Avançar na disputa pelos rumos do novo ciclo político do país

A grande disputa estratégica do pais será entre junho de 2013 e seus efeitos contra seu simulacro de 15 de março de 2015.

Roberto Robaina 26 abr 2016, 14:33

O Brasil encerrou um ciclo político cuja marca foi o pacto da Nova República, costurado entre os partidos que ganharam força na luta contra a ditadura militar. Nesse ciclo, o PT foi o partido hegemônico do movimento dos trabalhadores e da juventude. O ciclo novo que está sendo aberto está indeterminado e há uma luta em curso pelo seu sentido, cuja polarização é indicada, por um lado, pelo que irrompeu no levante juvenil e popular de junho de 2013 e, por outro lado, pelo seu simulacro, a marcha de 15 de março de 2015.

O regime político burguês sustentado pelo PSDB no governo e pelo PT na oposição, e depois com o PT no governo e o PSDB na oposição (o PMDB sempre esteve no governo), foi fraturado durante o levante de junho. Foi tal levante que produziu o fim de um ciclo em que o PT dirigiu o movimento de massas. Sem formular desta forma, foi o nosso equivalente ao Que se vayan todos que marcou a política argentina em dezembro de 2001. De modo que, assim como não se pode entender a política argentina sem este marco, como não se pode entender a Venezuela sem o Caracazo de 1989, não se pode entender o Brasil sem 2013.

O levante de 2013 teve antecedentes: greves das obras de construção das usinas de Jirau e Santo Antônio em 2011, e, sobretudo, a poderosa greve dos bombeiros do Rio de Janeiro, que derrotou o governo Cabral do PMDB. Tal efervescência social teve sua gênese no desdobramento da crise econômica mundial de 2008 e no rastilho de pólvora das revoluções árabes, dos indignados espanhóis, na juventude portuguesa e norte-americana. Mas quando finalmente explodiu, em junho de 2013, provocou uma mudança que segue impedindo a estabilização política da dominação burguesa. O regime trata sempre de se recompor, mas não tem sido fácil. E agora, com a crise econômica, esta recomposição tem sido mais dura e custosa.

O trabalho para desmontar o levante de junho foi o sinal de igual da ação das direções do PT e dos partidos tradicionais da burguesia. Trabalharam com este objetivo durante todo segundo semestre de 2013 e todo ano eleitoral de 2014. O descontentamento popular, entretanto, seguiu. Depois das eleições, em que Dilma ganhou o segundo turno tratando de polarizar contra as medidas econômicas que um governo tucano aplicaria no caso de vencer, para aplicá-las logo em seguida, a insatisfação ganhou novamente as ruas. Desta vez, porém, era na forma de um simulacro. A espontaneidade não era mais a marca das ações. Nem o radicalismo de esquerda. As forças de direita estavam no comando. Não era mais junho, mas sua negação.

Olhando para trás, portanto, vemos que a tentativa de liquidar os efeitos de junho de 2013 tiveram várias formas. A repressão foi a mais pesada. Ela uniu governos do PT e do PSDB. Mas houve também dirigentes petistas que condenaram junho de 2013 por produzir e supostamente fortalecer perspectivas fascistas. Houve a Globo, tratando de desviar e restringir os protestos ao enfrentamento à corrupção em geral, buscando separar esta pauta das bandeiras sociais e anticapitalistas. Todos os partidos do regime da Nova República, durante meses e meses, buscaram abafar junho, roubar e/ou desviar seu significado. Dilma, durante o segundo turno das eleições, fez seu discurso à esquerda para que as forças de junho a apoiassem e fossem por ela canalizadas. A Globo e setores da classe dominante aproveitaram o desencanto com o estelionato eleitoral de Dilma para capitalizar para seus propósitos as energias do protesto. Neste caso, porém, produziu uma ação de rua de massas que tem o sentido oposto.

O que afirmamos aqui é o seguinte: a grande disputa estratégica do pais será entre junho de 2013 e seus efeitos contra seu simulacro de 15 de março de 2015. A atual conjuntura de polarização PT e PSDB, impeachment ou não, deixa nublado que esta é a verdadeira disputa sobre o futuro. São dois processos cujas direções apontam para caminhos diferentes, e até opostos, disputando os rumos deste novo ciclo, embora o ano de 2015 — e os primeiros meses deste ano — mostrou que além da bifurcação há pontos de contato entre os que se identificam mais ou menos com cada uma destas mobilizações.

A velha divisão entre esquerda e direita no Brasil está longe de ser superada. Se junho indicou o despertar de forças que se inclinam para a esquerda, o 15 de março de 2015 foi o despertar pela direita. Então que pontos de encontro podem ter? O ponto de encontro entre os dois processos de mobilização, cujas bases sociais são diferentes, tem sido a luta contra a corrupção. Sem este ponto as mobilizações estimuladas pela direita política não teriam tido base de massas. Ainda que tal identidade seja por óbvio insuficiente para justiçar qualquer participação de forças de esquerda em tais mobilizações, já que não alteraram o caráter essencial dos protestos dado por sua direção, não há dúvida de que cabe às forças que ligaram sua sorte à defesa da perspectiva aberta no país pelo levante de junho de 2013 disputar as bases sociais indignadas com o governo federal. Disputar, claro, parte da classe média que aderiu aos movimentos de rua com eixo no impeachment, na qual se incluem muitos que agiram acreditando que estavam na mesma trilha aberta em junho de 2013. E ainda mais necessário é disputar os setores populares que, mesmo não tendo participado do 15 de março de 2015, e de suas ações seguintes, como o 13 de março deste ano, simpatizam com as mesmas, mais concretamente os setores populares que são pelo impeachment de Dilma e estão furiosos com o PT. Não disputar estes setores significa aceitar que o novo ciclo político tenha como marca central um simulacro do que foi junho de 2013: o 15 de março de 2015. Ou, então, apenar tentar reproduzir e manter no tempo o que a vida já deixou para trás: o papel progressista do PT.

Para disputar o significado do novo ciclo político temos a necessidade de uma série de políticas e iniciativas. Mas sem segurar com firmeza a bandeira anticorrupção estaremos derrotados nesta disputa. Trata-se de uma exigência, portanto, não apenas porque foi uma das bandeiras do levante de junho, mas também porque contribui para ampliar a base social dos que militam pela continuidade das marcas daquele acontecimento. Caso contrário, seria entregar esta bandeira às forças políticas que negam junho de 2013 e tomam seu simulacro de 15 de março como o acontecimento fundador do novo ciclo que o país está começando a trilhar. Seria entregar a bandeira nas mãos da direita, em suas distintas variantes, quase todas elas, aliás, marcadas pela corrupção.

A luta contra a corrupção (que foi fortalecida em junho de 2013 com a aprovação no Congresso de leis que serviram para aprimorar as investigações) e a defesa da Operação Lava Jato (OLJ), ademais, semeiam o enfrentamento contra os governos burgueses que se preparam nas conspirações dos palácios, do parlamento e das corporações midiáticas. Afinal, estes setores querem abafar a operação que ameaça agarrá-los pelos calcanhares. Os partidos da ordem, para estabilizar o regime democrático-burguês fraturado desde junho de 2013, precisam, repetimos, esvaziar e reduzir os impactos da operação Lava Jato no ato seguinte a uma eventual queda do governo petista.

Aliás, há duas operações para abafar a operação: uma encabeçada por Lula; a outra dirigida pelo PSDB de Aécio, codirigida pela Globo. Lula aceitou ser ministro porque havia logrado convencer o PMDB ligado a Renan de que ele, Lula, não ficaria esperando um milagre e atuaria para liquidar o problema. Com Aécio tendo entrado no noticiário a partir da delação de Delcídio, a oposição de direita se enfraqueceu, fortalecendo a hipótese do plano de Lula dar certo. O impeachment caminhava para ser derrotado. Derrotado o impeachement, as próprias corporações iriam pressionar pela normalização da política para seguir seus negócios. Até a Globo teria que ceder. A liberação das gravações desorganizou o plano Lula.

O plano Aécio pressupõe o impeachment. A partir daí, os capitalistas, neste caso animados, dirão “basta de crise política e confusão: aos negócios!”. A Globo tratará de dizer que o auge da Lava Jato já foi atingido, que Dilma até já caiu. Assim irá tirar a Lava Jato do centro do noticiário. Ou seja, os dois blocos de poder querem terminar com a Lava Jato mais cedo do que tarde. Contra estes dois objetivos, o apoio à Lava Jato é uma necessidade. Não estamos aqui chamando a depositar confiança na justiça tal como a mesma atua no Brasil. Nem tampouco desconsideramos os problemas na operação Lava Jato apontados por muitos juristas, advogados, intelectuais e militantes. Vladimir Safatle escreveu criticando duramente Sérgio Moro. Seus argumentos são sólidos. Mas o foco nosso está concentrado na defesa de que a operação continue. Até na exigência de que ela continue.

Assim, a defesa das demandas do povo, dos direitos dos trabalhadores e dos jovens, do movimento camponês, dos direitos civis em geral, não pode deixar de ser combinada com a exigência da continuidade da Lava Jato e do combate contra à corrupção, marca dos regimes burgueses, tanto da ditadura militar quanto da Nova República.

Devemos precisar o que se refere à defesa da Operação Lava Jato: há um impressionismo em setores de esquerda, que tomam a OLJ como um processo essencialmente a serviço da “direita”. Na verdade, a OLJ deve ser pensada a partir do seu conteúdo e da repercussão que tem em amplas massas. A profundidade da OLJ revela as entranhas do poder como nunca o país pôde assistir. Os principais capitalistas brasileiros, as megaconstrutoras, foram desnudadas. O fato de que o núcleo dos donos das empresas com OAS, Odebretcht, Camargo Correia, Queiroz Galvão esteja detido em Curitiba é realmente uma novidade política em toda a vida republicana brasileira. Nunca os corruptores tinham sido tratados da mesma forma que o corruptos.
Esse núcleo — das empreiteiras que dominam o oligopólio da “logística” do país – controlam grandes fatias do investimento e do orçamento público desde o período dos governos militares. Porém, a OLJ conseguiu também organizar de forma consistente, até aqui, a relação promíscua entre o núcleo financeiro e o núcleo “político”. Desvelou, para milhões, o esquema sórdido das castas que governam num ciclo que começa na liberação dos recursos públicos – via BNDES, estatais e outros – em contratos superfaturados, relacionando com o esquema de financiamento de partidos, líderes e com uma representação absurda de quase uma centena de deputados e senadores eleitos pelos três mais influentes partidos do país, o PT, PMDB e o PSDB. Uma investigação que chegou nos presidentes das duas câmaras legislativas do país – Renan Calheiros e Eduardo Cunha.

Como comentou o deputado Chico Alencar, em sua rede social,

“Em nota, PSDB diz que Alckmin, Aécio e Aluízio Nunes Ferreira ficaram “satisfeitíssimos” com a recepção que tiveram em ato de protesto contra o governo. Só que foram hostilizados como “oportunistas” e aos gritos de “Lava-Jato” e “Merendão” na av. Paulista.
Marta Suplicy, agora no PMDB de Cunha e cia, foi escorraçada. Suspeito que o que mais cresce é o PDP: Partido dos Desencantados com a Política. Com esse tipo de política corrupta, hipócrita, capturada pela grana das grandes empresas, afirmo. Mudar tudo é preciso, mas os partidos do condomínio do sistema não querem.”

Nossa convicção é a de que, se formos capazes de intervir com audácia, a esquerda autêntica pode disputar a direção do movimento de massas e construir uma nova hegemonia entre as forças sociais dos trabalhadores e da juventude.

Nesse momento, o impasse acerca do impeachment não está resolvido. Uma parte da burguesia fez a opção pelo impeachment. Se em dezembro tal opção havia se enfraquecido, agora, quando fechamos esta revista, tudo indica que finalmente o impasse será rompido e o impeachment parece o mais provável. A base política desta opção foi o fato de que o PT se mostrou incapaz de controlar o movimento de massas. Para quem tinha dúvidas, junho de 2013 provou. E Sarney e Delfim Netto sempre disseram que o governo do PT teria com resultado final a destruição da esquerda. Sarney escreveu isso para justificar sua política de apoio ao PT já em 2003. Sua posição era de que o PT faria dois mandatos e depois a situação se normalizaria, com a esquerda terminando. Delfim falou que o PT era útil para salvar o capitalismo. Demorou mais do que os dois mandatos, mas finalmente uma parte da burguesia quer um governo normal, sem intermediários, sem ideologias que eles consideram confusas.

Do ponto de vista econômico, a base do impeachment foi a crise e a ruptura da aliança da indústria com o governo. Os setores burgueses da indústria seguem exigindo proteção do governo, ou pediam, porque já assumiram a impotência do governo e a crise bateu as portas de tal forma que agora há uma pressão de uma parte desta indústria para que exista sua integração – dos que puderem – nas cadeias globais de valor.

A hipótese do impeachment tinha ficado mais distante, mas…

Num primeiro momento em que a pauta do impeachment foi posta com mais força, em dezembro de 2015, a chefia da operação acabou nas mãos de um político que expressa a decadência da política burguesa: Eduardo Cunha. Os métodos golpistas de Cunha não conseguiram ir adiante. Os ecos das forças democráticas da luta contra a ditadura, ainda presentes no Brasil, se fizeram ouvir. E as manobras de Cunha foram barradas no STF. É possível que o STF tenha se movido menos pelos ecos do passado e mais pelo temor no futuro, com o que poderia explodir com a tentativa de um golpe paraguaio. Nós do PSOL já tínhamos escolhido nosso lado, decididos a enfrentar Cunha e seu impeachment, embora nossa posição, expressa por Luciana Genro, era de que o país necessitava de uma renovação, ainda que fosse pela via limitada das eleições gerais.

A partir da decisão do STF, a possibilidade do impeachment voltou a se afastar. Mas a crise política seguiu. Quando este artigo estava sendo escrito, a ISTOÉ publicava a delação premiada de Delcídio do Amaral. Tudo indicava uma aceleração do descontrole político, da crise e um aumento enorme das possibilidades da queda do governo. Mas desta vez sem o comando de Cunha. O isolamento do governo parece total e irreversível. A erosão da legitimidade do mandato presidencial parece ser quase completa, para dizer o mínimo. Com exceção de duas, todas as seções da OAB se posicionaram pelo impeachment.

A posição que defendemos tem sido a realização de eleições gerais. É uma política para construir espaços democráticos e apostar no empoderamento do povo. Sabemos que eleições não representam uma saída em si mesmo para a crise, ainda mais enquanto os trabalhadores não têm força nem organização para ditar os rumos do país. Mas não aceitamos Temer como presidente e não nos somaremos na defesa de um governo antipopular, cujos planos são de continuar atacando os trabalhadores. Em outro texto desta revista desenvolvemos mais nossa posição.

Tendo consciência de que não temos força, por ora, para ser uma alternativa nacional de massas e, sobretudo, um alternativa de poder, sabemos que é preciso uma política nacional correta e uma capacidade de acelerar experiências e dar saltos políticos na construção desta esquerda.

Para acumular forças, é preciso aumentar o oxigênio democrático do país, que vem sendo reduzido pela combinação do caráter burguês da atual democracia, pela traição e a decepção do PT e pelas políticas burguesas de ataque aos direitos do povo e ao movimento operário, incluindo aí os setores reacionários que se erguem contra todas as pautas dos direitos civis. Para aumentar o oxigênio democrático e, portanto, os espaços para a construção de uma política de emancipação, exige-se romper a polarização entre PT e seus aliados por um lado e PSDB, Rede Globo e seus aliados por outro. Até então unidos na defesa do regime da Nova República, agora disputam entre si e com métodos similares. Ambos querem bloquear os efeitos políticos democráticos e de esquerda que tratam de emergir neste novo ciclo aberto no país desde junho de 2013. Não à toa todos estes partidos e seus governos enfrentaram junho e usaram até mesmo as forças de repressão para reprimir o movimento de massas.

A ruptura desta polarização abrirá um novo mapa, cujas coordenadas irão sendo definidas na disputa no interior deste espaço novo. A questão agora é expandir o espaço desta nova possibilidade. E de nossa parte desenvolver uma posição de esquerda anticapitalista e revolucionária. Nossa sorte, socialmente, está ligada à capacidade de luta da classe trabalhadora e da juventude.

As novas coordenadas da esquerda

Durante uma de suas palestras no Fórum Social Temático ocorrido em janeiro, Boaventura de Sousa Santos, diante de uma pequena plateia presente no confortável e amplo auditório Dante Barone na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, perguntou onde estavam as pessoas de Porto Alegre. Se o público em geral era pequeno, composto também por pessoas vindas de outros estados, de fato era ainda menor a assistência dos de Porto Alegre. A pergunta de Boaventura buscava demonstrar que nos últimos 15 anos a esquerda sofreu um grande retrocesso. Sua constatação era verdadeira, mas como nestes casos, se nosso objetivo não se limita a interpretar o mundo, mas também a levar adiante a luta por transformá-lo, a compreensão necessita também uma orientação para a ação. Para tanto, seria útil obter mais informações do que estava ocorrendo na cidade.

Um dia antes, durante a noite, o plenário Ana Terra na mesma capital estava lotado para assistir à palestra de uma ativista curda falando da revolução do Curdistão. No calor de dezembro, menos de um mês antes, cerca de 300 mulheres de Porto Alegre se reuniram em praça pública para discutir com Luciana Genro a luta das mulheres e o direito à cidade. Luciana Genro, que em toda sua trajetória foi definida como radical por toda a burguesia e identificada como de extrema-esquerda no período que militou no PT, obteve, quando candidata a Presidenta da República pelo PSOL em 2014, mais de 7% da votação em Porto Alegre. Cada pessoa que deu este voto sabia que suas chances eram remotas ou mesmo inexistentes. Agora, nas primeiras pesquisas sobre as eleições municipais para prefeitura, Luciana Genro tem cerca de 19% das intenções de voto, em segundo lugar. Em primeiro lugar nas pesquisas estava Manuela D´Ávila, principal nome público do PCdoB. Manuela renunciou à candidatura no final de fevereiro.

As eleições municipais podem se converter num primeiro momento de disputa de massas e de emergência de forças ligadas a este novo ciclo político. O PSOL terá nela uma janela de oportunidade. Longe de sermos triunfalistas, a vitória de Luciana Genro na eleição municipal de Porto Alegre não será nada fácil, é claro. Mas o novo não é que seja difícil. O novo é que seja possível. E para muitos até provável. Esta mesma possibilidade está aberta no Rio de Janeiro, com a campanha de Marcelo Freixo, e em Belém, com a campanha de Edmilson Rodrigues, que completam as três prioridades do PSOL, para não citar todas as inúmeras candidaturas competitivas que o partido terá nas eleições de outubro.

Essa é a dimensão do novo que Boaventura não percebeu ainda, e por isso segue trabalhando com as coordenadas da esquerda anterior, uma esquerda que governou para os interesses do capital durante mais de uma década. Não quero dizer que esta esquerda não tenha experiências e processos de construção e de elaboração dos quais devemos aprender. Tem, seguramente, não apenas de seus erros, suas falências, mas também de seus acertos. Boaventura também tem também muito a ensinar. Há, aliás, importantes parcelas que ainda militam no PT, militantes e quadros dirigentes que querem ser parte de uma esquerda autêntica e o projeto de impulsionar esta recomposição deve contar com eles. A questão é por onde passa esta recomposição, qual sua estratégia, em que processos se apoia e que programa defende.

A ideologia do progresso no capitalismo está desmoronando

Uma das premissas mais falsas daqueles que defendem que os governos do PT foram progressistas é a ideologia de que 40 milhões de pessoas saíram da pobreza e se incorporaram na classe média. Se isso de fato tivesse ocorrido, o apoio popular aos governos do PT estaria ainda muito forte, apesar da crise atual e malgrado toda a corrupção. Mas, considerar que renda familiar de 1600 reais até 3000 reais pode ser considerada renda de famílias que se incorporam à classe média, é algo que beira o cinismo. Boaventura infelizmente é um dos que sustenta que os recursos estatais, distribuídos na forma de política compensatórias, como o Bolsa Família, “fez com que camadas passassem da pobreza para a classe média de uma forma sem precedentes”. Se tivesse dito que milhões saíram da miséria para a pobreza, tal afirmação seria respeitada, mas a falta de proporção é gritante.

Agora, o Brasil está retrocedendo até mesmo nas conquistas sociais obtidas. É a confirmação da tese de Leon Trotsky de que o capitalismo dá com uma mão e tira com a outra. Depois de afirmar que o Estado tinha a possibilidade de tributar os ricos, Boaventura, desta vez corretamente, definiu que isso não ocorreu porque os “governos não colocaram em pauta este ideal e aceitaram a ideologia das agências de crédito e do Fundo Monetário Internacional”.

Doam com uma mão e tiram com a outra

O fato é que as ideologias burguesas e reformistas foram golpeadas com a eclosão da crise econômica, a maior da história do país. A demagogia do ex-presidente Lula, dizendo que a crise mundial do capitalismo iniciada no final de 2007 chegava ao Brasil apenas como uma “marolinha”, desmoronou. E com ela a ideologia defendida por setores burgueses, líderes do PT e até alguns dirigentes políticos à esquerda do PT, de que os chamados países emergentes estavam descolados da crise mundial. Os efeitos maiores não foram imediatos, mas sua força e persistência têm sido pesados.

O país estagnou em 2014 e teve recessão em 2015. Mais do que isso: teve depressão, com a queda do PIB de quase 4% e de projeção de mais de 3% de queda em 2016. Não há quem arrisque dizer quando os investimentos capitalistas ganharão fôlego, nem quando o PIB voltará a crescer, mas já 2017 também está indicado como ano cuja estagnação será a marca. Em 2015, a queda chegou a 8% da produção industrial, superando o pior resultado, de 2009, quando o recuo foi de 7,1%. E são as opções econômicas dos governos petistas que promoveram um “processo de desindustrialização”. Como também disse Boaventura “tudo foi canalizado para o agronegócio e a mineração, com consequências sociais fortes”.

A queda da produção industrial em 2015 tem sido generalizada. O setor utiliza apenas 74,6% de sua capacidade instalada e o setor de bens de capital retraiu em 25,1% de janeiro a novembro, revelando a queda brusca dos investimentos. O rendimento médio do empregado da indústria caiu 12,5% em novembro de 2015 em comparação com o mesmo mês de 2014. A queda do poder aquisitivo se soma ao desemprego, que, em março, ameaça chegar a 10 milhões de trabalhadores, além do descaso com a saúde e a educação públicas. Tudo somado levou ao desmoronamento da ideologia de que o PT, associado ao capitalismo brasileiro, poderia levar a uma melhoria constante, ainda que paulatina, do nível de vida e de cultura dos brasileiros.

Tal situação provocou desilusões em milhares de ativistas. Mais grave é a decepção de milhões de pessoas que acreditaram no PT. Tal desilusão traz à construção de um novo movimento de esquerda dificuldades novas não vividas pela experiência do próprio PT. O desabamento do PT foi nossa queda do muro de Berlim. Desta forma, assim como a queda do muro e o colapso do socialismo real provocaram uma crise na consciência de esquerda e um cenário mundial sem projetos alternativos de nenhum tipo ao domínio do capital durante as últimas duas décadas do século XX (o bolivarianismo indicou uma possibilidade nova, ainda que estejamos vendo agora também seu esgotamento), com o colapso do PT é inegável que a esquerda brasileira atravessa e atravessará dificuldades e obstáculos. Mas aqui há duas vantagens. A primeira é a existência, prévia ao colapso do PT, do PSOL. A segunda, ainda mais importante, é que o Brasil não experimentou apenas essas desilusões, mas também um dos maiores levantes juvenis e popular dos últimos 50 anos: o levante de junho de 2013. Este levante foi a marca mais importante do final do ciclo aberto com a fundação do PT e com a campanha das Diretas Já. E provavelmente da abertura de um novo ciclo de recomposição da esquerda e das forças anticapitalistas.

Uma alternativa de esquerda se forja sendo fiel a junho de 2013

A eventual queda do governo federal parece ser o plano central da maioria da classe dominante. Em parte tanto o PSDB quanto o PMDB planejam controlar o poder e usá-lo para abafar a Operação Lava Jato, contando, evidentemente, com a cumplicidade da mídia corporativa. É difícil saber se o juiz Sérgio Moro se resignará diante desta política e, caso tente manter a força e a eficácia da operação, se logrará romper o cerco da aliança contrarrevolucionária da impunidade. De qualquer forma, a crise econômica continuará e a exigência burguesa dos planos de ajuste levará ao choque do governo com o movimento de massas mais cedo do que tarde. Os governos estaduais desta aliança, como o de Alckmin em São Paulo, Beto Richa no Paraná, Sartori no Rio Grande do Sul, e tantos outros, já sofrem questionamento nas ruas. Alguns, como o do PSDB de Beto Richa, com investigações judiciais avançadas em seu encalço.

Para a esquerda socialista os desafios serão enormes. Diante da falência do PT e do governo Dilma, a tarefa estratégica segue sendo a construção de um projeto de esquerda coerente e com influência de massas. Neste sentido, é importante ter sempre junho de 2013 no radar, nas coordenadas da nova configuração da política que está pulsando. E as disputas pelos governos municipais são instrumentais nesta direção. Quando Boaventura pergunta pelo público de Porto Alegre, vale lembrar que aqui foram os primeiros palcos de junho. E para aqueles que acham que a direita está muito forte, ganhou as ruas, devemos dizer que embora de fato a direita tenha crescido na esteira da traição da direção do PT, embora tenha tido passeatas de milhares nas ruas em 15 de março de 2015, tendo como principal referencia Aécio Neves, 2015 terminou com centenas de milhares de jovens em São Paulo tomando as escolas e derrotando o governo do PSDB. Jovens que estavam contestando o capital, os burocratas, sendo protagonistas de seu destino. E 2016, antes do 13 de março – quando Aécio Neves e Alckmin foram vaiados em seu próprio palanque –, começou com as passeatas contra o aumento das passagens de ônibus novamente em São Paulo. Estas passeatas foram bloqueadas por forte repressão policial. A experiência tem sido feita por milhares de novos possíveis ativistas. É possível e até provável que não tenhamos no Brasil neste ano um levante que se assemelhe ao que foi junho de 2013. Até mesmo um forte ascenso do movimento de massas tem sido bloqueado pela desilusão, pela falta de perspectiva, pelo peso das traições, mas estão se acumulando contradições. O que é mais gritante é que “tudo que é sólido desmancha no ar”.

Se podemos comparar junho de 2013 com as manifestações domingueiras insufladas pela direita desde 15/03/2015, afirmamos que para além do simulacro, existe um dado alvissareiro para as forças da mudança e contra a ordem: a juventude, principal sujeito social das jornadas de junho, foi a grande ausente das manifestações que a direita tem patrocinado.

Esse processo de ruptura geracional é profundo e terá desdobramentos inevitáveis. A nova pauta de luta por direitos contaminou as ruas com a primavera feminista. Existe um novo ativismo LGBT e do movimento negro, das lutas antiproibicionistas, de lutas por direitos urbanos. A vitória dos estudantes secundaristas de São Paulo nas suas ocupações teve um impacto fundamental, pois questionou não apenas o governo tucano como toda a estrutura de poder dentro da escola, derrubando algumas de suas direções, deixando marcas nas cerca de 200 escolas ocupadas, desde as mais tradicionais e centrais, até as escolas de periferia, nas quais toda a comunidade escolar se mobilizou para apoiar a luta secundarista.

O movimento de massas rompeu a passividade de anos anteriores. Assim, embora ideias de direita tenham se fortalecido em uma parcela das massas — e também posições de extrema-direita como as de Bolsonaro — e estejamos sofrendo uma contrarrevolução econômica permanente que atinge sobretudo o movimento operário e dificulta a organização e a construção de uma proposta alternativa e anticapitalista, não há uma perspectiva de retrocesso das lutas sociais nem de bloqueio intransponível para as forças de esquerda. Longe disso. As forças burguesas seguem dominando o país, por obvio, e sua ideologia é amplamente dominante. Soma-se a isso o fato de que a traição do PT provou desencanto, desilusão, ceticismo. Se ainda levarmos em conta que não rompemos o período de ausência de alternativas, de crise ideológica provocada pelo stalinismo, seremos conscientes das dificuldades. Mas também não se pode perder de vista os espaços vazios. E a situação atual do PT abre um espaço a ser preenchido por uma esquerda da esquerda.

Aprender com os erros do PT

Então, não teremos uma construção fácil. Mas temos uma luta em curso. Não estamos com a terra arrasada e temos uma enorme responsabilidade. Se há algo útil na crise e na bancarrota do PT é justamente o desmoronamento de que podemos viver de ilusões. O PT passou mais de duas décadas chamando os trabalhadores a votar no partido e a acreditar que com o PT governando a situação seria de progresso para todos. Esta ilusão caiu. E se há algo verdadeiro na política é que a única saída possível para que se construa uma alternativa é que a mobilização de massas deve ser permanente. Quando a mobilização cessa, a política de emancipação cessa, se congela e retrocede. O PT reduziu sua política ao dizer que o voto mudava a vida. Passou duas décadas desmobilizando com esta ideologia.

O caminho não é fácil. A desilusão causada por esse fim de ciclo vai recair, de alguma ou outra forma, sobre o conjunto da representação das ideias progressistas, sobre a disputa e o significado do próprio termo “esquerda”. Assim como a queda do muro de Berlim teve suas inegáveis contradições, abrindo todo um período de recomposição e de retrocesso na consciência, no Brasil pós-PT teremos uma longa reconstrução a ser feita. Nossa batalha contra o desencanto vai levar tempo. Ela é inevitável, mas antes que nada necessária.
Por isso, o PSOL tem responsabilidade. Afinal, o PSOL tem chances de ter peso eleitoral. Já tem peso eleitoral nas capitais e em pelo menos três capitais disputamos com chances reais de vitória: Porto Alegre, Rio de Janeiro e Belém. Nosso desafio é fazer não apenas uma campanha eleitoral, mas um movimento político e chamar o povo a confiar em si mesmo, na força da sua luta e organização. É claro que a eleição é importante. Seríamos tolos se não víssemos isso. Podemos dar saltos de construção nas eleições. A burguesia também sabe disso e por isso aprovaram a lei da mordaça, que corta espaços do PSOL para fazer o debate público eleitoral. Mas a política não se resume à eleição e neste ponto temos que usar a lei da mordaça como mais uma prova de que esta democracia não é verdadeira, não é real, e que o Estado, sempre que esteja ameaçado, por menor que seja esta ameaça, usa a força da repressão contra o povo. Os jovens de São Paulo viram isso em janeiro. Se conseguirmos transmitir essas ideias, estaremos dando um grande passo. Será apenas o começo. Um começo que é também um recomeço. Um recomeço de uma ideia que não é nova. Uma ideia comunista, de luta pelo comum, pela propriedade comum, que afirma sempre sua necessidade. Uma necessidade ainda mais evidente quando o capitalismo mostra sua natureza de um regime profundamente desigual, concentrador de riqueza e de poder, e produtor de crises que levam cada vez mais pessoas à miséria e ao desespero.

Esta ideia busca sua realização de formas variadas e tem sido reforçada por movimentos intermediários que, ainda não sendo diretamente coletivistas, são críticos ao capital financeiro, ao domínio do capital financeiro e da guerra. Exemplos como o Syriza, que não teve força e consistência para ir adiante, e sobretudo o processo de construção de alternativas, do Podemos da Espanha, que está alternando a política da Espanha e abrindo possibilidades desconhecidas, do Bloco de Esquerda em Portugal, etc., são indicações de que é possível ganhar influência de massas. São processos que nos inspiram e mostram que não estamos sozinhos.


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Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional

Autores

Pedro Micussi