações de dominação do mundo: a hierarquia dos Estados imperialistas já complexa em si; como já vimos (ponto 1) e as hierarquas dos grandes fluxos de capital que abarcam o planeta em forma de redes. Estes dois sistemas já não se superpõem, apesar de que os Estados estejam a serviço dos segundos.

A globalização capitalista representa uma nova forma mundial de dominação de classe, inacabada e estruturalmente instável. Isso conduz na realidade a abrir as crises de legitimidade e de ingovernabilidade em muitos países e regiões inteiras; a levá-los a um estado de crise permanente. Os supostos centros de regulação à escala mundial (a OMC, o Conselho de Segurança da ONU…) não são capazes de cumprir sua funãço com eficácia.

Uma classe não governa de forma permanente através de uma sociedade sem mediações e compromissos sociais; sem fontes de legitimidade, ainda que sua origem seja muito antiga, democrática, social, revolucionária… As burguesias imperialistas estão liquidando séculos de “know-how” neste campo, em nome da liberdade de circulação de capitais, enquanto a agressividade das políticas neoliberais está destruindo o tecido social num número crescente de países. O fato de que num país ocidental como a Grécia, grande parte da população se encontre privada de acesso à atenção e serviços de saúde, diz muito acerca da linha intransigente da burguesia europeia.

No momento em que havia impérios, era necessário assegurar a establidade das possessões coloniais, assim como (ainda que em menor medida) a das esferas de inluência durante a Guerra Fria. Digamos que hoje em dia, devido à mobilidade e à financeirização, que depende da hora e o lugar, assim regiões inteiras podem entrar em crise crônica sob os golpes da globalização. A implementação dos ditames neoliberais por regimes ditatoriais provocou levantes populares no mundo árabe, inciando crises de regime e réplicas contrarrevolucionárias violentas, o que leva a uma instabilidade aguda.

A particularidade do capitalismo globalizado é que parece acomodar-se às crises como uma situação permanente: a crise se conver consubstancial com o normal funcionamento do novo sistema global de dominação. Se isso é realmente o caso, devemos mudar profundamente nossa visão das “crises” como um momento especial entre longos períodos de “normalidade” – e não haver terminado a medição e portanto o sofrimento das consequências disso.

IV. Os novos proto-imperialismos

As burguesias imperialistas tradicionais pensaram que depois de 1992 iam entrar no mercado dos antigos países chamados “socialistas” até o ponto de subordiná-los de forma natural – inclusive chegaram a se perguntar se a OTAN ainda tinha uma função em relação com a Rússia. Esta hipótese não era absurda, como se tem demonstrado pela situação chinesa no princípio da década de 2000 e as condições as quais aderiu à OMC (muito favoráveis ao capital internacional). Mas as coisas ocorreram de maneira diferente – e isso não parece haver sido inicialmente levado a sério pelos poderes estabelecidos.

Na China, uma nova burguesia se constituiu de dentro do país e do regime, principalmente através do “aburguesamento” da burocracia, que se transformou numa classe proprietária por mecanismos que agora nos são familiares. Para tanto, se reconstruiu de maneira independente (o legado da revolução maoísta) e não como uma burguesia que era desde o princípio subordinada organicamente ao imperialismo. Portanto, China se transformou numa potência capitalista e, ademais, um membro-permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas com direito a veto (o mesmo ocorre com a Rússia).

Podemos chamar a China de um novo imperialismo? É evidente que é necessário definir o que entendemos por este termo no contexto mundial atual. Mas desde que a China se tornou a segunda potência mundial, parece cada vez mais difícil negar esse status, independentemente do que pode ser a fragilidade do atual regime e de sua economia. Para muitos membros da oposição de esquerda ao regime russo, o mesmo pode se dizer da Rússia, ainda que siga sendo economicamente dependente das exportações de bens primários (da qual os produtos do petróleo representam dois terços). Pode-se neste último caso falar de “imperialismo débil”?

Os BRICS trataram de atuar conjuntamente no âmbito do mercado mundial, sem muito êxito. Os países que conformam este frágil “bloco” não jogam todos na mesma liga. Brasil, Índia e África do Sul, provavelmente poderiam ser descritos como sub-imperialismos – uma ideia que remonta à década de 1970 – e gendarmes regionais, mas com uma diferença significativa em relação com o passado: se beneficiam de uma muito maior liberdade de exportar capitais (ver o “grande jogo” que se abriu na África, com a concorrência entre os Estados Unidos, Canadá, Grã-Bretanha, França, Índia, Brasil, África do Sul, China, Catar, Turquia…).

Duas conclusões:

  • A concorrência entre poderes capitalistas está ressurgindo, em especial com a afirmação da China como tal, mas também a Rússia na Europa do Leste. Estes são realmente os conflitos entre as potências capitalistas, portanto qualitativamente diferentes aos do período anterior.
  • De maneira mais geral, em relação à livre circulação de capitais, as burguesias (inclusive as subordidas) e as empresas transnacionais do “Sul” podem utilizar as normas concebidas a partir de 1991 pelas burguesias imperialistas tradicionais para si, sobretudo em termos de investimento, fazendo a concorrência no mercado global mais complexa que no passado. No que se refere ao fluxo de mercadorias, o ajuste generalizado dos trabalhadores em concorrência uns com os outros certamente permanece em grande parte impulsionado pelas empresas dos centros imperialistas tradicionais, e são elas e não as empresas dos países produtores as que controlam o acesso aos mercados de consumo dos países desenvolvidos. Hoje, no entanto, isso é menos certo para a China e de fato para a Índia ou Brasil.

V. Novas forças de direita, novos fascismos

Uma das primeiras consequências do poder desestabilizador fenomenal da globalização capitalista é igualmente o espetacular auge das novas forças de extrema-direita e novos fascismos com uma base (potencial) de massas. Alguns tomam formas relativamente tradicionais como a Aurora Dourada na Grécia, ou fazem ninho em novas correntes xenófobas e desdobramentos identitários. Outros emergem em forma de fundamentalismo religioso, e este é o caso em todas as “grandes” religiões (cristãs, budistas, hindus, muçulmanos…) ou de fundamentalismo “nacional-religioso” (o sionista à direita). Estas correntes representam hoje uma ameaça considerável em países como a Índia, Sri Lanka e Israel, e têm sido capazes de influir na política de governos tão importantes como o dos Estados Unidos (com Bush). Assim que o mundo muçulmano não tem o monopólio neste ámbito. Porém, se tem levado aí uma dimensão internacional em particular, com os movimentos “transfronteriços”, como o Estado Islâmico ou os talibãs (ver a situação no Paquistão), e suas redes de conexão mais ou menos formais desde o Marrocos até a Indonésia e de fato o sul das Filipinas.

Em geral, temos que analisar mais a fundo os novos movimentos de extrema-direita, sejam ainda religiosos ou não: não são meras réplicas do passado, mas expressões da atualidade. Isso é particularmente certo para as correntes fundamentalistas religiosas. É importante definir politicamente a fim de compreender o papel que desempenham (recordar que não faz muito tempo, uma parte significativa da esquerda radical internacional enxergava neles uma expressão progressiasta antiimperialista (objetiva), ainda que ideologicamente reacionária). Esta análise é também necessária para combater interpretações “essencialistas” do “choque de civilizações”.

Estes movimentos sendo correntes de extrema direita e contrarrevolucionários conntribuíram para levar a seu fim a dinâmica das revoluções populares que nascem da “primavera árabe”. Eles não têm o monopólio da violência extrema (veja-se o regime Assad), nem da “barbárie” (a ordem imperialista é “bárbara”). No entanto exercem sobre a sociedade um controle e um terror que vem “a partir de baixo”, que em muitos casos recorda os fascismos do período de entreguerras, antes de que chegassem ao poder.

Como todos os termos políticos, o fascismo é amiúde usado em excesso ou interpretado de várias maneiras. Porém, nossas próprias organizações estão discutindo esta questão – como os movimentos nacionalistas e fundamentalistas de extrema-direita estão evoluindo, o que deles se podem definir como fascista ou não – por exemplo, em países como Paquistão e a Índia.

Sejam quais sejam os adjetivos mais apropriados para descrever os novos movimentos de extrema-direita, seu crescente poder coloca a nossa geração de ativistas problemas políticos como os quais nós não havíamos enfrentado no período anterior – a de grande escala de resistência “antifascista”. Temos que trabalhar nisso e para fazê-lo temos que por em comum as a análises e as experiências nacionais e regionais.

De modo mais geral, a renovação da direita radical fortalece um empuxe reacionário maios perigoso que tem como objetivo por em tela de juízo, em particular os direitos fundamentais das mulheres e das comunidades LGBT, amiúde apoiando-se nas igrejas institucionais em matéria de aborto (na Espanha, onde um projeto de lei reacionário que propunha abolir o direito ao aborto foi derrotado, na Itália…) o direito de família (advogando por um retorno a uma visão muito conservadora do papel da mulher) e inclusive o desencadear de uma verdadeira caça às bruxas contra os homossexuais (Irã, os países africanos onde as correntes evangélicas são poderosas…). A reação está portanto atacando frontalmente o direito à livre determinação das mulheres e dos indivíduos (o reconheceimento da diversidade de orientação sexual), direitos que foram ganhos depois de lutas prolongadas.

Este ascenso da direita reacionária é alentado pela ideologia da segurança nacional defendida hoje pelos governos burgueses em nome da luta contra o terrorismo e a imigração “ilegal”. Em troca, estes governos utilizam os temores gerados desta forma para fortalcer o estado de lei e ordem, para estabelecer regimes onde a polícia tenha cada vez mais poder e para obter medidas autoritárias aceitas: populações inteiras são agora tratadas como “suspeitas” e sujeitas à vigilância.

VI. Regimes autoritários, demanda de democracia e solidariedade

A globalização capitalista provocou as crises das chamadas democracias institucionais e do parlamentarismo burguês (onde existem). Ante essa perda de legitimidade, a tendência dominante é para o estabelecimento – súbito ou insidioso – dos regimes autoritários não sujeitos à soberania popular. O direito a eleger simplesmente é negado aos povos em nome dos tratados e regulamentos aprovados por seus governos.

O imperativo democrático – “Democracia real já!” – adquire assim uma dimensão subversiva que é mais imediata do que amiúde era no passado, pelo qual é possível lhe dar uma alternativa, o conteúdo popular. Do mesmo modo, a universalidade das políticas neoliberais e a mercantilização do acompanhamento dos “bens comuns” fazem possível a convergência das formas de resistência social, como se vê no movimento pela justiça global. As consequências da mudança climática, que já estão se sentindo, também oferecem um novo campo de convergências potencialmente anticapitalistas.

Contudo, os efeitos duradouros das derrotas do movimento operário e da hegemonia ideológica neoliberal, a perda de credibilidade da alternativa socialista, contrarrestam estas tendências positivas. É difícil situar em uma perspectiva a mais longo prazo o êxito, às vezes considerável, dos movimentos de protesto (ocupação das praças públicas, a desobediência civil…) A agudez da opressão pode, neste contexto, fortalecer a resistência baseada na identidade “atomizada”, onde uma comunidade oprimida permanece indiferente à sorte reservada a outras pessoas oprimidas (como o caso do “homo-nacionalismo”). O caráter religioso tomado por muitos conflitos também contribui para a divisão dos explorados e oprimidos.

A ordem neoliberal só pode se impor se tiver êxito na destruição das velhas solidariedades e em sufocar a aparição de novas solidariedades. Tão necessário como isso seja, não podemos considerar que a solidariedade vai se desenvolver “naturalmente” em resposta à crise, nem o internacionalismo ante o capital globalizado. Um esforço concertado e sistemático deve ser feito neste campo.

VII. Internacionalismo contra “Campismo” ou “Estar do seu lado”

No passado, sem sequer nós mesmos nos alinharmos com a diplomacia de Pequim, defendemos a República Popular (e a dinâmica da revolução) contra a aliança imperialista Japão- Estados Unidos – ficamos neste sentido em seu campo (do seu lado). Nos opomos à OTAN, fosse o que pensávamos do regime stalinista. Não estávamos entretanto “em seu campo” porque isso não limitava nossa luta contra a burocracia stalinista. Estávamos simplesmente atuando num mundo onde não havia articulação das linhas de conflito: revoluções/contrarrevoluções, blocos sino-soviéticos leste/oeste. Este já não é o caso hoje em dia.

A lógica “campista” sempre levou ao abandono das vítimas (que por casualidade se encontram no lado equivocado) em nome da luta contra o “inimigo principal”. Isso é ainda mais certo hoje que no passado, já que conduz a se alinhar no campo de um poder capitalista (Rússia, China) – ou no campo ocidental quando Moscou e Pequim são vistos como a principal ameaça. Desta maneira se fomenta o nacionalismo agressivo e as fronteiras herdadas da era de “blocos” são santificadas, enquanto são precisamente o que devemos apagar.

O campismo também pode conduzir a ajudar na Síria o regime assassino de Assad – ou a coalizão sob a hegemonias estadunidense, incluindo, em particular a Arábia Saudita. Outras correntes se contentam em condenar a intervenção imperialista no Iraque e Síria (o que é preciso fazer, sem dúvida), mas sem dizer o que o Estado Islâmico vem fazendo e pedindo resistência para ele.

Este tipo de situação torna impossível colocar claramente toda a gama de tarefas de solidariedade. Para rememorar a responsabilidade histórica do imperialismo, desde a intervenção em 2003, os objetivos não declarados da presente intervenção, para denunciar o próprio imperialismo, não é suficiente. É necessário pensar nas tarefas concretas de solidariedade do ponto de vista das necessidades (motivos humanitários, políticos e materiais) das populações que são vítimas e dos movimentos em luta. O que não se pode fazer sem atacar o regime de Assad e os movimentos fundamentalistas contrarrevolucionários.

VIII. Expansão capitalista e crise climática

A reintegração do “bloco” sino-soviético ao mercado mundial deu lugar a uma enorme expansão da zona geográfica na qual o capital domina, que é a base para o otimismo das burguesias imperialistas. Também é a base para uma aceleração dramática da crise ecológica mundial, em vários terrenos. Chegamos a um ponto em que a redução das emissões de gases de efeito estufa deve começar sem mais demora nos principais países emissores do Sul e não só do Norte.

Neste contexto, a solução da “dívida ecológica” ao Sul não deve favorecer o desenvolvimento capitalista mundial e beneficiar as empresas transnacionais japonesas-ocidentais implantadas no Sul ou as corporações transnacionais do Sul (como a agroindústria brasileira, etc.), que só geraria cada vez mais crises sociais e ambientais.

É verdade que sempre existe a necessidade de solidariedade “Norte-Sul”, por exemplo, na defesa das vítimas do caos climático. No entanto, mais do que nunca, é uma luta comum “antissistema” a que está na agenda das relações “Norte-Sul” desde o ponto de vista das classes trabalhadoras: ou seja, uma luta comum para uma alternativa anticapitalista, outra concepção do desenvolvimento no “Norte” como no “Sul” (as aspas estão aí para lembrarmos que a heterogeneidade do “Norte” e “Sul” é tal que estes conceitos podem ser enganosos).

O ponto de partida é a luta sócio-ambiental para “mudar o sistema, não o clima”; sua base se compõe dos movimentos sociais e não só de coalizões específicas sobre o clima. Portanto, devemos trabalhar na articulação entre os dois. Se não fazemos “virar ecológica” a luta social (seguindo o exemplo que já se pode fazer nas lutas campesinas e urbanas), a expansão numérica de moblizações sobre “o clima” permanecerá sobre a superfície das coisas.

Já estão se sentindo os efeitos do caos climático e a organização das vítimas, sua defesa e ajuda com sua auto-organização, também são parte da base da luta ecológica.

As consequências dos sistemas de energia baseados em combustíveis fósseis são agora bastante claras. Como o resultado do aumento da temperatura à escala global, as calotas de gelo estão diminuindo e os níveis oceânicos aumentando, as zonas desérticas se expandem, a água está ficando mais escassa, a agricultura se vê ameaçada e os eventos climáticos extremos estão se tornando cada vez mais frequentes. Os efeitos do supertifão Haiyan nas Filipinas ultrapassaram a escala de alerta que se tinha previsto para o mesmo. O futuro agora no presente se tornou realidade. Isto tem provocado consequências desestabilizadoras que se estenderam para além das regiões que foram as diretamente afetadas e tem dado lugar a uma série de tensões (como o problema dos refugiados de Bangladesh e o conflito com a Índia pela questão dos migrantes).

Os cientistas estão de acordo que um aumento de 2 graus centígrados comparado com os níveis pré-industriais desataria consequências climáticas que uma vez começadas seriam impossíveis de serem detidas. Com isso em mente existe uma sorte de problemas importantes que ficam sem resolver.

O derretimento das calotas polares e das geleiras ameaçam com um aumento catastrófico nos níveis oceânicos. Inclusive se a temperatura a nível planetário se estabilizasse em 2 graus centígrados o aumento nos níveis marítimos para o final do século se encontrariam entre 0,6 e 2,2 metros. Se referido incremento excedesse os 2 graus estas cifras no aumento dos níveis seriam muito mais altas. Ao redor do planeta as cidades costeiras assim como as comunidades insulares, e os países e regiões que se encontrem em regiões baixas se encontrariam sob esta ameaça. Mais de 50% de Bangladesh se veriam diretamente ameaçados pelo aumento dos níveis marítimos.

Na atualidade uma dimensão completamente nova se agrega a esta ameaça, a desestabilização de uma vasta região das geleiras da Antártida Ocidental e o derretimento destas poderiam aumentar o nível oceầnico em até 7 metros.

Com o aumento da temperatura terrestre podemos esperar um impacto devastador nas reservas de água doce assim como um aumento das secas e das ondas de calor. As geleiras estão diminuindo a um nível sem precedentes e os mantos aquíferos estão secando. Os rios estão perdendo sua capacidade. Mais de 50% da água doce do planeta provém daquilo que escorre das montanhas e da neve que se derrete. As guerras por recursos hidráulicos tornar-se-iam mais frequentes.

O problema de como alimentar a crescente população mundial do planeta, sem aumentar a agricultura industrial e o cada vez maior uso de pesticidas e herbicidas nos alimentos geneticamente modificados que destroem a biosfera. No hemisfério sul a questão chave é a soberania alimentar. Isso daria às pessoas os direitos e os meios para definir seus próprios sistemas alimentares. Seria dar o controle aos que produzem, distribuem e consomem alimentos em vez das corporações e das instituições do mercado que dominam o sistema alimentar mundial. Isso significaria o fim da apropriação de terras e iria requerer uma ampla redistribuição da terra para colocá-la em mãos daqueles que produzem os alimentos.

É possível que o aspecto mais daninho da crise ambiental seja o impacto que está tendo sobre a biodiversidade. A “sexta extinção” como se conhece cada vez mais – um aumento de 3 graus na média global da temperatura, faria que pelo menos 50% das espécies vegetais e animais fossem extintas. Uma quarta parte das espécies de mamíferos estão em perigo. A acidificação dos oceanos deu lugar a que os recifes de coral morram, assim como os organismos cuja estrutura óssea depende da calcificação. Trata-se de uma crise na qual nosso futuro como espécie não pode se separar.

IX. Um mundo de guerras permanentes

É provável que não caminhemos para uma terceira guerra mundial do tipo da Primeira e Segunda Guerra Mundial, já que não existe um conflito pela divisão territorial do mundo no sentido que havia no passado. Mas os fatores que empurram para a guerra são muito profundos e diversos: novos conflitos entre poderes, a concorrência no mercado mundial, o acesso aos recursos, a decomposiãço das sociedades, o surgimento de novas formas de fascismo que escapam do controle daqueles que pariram, uma sequência da cadeia dos efeitos do caos climático e das crises humanitárias a uma grande escala…

Bem e verdadeiramente entramos num mundo de guerras permanentes (plural). Cada guerra deve ser analisada em suas especificidades, nos enfrentamos a situações bastante complexas, como no presente no Oriente Médio, onde, no marco de um só teatro de operações (Iraque-Síria) existem conflitos entrelaçados com características específicas (Curdistão sírio, a região de Alepo, etc).

As guerras estão aqui para ficar, com muias facetas. Temos que olhar de novo a forma em que elas são levadas a cabo, sobretudo pelos movimentos de resistência popular, com o fim de compreender melhor as condições de uma luta, a realidade de uma situação, os requisitos concretos de solidariedade…

No entanto, devemos ter “pontos de estabilidade” com o fim de não perder a bússula numa situação geopolítica muito complexa: a independência de classe contra o imperialismo, contra o militarismo, contra o fascismo e o surgimento de movimentos de identidade que são “anti-solidariedade” (racistas, islamófobos e anitssemitas, xenófobo, casteístas, fundamentlaistas, homofóbicos, misóginos e machistas…).

X. Os limites das superpotências

O conjunto comum de regras da ordem capitalista global não impede que alguns países sejam mais iguais que outros. Os Estados Unidos tomam a liberdade de fazer coisas que não permitem em outros lugares. Jogam com o dólar, controlam a maior parte das tecnologias mais avançadas, têm a sua disposição um poder militar sem igual. Seu Estado segue mantendo funções soberanas globais que outros já não têm – ou não são capazes ainda de ter.

Os Estados Unidos seguem sendo a única superpotência no mundo – e, contudo, perdeu todas as guerras das quais participou, do Afeganistão até a Somália. A culpa repousa talvez na globalização neoliberal, que lhe proíbe consolidar socialmente (em aliança com as elites locais) seus lucros militares temporais. Isso é quiça também uma consequência da privatização dos exércitos, das empresas de mercenários que desempenham um papel crescente, assim como das bandas armadas “não-oficiais” a serviço de interesses particulares (grandes empresas, famílias grandes…).

É também o caso de que este poder, na condição de “super”, não ter os meios para intervir em todas as direções em condições de instabilidade estrutural. Iria requerer imperialismos secundários capazes de suportá-lo. Mas a constituição de um imperialismo europeu foi abortado; França e Grã-Bretanha têm agora só capacidades muito limitadas; Japão ainda tem que romper a resistência cívica a sua remilitarização completa.

Quem disser guerra precisa dizer também movimento anti-guerra. Desde que as guerras existem são muito diferentes umas das outras, não faz falta dizer da sinergia na construção de movimentos contrários às guerras. O modo no qual ativistas na Europa (ocidental) se aproximam a esta pregunta parece pessimista, uma consequência de como o “campismo” foi rompido e deixou impotentes as principais campanhas levadas a cabo neste campo. Mas há movimentos contra a guerra, particularmente na Ásia – e na Eurásia; a superação das fronteiras herdadas da época dos blocos se levará a cabo sobretudo em torno desta questão.

XI. Crises humanitárias

As políticas neoliberais, a guerra, o caos climático, as convulsões econômicas, rupturas sociais, exacerbação da violência, os pogroms, o colapso dos sistemas de proteção social, epidemias devastadoras, as mulheres reduzidas à escravidão, a migração forçada, os meninos morrendo lentamente de sede, abandonados junto com seus pais no meio do Sahel… o capitalismo triunfante, desenfreado, está dando à luz um mundo onde as crises humanitárias se multiplicam, causando graus de sofrimento inimagináveis para aqueles que não os experimentaram – e indizíveis e atrozes para aqueles que expereimentaram.

A ruptura da ordem social impactou frontalmente o Estado em países como o Paquistão (que tem armas nucleares), ou de novo no México, onde as máfias, em simbioses com a classe política utilizam o terror para impor sua dominação – daí as denominações dos Estados falidos, dos Estados da máfia ou narco-estados, de narcoterrorismo.

Essa barbárie moderna se deve conhecer com uma ampliação dos campos internacionalistas de ação. Correntes de esquerda militante e movimentos sociais em particular, devem velar pelo desenvolvimento “do povo a povo” com as vítimas da crise humanitária.

Depois de um período no qual o próprio conceito de internacionalismo foi amiúde menosprezado, a onda global da justiça, agora com a multiplicação das “ocupações” de praças públicas ou distritos, restauraram em tudo sua importância. Agora bem, é necessário para o internacionalismo revivido encontrar formas mais permanentes de ação, em todos os terrenos contestatórios.


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Balanço e perspectivas da esquerda após as eleições de 2024

A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco debate o balanço e as perspectivas da esquerda após as eleições municipais, com a presidente da FLCMF, Luciana Genro, o professor de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, e o professor de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni

O Impasse Venezuelano

Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 12 nov 2024

A burguesia pressiona, o governo vacila. É hora de lutar!

Governo atrasa anúncio dos novos cortes enquanto cresce mobilização contra o ajuste fiscal e pelo fim da escala 6x1
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Pedro Micussi