Rechaçar o medo como afeto político central em nosso país

No atual momento da vida política do país, os caminhos para a reorganização da esquerda brasileira merecem ser debatidos.

Vladimir Safatle 26 abr 2016, 14:28

No atual momento da vida política do país, algumas questões merecem ser debatidas. Em primeiro lugar, vale apreciarmos uma tese que nos últimos tempos vem sendo bastante utilizada por setores da esquerda brasileira, de modo equivocado, uma vez que ela tende a paralisar não só a nossa capacidade de avaliação como também a nossa capacidade de projeção de alternativas futuras: a ideia de que nós estaríamos sendo tomados de assalto neste instante por uma verdadeira e avassaladora onda conservadora.

A princípio, esse ascenso conservador pareceria evidente, se trazida à mente uma série de dados a respeito a conjuntura nacional e, até mesmo, do contexto mundial. Temos acompanhado o desenvolvimento da extrema-direita na Europa e suas impressionantes aquisições eleitorais, bem como, no Brasil, um novo modelo de organização da direita, que sai às ruas e faz mobilizações populares, o que há décadas não se via por aqui. De certa maneira, tais evidências revelariam uma situação na qual teríamos que lutar contra ou se defender de uma grande onda conservadora.

É preciso insistir que esse pressuposto analítico esconde o fato fundamental de que em todo lugar onde há uma direita que cresce e ganha força, há uma esquerda que fracassou. Frente a isso, a primeira questão a ser trabalhada, portanto, é mais do que tentar mobilizar as pessoas pelo medo, como ocorre ultimamente. Recorrer ao velho raciocínio de invocar a luta imediata contra um “inimigo em comum” corresponde em última instância a não propor nada e a não mobilizar por nenhum tipo de perspectiva ou expectativa. A mobilização ocorre nesses casos pelo medo, obrigando-nos a refletir sobre o que acontece quando esse sentimento de temor torna-se o afeto político central. Nós nos vemos agora numa situação onde não se tem a força necessária para propor algo e, ao contrário, a única força existente serve para amedrontar as pessoas.

Para que haja um avanço, necessitamos antes de tudo nos livrar de certos afetos: não podemos admitir em hipótese alguma que o medo se transforme no afeto político central do nosso país, em contraposição ao que ocorre hoje em dia tanto pelo lado da direita quanto pelo lado de um forte setor da esquerda. Mobilizações são feitas a partir do argumento de que, se essa pretensa onda conservadora de fato tomar o poder, teremos situações inimagináveis, apocalípticas, muito piores que o golpe de 64. Por várias razões, tudo isso beira o limite da desonestidade intelectual.

Primeiramente, a onda conservadora não chegará ao governo, pois na verdade já chegou. Ela inclusive vem do governo e não precisa vir de fora. Tomemos como exemplo o episódio em que o PSOL conseguiu aprovar no Congresso a auditoria da dívida pública, uma proposta clássica de qualquer partido de esquerda. Todos sabemos como o Estado brasileiro absorveu dívidas privadas, responsabilizando-se por boa parte daquilo que eram atividades empresariais desde a ditadura militar. Mas cabe a pergunta: quem se recusou a autorizar a auditoria, chegando a classificar tal proposta como ingênua do ponto de vista econômico?

Ou, então, vale lembrar que em janeiro diante de mobilizações absolutamente centrais contra os preços abusivos de tarifas dos transporte público no Brasil e, especialmente em São Paulo, houve um prefeito que interpelou um movimento social da importância MPL, sugerindo-lhe que elegesse um mágico, e não um prefeito, para alcançar suas demandas. Quem foi esse prefeito que também declarou estar cogitando fazer, antes da Tarifa Zero, o “Disney Zero”, “almoços grátis” e absurdos do gênero? Teria sido um político de direita? Na realidade, para ser sincero, é difícil recordar um político de direita que tenha demonstrado tamanho desrespeito por um movimento social quanto esse prefeito que se diz de esquerda.

Portanto, não há por que se temer a chegada de uma onda conservadora, visto que de uma certa forma ela já está aí no governo e, pior de tudo, está nos fazendo pagar o preço. Trata-se, em última instância, de um “governo de esquerda” que faz tudo o que a direita faria, com a diferença de que a direita não precisa arcar com os custos de fazer isso, já que se encontra aparentemente “fora” do governo. Logo, não há situação melhor para a direita: desarticula-se totalmente aquilo que seria uma política de esquerda em nome da esquerda, sem que a direita precise se desgastar.

Em larga medida, este é o modelo que enxergamos no mundo inteiro. Na França, por exemplo, existe um governo que tenta aprovar agora a possibilidade de cassar a nacionalidade de qualquer suspeito de praticar “atividades terroristas”. Este mesmo governo colocou o país em estado de exceção por mais de duas semanas, acima do previsto constitucionalmente. Ao mesmo tempo, manifesta o desejo de acabar com o Estado Islâmico, pretensão um tanto insólita para quem quase se assemelha aos 12 anos de estado de exceção mantidos pelo nazismo. A direção desse governo está nas mãos de um partido que tem a coragem de se chamar “Socialista”, ou seja, um partido que a princípio seria de esquerda.

Esta é a questão fundamental: é necessário ter bastante clareza de que nós conseguiremos muito facilmente desarticular qualquer possibilidade de organização vinda da direita, se a esquerda tiver alguma coisa para propor com franqueza sem ficar presa ao “possibilismo”. Convém destacar que onde a esquerda conseguiu mobilizar elementos centrais no que tange ao aprofundamento da democracia direta, essa esquerda ganha. Quando seus partidos, seus sindicatos e suas instituições deixam de ter uma perspectiva centralista, hegemonista e hierárquica para assumir a construção de processos não mais controlados e com uma dinâmica própria, bons resultados são alcançados. Na Espanha, por exemplo, a esquerda obteve efeitos eleitorais impressionantes.

Não se trata simplesmente de afirmar que “essas são as possibilidades econômicas que estão dadas para nós”, mas de impor de uma maneira muito forte a ideia de que existe sim uma luta de classes e a questão é onde nós estamos. Como dizia não um ideólogo da esquerda, mas um dos maiores investidores de Wall Street, Warren Buffet, “claro que existe a luta de classes e nós estamos ganhando”.

Não é possível, por exemplo, nós não partirmos de uma revolução tributária. Eu não consigo lembrar-me de nenhuma outra crise neste país em que os dois maiores bancos privados tenham mais de 20 bilhões de reais de lucro líquido em um ano. Que estrutura de crise é essa? Temos o deslocamento de capitais do setor produtivo para o setor financeiro. Mas não há nenhuma perda nesse sentido.

O ponto central é: que fazemos diante disso? Qual é a nossa força? Por que as nossas proposições não são seriamente discutidas? Por que nós não batalhamos com elas? Será que somos capazes efetivamente de impor um modelo de democracia direta, efetivo, concreto e real, do qual nosso partido não tome para si o controle de mais processo algum? Será que podemos impor um projeto real de luta contra a desigualdade, para além do que ocorreu na última década no Brasil, onde passamos na verdade por um processo de capitalização das classes mais pobres?

Devemos ressaltar que os padrões de desigualdade do país continuaram basicamente os mesmos. Utilizamos durante certo tempo dados ligados à renda e aos salários, enquanto não levávamos em conta que o 1% da sociedade era formada por rentistas. Se considerarmos a perspectiva do rentismo brasileiro, perceberemos que não houve nenhum tipo de combate à desigualdade no sentido mais forte do termo. Se observarmos que a discussão sobre a desigualdade vai além do econômico e abrange o social e cultural, eu diria que não há lugar onde a esquerda se enfraquece.

Ironicamente, estamos num momento muito peculiar da história do mundo, no qual os Estados Unidos são um dos únicos lugares em que há um político que se diz clara e francamente socialista, que consegue ser ouvido pela população e crescer. De modo interessante, observamos na política nacional e mundial a tendência de se caminhar para os extremos. Tal caminho é inevitável. Cada vez mais, haverá uma direita extremada e há apenas uma maneira de se contrapor a isso: uma esquerda que se coloque cada vez mais enquanto esquerda. Ocorre que na situação atual, a direita já entendeu isso muito bem e aos poucos migrou para as suas extremidades. Ela se articulou como um conservadorismo de costumes, um conservadorismo político e um conservadorismo econômico. Algo inédito neste país. No máximo, havia um conservadorismo econômico e político, enquanto predominava um “liberalismo” de costumes, no padrão “PSDB way of life”. Hoje existe uma direita que articula concretamente esse tripé conservador, o que era óbvio e compreensível há pelo menos três ou quatro anos do ponto de vista da dinâmica da política brasileira. E digo mais: eles ainda se organizarão sob uma forma partidária, conseguirão não mais precisar estar dentro desses consórcios construídos durante a Nova República, como o PSDB, e desfrutarão de autonomia, a ponto de mobilizar mais de 15% da população. Isso é nitidamente evidente.

O crucial é o que acontece do outro lado. Por que nós não conseguimos organizar aquilo que realmente representamos: aqueles 15 a 20% da população brasileira? Todos os dados de pesquisa demonstram claramente que há pelo menos 30% da população nacional que se diz claramente de esquerda. Trata-se de um eleitor orgânico que sempre votou à esquerda e que vai continuar votando. Tais pessoas encontram-se atualmente desmobilizadas e pior estão com vergonha de falar alto que são de esquerda, que acreditam de fato no socialismo. Por quê? Se nós não começarmos a compreender isso, não vamos conseguir reconstruir o campo da esquerda nacional.

A reconstrução passa por, entre outros fatores, não só a reorganização do nosso discurso e pela absorção de novas pautas, mas também pela compreensão de que nós não vamos conseguir organizar essa parcela da população continuando com as mesmas estruturas e os mesmos modelos de organização de sempre. Essa questão se transformou em decisiva e central: nossos modelos de organização estão completamente inadequados para os dias de hoje. Se nós não tivermos coragem de abandonar nossa característica centralista, hegemonista e hierárquica, nós não vamos conseguir impedir que nosso potencial se disperse por todos os lugares. Como colocado anteriormente, essas pessoas de esquerda têm uma consciência muito clara de que elas não apenas sabem que a democracia representativa tem um limite, mas também reconhecem que a ideia política de representação tem um limite. Talvez tenhamos chegado a um momento em que nós devemos abandonar a ideia política de representação, a noção de que só se existe politicamente quando se é representado, de que só se tem voz quando se representa alguém.

Sempre me impressionei com o fato de que a filosofia política fez a crítica da representação há mais de 150 anos e a política ainda não conseguiu fazer. Temos um pouco essa ideia de que a representação organiza um campo de dramatização dos conflitos políticos a qual seria fundamental para o funcionamento da democracia. Não percebemos que tanto no campo da micropolítica quanto no campo da macropolítica talvez estejam os elementos fundamentais que bloqueiam nossa capacidade de construção de novos atores e sujeitos políticos. Talvez estes sujeitos políticos não queiram mais ser representados. Lembro-me de uma frase de um manifestante em junho de 2013 durante uma entrevista. A jornalista perguntou-lhe o nome e ele respondeu, de modo fantástico, “eu sou ninguém”. A sua pretensão era dizer que não desejava aparecer como a mídia normalmente impõe a presença das pessoas. Se o objetivo é realmente construir uma nova subjetividade política, não se pode começar imaginando que isso será alcançando apresentando-se sempre da mesma maneira. É melhor, então, falar: “Anota aí, meu nome é ninguém”. Marx falava: “Falta ainda a capacidade de se dizer eu não sou nada, por isso eu posso ser tudo”.

Um dado político fundamental é que não nos faltam propostas. Seríamos capazes de fazer uma ampla compilação do diagnóstico da crise e da falência do lulismo, além de medidas que deveriam ter sido adotadas ou não. A falta de diagnóstico sobre o que acontece não consiste no problema presente. Ao contrário, temos a caracterização muito precisa de onde a situação começou a degringolar. Falta-nos, antes de mais nada, uma clareza sobre o que serão os sujeitos políticos daqui para frente, como eles estão dispostos a aparecer e a falar, e até que ponto nós seremos capazes de permitir que esse espaço apareça.

Por fim, concluiria que talvez uma das questões fundamentais para a esquerda hoje é compreender de uma vez por todas que governar não é dirigir. Se um dia a acreditamos nisso, devíamos parar com isso de uma vez por todas. Governar é garantir que as pessoas possam se dirigir a si mesmas.


Artigo baseado em intervenção realizada no Seminário Internacional da Fundação Lauro Campos, em 23/01/2016, durante o Fórum Social Temático em Porto Alegre.


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