Ideologia, política radical e os desafios da educação: de Gramsci a Marcuse

Um debate a partir das reflexões de Gramsci e Marcuse sobre Educação

Juliano Niklevicz e Maycon Bezerra 26 jul 2016, 18:18

Pensar as tarefas da educação contemporânea não é tarefa fácil aos marxistas. Em primeiro lugar, porque Marx não desenvolveu de modo pleno uma concepção de educação, ainda que tenha delineado a partir de seu método, análise e conceitos o que poderíamos chamar de uma “pedagogia da práxis”, formulada indiretamente sob o solo da teoria revolucionária. Em segundo lugar, porque pensar a nossa realidade sob o enfoque das tarefas da educação e na esteira do marxismo exige entrar em contato com a tradição do pensamento crítico e contrahegemônico em suas diferentes formulações, atualizando-os a um presente dinâmico e rico em contradições. Tendo em vista esta tarefa, em consonância com o perfil desta revista, é que o presente ensaio foi elaborado: como disse Roberto Robaina na ocasião do lançamento da revista em Porto Alegre, um esforço de resistência do marxismo.

A ideia é refletir sobre a teoria e a prática da educação contemporânea tendo em vista um propósito imperativo que unifica diferentes escolas de pensamento forjadas sob o marxismo: o objetivo da emancipação humana e a necessidade da superação do capitalismo. Convidamos para este debate alguns pensadores que, apesar de viverem numa época semelhante na juventude, são de escolas distintas e produziram obras que dificilmente vemos cruzadas num diálogo, ainda que tratem de problemas comuns e atuais: o pensador e militante comunista italiano Antônio Gramsci e o filósofo alemão Herbert Marcuse.

É curioso notar, a despeito da falta de interesse recíproco entre ambos, que a proximidade destes pensadores não se restringe apenas ao tempo e ao espaço, mas também aos enfrentamentos políticos que se dispuseram a realizar durante um conturbado período do século XX. Enquanto, de um lado, não só Marcuse mas também Adorno e Horkheimer, judeus exilados da Alemanha nazista, se propuseram a formar o Instituto de Pesquisa Social com o intuito de repensar ulteriormente o marxismo a luz das mudanças do capitalismo e do avanço da ciência e da técnica, problematizando assim a cultura de massas nas sociedades industriais civilizadas, tanto a partir da identificação de novos sujeitos históricos com espírito e sensibilidade mutilada, quanto a partir do infeliz desfazimento constante da crítica radical perante um sistema que satisfaz necessidades manipuladas sob a lógica da mercadoria; por outro lado, como dirigente do partido comunista no início da década de 1920, e pensador comprometido não só com uma reflexão crítica do presente mas, sobretudo, com a formulação de um programa revolucionário, Gramsci constrói de modo singular e distinto dos seus contemporâneos alemães a estratégia teórica e prática para se pensar as contradições da cultura capitalista, não somente como uma forma de expressão e organização sistemática da hegemonia e do controle social e político dos “de baixo”, a partir de seus “intelectuais orgânicos” e das “agências” de disseminação ideológica, mas ainda como palco da luta pela construção da contrahegemonia nas suas diversas trincheiras, da arte à política e, entre elas, a educação. Isso indica que há um terreno fértil de articulações possíveis entre estas escolas que vale a pena ser investigado, seja pela afinidade, seja pelo desencontro1.

A obra que marca para a tradição de Frankfurt a desconfiança radical da racionalidade civilizada que é fruto do capitalismo industrial, e que serve de base para a crítica da cultura e da educação, é a Dialética do Esclarecimento (1944). Escrita por Adorno e Horkheimer sob a sombra do nazi-fascismo, na penumbra de um movimento político que além de devastar objetivamente a Europa solapou também as esperanças mais otimistas no progresso da razão, a obra se pergunta sobre o motivo que fez com que o desenvolvimento da cultura ocidental tenha se conduzido ao colapso social e a barbárie. O “desvario político” que era observado com terror deveria ser explicado não apenas pela instrumentalização da miséria material ou por fatores meramente econômicos, mas, sobretudo de um ponto de vista filosófico, pela crítica do percurso do esclarecimento, que desde a revolução francesa, da busca da “saída do homem de sua menoridade da qual ele mesmo é culpado”, como diz Kant, até o capitalismo totalitário em sua face estatal ou “democrática”, sucumbiu no avesso de si mesmo. O tema dialético da “autodestruição da razão”, para esses autores, cujo signo máximo foi o Estado nazista, mas que nem de longe se restringe a um único povo ou formação social-institucional, se prolonga às sociedades democráticas contemporâneas e só pode ser verdadeiramente entendido se olharmos para a constituição do sujeito nas sociedades industriais avançadas, nas quais o “cerceamento da imaginação teórica” é um subproduto do progresso tecnológico, imposto e ocultado pela cortina ideológica do capitalismo para esconder a “desgraça real” como condição da dominação.

Neste horizonte de questões, principalmente para Marcuse, a pergunta sobre as tarefas da educação aparece. Ainda que o filósofo fale do lugar da academia e não da militância, a constante interlocução com movimentos sociais radicais, movimento negro e feminista de libertação, movimento ambientalista e, sobretudo, movimentos de juventude, junto com seu apoio irrestrito mas crítico a diversos grupos que se revoltavam contra o sistema de dominação do capital, deixam evidente um traço particular sobre a teoria e a prática que o diferencia de outros colegas de instituto, e por isso justifica sua retomada teórica para a presente reflexão.

A crítica do poder da ideologia

Gramsci, ao longo de sua vida e, especialmente, na condição de prisioneiro sob a tutela do regime fascista de Mussolini, se preocupou em lançar luz sobre a ideologia, a dimensão mais propriamente superestrutural da dominação burguesa e, ao mesmo tempo, da estratégia e prática revolucionária socialista. Ainda que não seja necessário concordar com a integralidade de suas formulações, o fato é que sua reflexão sobre o lugar da hegemonia e sobre o papel dos intelectuais no âmbito da luta de classes e da transição ao socialismo põem em uma nova condição a preocupação emancipatória nos marcos da práxis educativa, e também a preocupação educativa nos marcos da práxis emancipatória e revolucionária.

Segundo Gramsci, na esteira do pensamento de Marx, a dominação de uma classe sobre o conjunto da sociedade exige mais do que a simples coerção pelo uso da força ou pela ameaça da violência. As massas populares precisam ser, permanentemente, “domesticadas”. Tal como disse Marx ao afirmar que as ideias dominantes são sempre as ideias da classe dominante, Gramsci reafirma este postulado e eleva-o a um nível radical de concretude, buscando na realidade de seu tempo e no processo histórico os modos pelos quais essas “ideias” da classe dominante se tornam “ideias” dominantes, sendo assim, instrumento privilegiado da própria dominação de classe. Por essa trilha, chega à compreensão de que a dominação dessas ideias pressupõe determinadas estruturas, agências e sujeitos, diretamente envolvidos na reprodução de tal dominação.

A categoria marxista da ideologia é também o ponto de partida de Marcuse, para quem o pensamento hegemônico não só precisa de agências, estruturas e sujeitos, mas materializa a dominação ideológica no complexo aparato tecnológico e científico, como se estes, tendo o capital como sujeito oculto, ganhassem um tipo de autonomia em ditar padrões de comportamento e pensamento. Tendo em vista que tal engenho e aparato precisa ser reconhecido e reproduzido por cada indivíduo para poder legitimar-se, a reflexão de Marcuse indica que este mecanismo no interior das sociedades altamente desenvolvidas introduz novas formas de controle, que invadem a esfera da subjetividade para além da dominação da consciência, sendo a “dominação interiorizada num grau inaudito” no sujeito, em sua sensibilidade e impulsos elementares, o que faz com que “os homens sintam como suas necessidades e seus próprios fins aquilo que de fora é impregnado neles”. É nesta direção em que o filósofo fala em uma espécie de segunda natureza, indicando que “a cultura é mais do que ideologia (…) é um processo de humanização”. Ainda que Marcuse vá além, podemos aqui de modo esquemático pontuar alguns dos conceitos essenciais.

Entre a articulação de diferentes tradições da filosofia, a profícua combinação de conceitos da psicanálise de Freud com a teoria de Marx sem dúvida aparece como central. O motivo é o esforço de Marcuse em entender os sujeitos contemporâneos a partir dos modos como a ideologia é subjetivamente reproduzida. Em seu livro O homem unidimensional (1964), talvez sua principal obra, aborda as novas formas de “integração” do homem à sociedade industrial avançada e unidimensional (particularmente a sociedade norte-americana) em três aspectos principais: primeiro, no âmbito da política, a partir de um elevado padrão de vida administrado, que proporciona bem-estar social na medida que suaviza e gratifica a existência, distribui as mercadorias e apazigua potenciais de revolta e negação 2. Segundo, no âmbito da cultura, na medida que os elementos de oposição, sublimação e transcendência, antes possibilitados pelo acesso à obra de arte e à “alta cultura”, são liquidados ou parcialmente invalidados conforme se realiza sua distribuição em grande escala e absorção pela sociedade unidimensional3, ao mesmo tempo em que a produção cultural central é hegemonizada pelo capital para sua autoreprodução. Por fim, no âmbito da sexualidade, onde a liberalização sexual incentivada pela civilização é um subproduto das formas de controle político-econômicas, e a satisfação que gera submissão à racionalidade tecnológica é completamente permitida e incorporada pela ordem sem qualquer risco, concretizando assim um tipo de gratificação erótica reduzida, mas liberalizada, que serve para coesão social4. Na verdade, nenhuma destas esferas pode ser entendida separadamente; se o sistema é total, o modo como afeta os sujeitos é total e dialeticamente articulado.

À segunda e terceira forma de integração corresponde a predominância do fenômeno chamado dessublimação repressiva. Segundo Marcuse, tal conceito opera a partir da identificação imediata dos desejos com os objetos disponíveis à sua satisfação. Em outras palavras, se entendermos o conceito de sublimação que Marcuse resgata de Freud como a possibilidade de satisfação pelo desvio da pulsão sexual direta, e seu direcionamento para outras funções de valor e caráter social, de gratificação e prazer pela mediação, transcendência da imediaticidade, então a “dessublimação repressiva” é entendida como uma adaptação, acomodação e incorporação do sujeito, tanto na esfera sexual como cultural, que se caracteriza pela liberalização e amplo acesso direto aos objetos do desejo sempre mais disponíveis. A consequência deste mecanismo é o sentimento de aumento de liberdade – da sensação de liberdade – de satisfação e gratificação imediata, enquanto se intensifica a dominação5. A satisfação e gratificação se tornam repressivas, pois sustentam uma ordem que precisa manipular a dimensão mais intima dos sujeitos: as pulsões.

Assim como Marcuse, mas a sua maneira, Gramsci parte do conceito marxista de Estado e de ideologia, como expressão política da dominação de classe, e, portanto, como um projeto histórico e social que pode ser superado, incorporando a esta ideia a concepção de “Estado ampliado” que desenvolve, além dos aparatos jurídico-governamentais propriamente ditos, também aquele sistema de estruturas, agências e sujeitos – estatais e privados – responsáveis pela supremacia dos modos de percepção, explicação e apreciação da realidade constituídos desde a perspectiva da classe dominante e funcionais a sua dominação. Desse modo, a dominação burguesa aparece a Gramsci como resultado da operação simultânea de vários complexos institucionais, a partir dos quais se exerce a coerção e a hegemonia que estabelecem as sociedades burguesas enquanto o que são. No entanto, para Gramsci, essa dominação burguesa não é absoluta. Apoiada sobre contradições fundadas em sua base econômica, ela não se impõe, portanto, como uma jaula de ferro histórica aos de baixo. As classes subalternas são capazes de construir sua auto-emancipação ideológica, política e social, porque sua condição material é contraditória com a concepção de mundo hegemônica que incorporam e professam explicitamente. Segundo a tese de Gramsci, na resistência prática à degradação de sua condição material, as massas populares podem alcançar a coerência revolucionária entre essa sua condição e uma nova concepção de mundo, forjada a partir do seu próprio ponto de vista social concreto. Essa nova concepção de mundo, cujo desdobramento é a “filosofia da práxis”, emerge a partir da crítica – prática e teórica – das massas populares à ordem estabelecida e ao senso comum que lhe serve de amálgama.

Essa noção de “Estado ampliado” implica uma atividade de persuasão permanente por parte da classe dominante, através de seus intelectuais (os “funcionários da hegemonia”). Essa atividade é tão complexa, dinâmica e institucionalizada quanto a atividade propriamente político-governamental. Tanto o exercício da hegemonia (direção) por parte da classe dominante, como a construção de uma nova hegemonia, a partir da práxis revolucionária das classes subalternas, em torno de um projeto e uma vontade autenticamente popular, consistem em processos cuja natureza é essencialmente pedagógica. Ou seja, a luta de classes possui uma dimensão educativa que é uma de suas dimensões constitutivas inerentes e decisivas. Por aqui, a reflexão de Gramsci atribui à educação, realizada dentro e fora da escola, um papel estratégico na reprodução do status quo e, ao mesmo tempo, fundamental para a autoemancipação dos trabalhadores e dos demais setores sociais oprimidos pela ordem burguesa.

O pressuposto material para construção desta autoemancipação ideológica é, como dissemos, a existência de uma oposição concreta entre a condição material da classe explorada, seu estado de vida como um todo, e a classe dominante, o outro a ser derrotado. Neste ponto, Marcuse traz uma reflexão de valor sobre o tema da formação de consciência das massas populares. Para ele, em determinados períodos históricos e sob certa conjuntura de estabilização – como, por exemplo, a que ocorria nos EUA nos anos 50 e 60 – a classe trabalhadora se encontra em condição material de maior satisfação de carências e necessidades (ainda que sejam falsas necessidades), e por isso, não é suficiente adquirir conhecimento e ciência de sua situação e dos demais. Noutras palavras, não basta ter consciência e instrução do saber acumulado socialmente, mesmo que numa perspectiva crítica, pois ainda que a diferença entre patrão e empregado, entre os de cima e os de baixo, entre dominação e servidão, seja talvez maior do que em épocas passadas conforme se efetua o desenvolvimento capitalista, as contradições do capitalismo estão sendo levadas cada vez mais a uma forma eficientemente manipulável devido à enorme produtividade e ao progresso técnico. Não se pode deixar de dizer que esta tese reflete um período de Welfare State que, de certo modo, tem se mostrado cada vez mais frágil e quebradiço do ponto de vista econômico, se observarmos as constantes ondas de crises que o capitalismo atravessou desde 1973 até o momento atual, o que implica mudanças visíveis nesta “estabilidade integrada”[6]. O avanço tecnológico, no entanto, não oscila na mesma lógica, se mantendo a despeito das variações do sistema.

Neste novo registro, a classe que sempre representou a negação viva do capitalismo, que é em si sua antinomia pela própria lógica da organização social exploradora, é suspendida de tornar-se para si a negação da burguesia, elevar-se em classe revolucionária, pois foi se tornando cada vez mais integrada num sistema que entrega as mercadorias, satisfaz anseios por ele mesmo criados, fabrica falsas necessidades, dá prazer e “realiza” os sujeitos. Se pudermos ser pessimistas, teríamos de nos perguntar: ainda faz sentido falar no sujeito clássico que deve ser a negação absoluta da ordem quando ocorre que “os sujeitos nesta sociedade realmente se encontram a si mesmos nos seus automóveis, aparelhos de televisão, gadgets, jornais e politicos?”7. Para Marcuse deve-se desconfiar da existência óbvia deste sujeito no mundo contemporâneo, já que “este é um mundo de identificação – não são mais objetos mortos que se opõe aos indivíduos como se fossem estranhos”8.

Apesar destas condições não poderem ser traduzidas de modo imediato para a situação dos países não desenvolvidos (como o próprio Marcuse não cansa de frisar a respeito da diferença de caracterização quando se olha para o “terceiro mundo”9), e apesar de que ela não pode servir de justificativa para a resignação (isso significaria ter uma leitura a-histórica, reificando a teoria), a ponderação do filósofo de Frankfurt deve ser levada em conta quando vemos que o processo de automação crescente do sistema produtivo e a inserção via consumo da atual sociedade traz dificuldades, por fazer do trabalhador que conhecemos ao mesmo tempo um objeto/sujeito ativo/passivo da reprodução objetiva e subjetiva do capital, de tal modo que ele tende a se tornar mais reativo do que, realmente, ativo.

Além disso, este exame não implica que não se deva forjar uma base popular e de massas como estratégia revolucionária: “as forças revolucionárias emergem do próprio processo de transformação; a tradução do potencial para o real concreto é trabalho da práxis política”10. Todavia, para Marcuse, ser marxista não é proclamar máximas revolucionárias, mas articular a teoria com o presente, validá-la na concretude de realidade. Numa conjuntura marcada pelo descrédito com os partidos políticos, ausência de um partido de massas e pela transformação do partido comunista em um partido socialdemocrata – como ocorreu, por exemplo, na década de 60 e 70 em grande parte da Europa – o que aparece a vista para Marcuse como agente de radical de transformação é menos a classe operária e mais a luta dos estudantes, das mulheres, dos negros e negras, do movimento ambientalista radical, que poderiam inflamar um processo de luta radical que pudesse por sua via dinamizar e despertar o movimento de massas: não coincidentemente, tais elementos mantem um sinal de alerta exemplar para as lutas do presente.

A Ideologia e a Educação

Feitos estes primeiros apontamentos, apesar das diferenças de leitura sobre a definição de ideologia entre nossos autores, um traço que unifica o filósofo alemão com o pensador militante italiano é a consideração de que esta, e por isso também a educação se entendida de modo amplo, se processa por toda parte: no ambiente de trabalho, no interior da família, no transporte coletivo, na igreja, e inclusive na escola e na universidade. A partir disso Gramsci elabora uma noção fundamental para nossa proposta, ao dizer, por mais que todas as pessoas estejam permanentemente se educando e educando umas às outras pela interação social, os agentes por excelência dessa prática educativa e hegemônica são os “intelectuais orgânicos”.

Mais do que os filósofos e eruditos, a noção de “intelectual orgânico” aponta para os dirigentes e organizadores do modo de vida prático das massas populares sob a ordem burguesa: são administradores, cientistas, engenheiros, juízes, políticos, técnicos, burocratas, gerentes, jornalistas, professores e etc. Para Gramsci, da mesma forma como a dinâmica histórica do capitalismo forneceu à burguesia esses “intelectuais orgânicos”, que, por seu lado, elaboram e reproduzem a consciência coletiva burguesa, caberia ao outro lado, o lado das classes populares, juntamente com sua práxis inconformista e crítica, fomentar os seus próprios “intelectuais orgânicos”, capazes também de sistematizar um sentido teórico e prático de classe, independente e revolucionário.

O “intelectual orgânico” dos de baixo é, para Gramsci, tanto o “homem do povo” que entre os seus organiza, mobiliza, dirige e educa; expressando nas suas ideias e na sua conduta uma outra concepção de mundo, coerente com sua condição concreta, operando como eixo em torno do qual seus pares adquirem força coletiva, firmeza de vontade e independência intelectual e moral; como também o “homem de letras” ou o educador escolar comprometido de modo militante com o projeto hegemônico dos trabalhadores, voltado à sua emancipação. Como e enquanto educador escolar, expressando, difundindo e agregando em torno de uma nova concepção político-pedagógica, esse “intelectual orgânico” cumpre um papel decisivo no processo de construção de uma nova hegemonia popular e revolucionária.

Este entendimento do papel e importância do intelectual é igualmente nuclear para Marcuse, ainda que não enfatize a questão da educação das massas populares, fato que diz muito do lugar de onde fala e para quem fala11. Ainda assim, ganha relevo a chamada “revolução cultural”, que seria melhor designada como “revolta total” contra os modos de vida, arte, cultura e conhecimento, e contra a organização e a hipocrisia socialmente normalizados na sociedade burguesa. Esta revolta é posta em prática prioritariamente pela juventude, movimento ambientalista, pela luta das mulheres e do movimento negro, mesmo com todo radicalismo por vezes deslocado e inconsistente. Estes são, sem dúvida, a contra-força mais avançada contra o sistema de coisas, justamente na medida em que promove e direciona sua ação para o terreno da emancipação política da sensibilidade embotada: ou seja, a construção de novas formas de ver, sentir, ouvir e viver. Tal revolta é pulsional, e repudia com “ódio visceral” a “unidade de opostos” alienada e alienante presente no Establishment, entre violência e beleza, prazer e horror. Marcuse sublinha, de modo esperançoso, que nos movimentos de revolta em geral, a longo prazo, “a dimensão política não poderá continuar divorciada da estética12, nem a razão da sensibilidade, o gesto da barricada do gesto de amor”.

O fenômeno da rebelião que estava presente não só no maio francês, mas que hoje está nas ruas exigindo outro tipo de cultura, de cidade, de relação humana fraterna e solidária, tem urgência de se politizar, dar o salto de sua revolta pulsional para a revolta política organizada. Neste salto, diz Marcuse articulando o conceito de ideologia, o movimento certamente encontra resistência de vários lados, não só da força contrarrevolucionária, mas também na base conservadora do povo. Isso ocorre pois, por vezes, a revolta dos setores de consciência mais avançados é impopular, e só conseguem obter o desprezo da massa popular. É evidente a possibilidade de que a grande maioria das pessoas de senso-comum e dos trabalhadores rejeitem este ódio, esta radicalidade, esta negação de valores e inversão dos padrões da vida tradicional, pois os “rebeldes se permitiram fazer aquilo que as pessoas têm de abandonar e reprimir”. No entanto, Marcuse opera com “tendências”, que podem ou não se confirmar no decurso concreto de seu desenvolvimento. O próprio movimento quando se educa pode abrir novas possibilidades de educar para além de si em direção a consciência política para ação radical, servindo então de catalizador das lutas populares como um todo quanto mais consegue ampliar-se em direção aos setores do povo – “a rebelião dos instintos ter-se-á convertido numa força política somente quando for acompanhada e guiada pela rebelião da razão”.

Se pensarmos no imbricamento entre ideologia e educação, na esteira de Marcuse, quem tem a condição real de “educar” as massas, e o faz continuamente, é a sociedade administrada, a grande mídia hegemônica, a linguagem oficial do Establishment, a cultura de mercado e o ascetismo empreendedor que é característico do espírito do capitalismo. É justamente por isso que, não só na França, mas também na Alemanha, onde não havia ainda uma integração social aguda, uma sociedade afluente tão intensa como ocorria nos EUA, o papel da liderança intelectual juvenil terá destacado valor político. Ao retomar a definição de Ernst Bloch, de que o “intelectual é alguém que se recusa a fazer compromisso com os dominantes”, Marcuse dá ênfase à juventude intelectual radical que está em luta ao mesmo tempo dentro e fora das universidades, pela democratização interna e externa ao campus, contra a tecnocratização do saber e a arcaica educação tradicional: este é, para ele, o setor mais avançado e capaz de articular uma crítica política à cultura hegemônica, à sociedade de classes e ao sistema de valores e funções como um todo, podendo servir, quando bem politizada e sucedida, de impulso catalizador das lutas populares pela libertação. Marcuse fala de “uma educação para mudança radical”, tarefa dos intelectuais e estudantes comprometidos em dar um novo sentido à prática pedagógica: “uma educação que não permanece na sala de aula, não fica dentro dos muros da universidade, mas que espontaneamente se expande em ações, em prática coletiva”13. Uma educação, tampouco, que atua somente fora da universidade visando destruí-la, o que seria um grande equívoco político e estratégico, já que dentro das instituições existentes precisa-se avançar pela construção de uma verdadeira formação cultural crítica (Bildung) contra o treinamento profissionalizante e alienante, que conduz à aceitação cega dos imperativos do mercado.

Numa curiosa aproximação com a concepção gramsciana (claro que não se pode pôr o sinal de igual), tanto o dirigente juvenil como o intelectual, para Marcuse, devem possuir aqueles atributos do “intelectual orgânico” do povo, conseguindo articular a resistência e a revolta dentro da universidade mas, sobretudo, reconhecendo as limitações da sua própria atuação, buscando apoio das massas populares, carregando e politizando o movimento estudantil de dentro para fora, para os guetos, movimentos de bairro, para a rua, tendo como critério a luta contra o Establishment.

Se com a reflexão de Marcuse podemos avançar na disputa por outra universidade comprometida com a emancipação, o pensamento de Gramsci, sem dúvida, adquire relevância e merece maior aprofundamento por conceber que a educação escolar é uma esfera estratégica para a construção da hegemonia dos de baixo. Isso porque, dentro da ordem capitalista, a escola precisa operar de modo a integrar as crianças e jovens ao universo prático, normativo e simbólico da vida social sob a lógica do capital. Nesse sentido, a escola se estabelece como um espaço de luta simbólica, de um lado, entre a cultura científica e secularizada representada, de modo geral, pelo patrimônio de saberes acumulados historicamente e transpostos à escola na forma dos conteúdos do ensino e, por outro lado, a cultura do senso comum popular, que combina, em uma totalidade incoerente, os saberes avançados nascidos, sobretudo, da experiência prática sistematizada e internalizada, com elementos de uma concepção de mundo de natureza mágico-religiosa, tradicionalista e/ou pragmático-imediatista.

Desenvolvendo sua elaboração no contexto em que se processa a reforma educativa na Itália de seu tempo, Gramsci dirige sua atenção para o modo como as exigências impostas pela modernização capitalista da sociedade italiana fazem com que a escola elitista e tradicional, com sua pedagogia “humanista”, “desinteressada”, mas fortemente dogmática e autoritária, seja confrontada a partir de duas perspectivas “modernizantes” distintas: de um lado, pela pedagogia do espontaneísmo naturalista e, por outro lado, pela pedagogia utilitarista do ensino profissional. Gramsci acompanha a crítica ao caráter autoritário, dogmático e apassivador da escola tradicional, sem, entretanto, aderir ao espontaneísmo da pedagogia liberal. Da mesma maneira, reconhece a obsolescência do ensino meramente “desinteressado”, praticamente ornamental e vivo apenas enquanto formação de elites. Por outro lado, denuncia o elitismo presente também na concepção dualista que busca direcionar a juventude popular para a escola meramente profissional, baseada numa perspectiva pedagógica extremamente diretiva e utilitarista, que reduz a formação humana ao plano do imediato, condenando o futuro das classes trabalhadoras à reprodução mecânica de seu passado e presente submetido e alienado.

Para Gramsci, a dissociação entre teoria e prática é o centro da debilidade educativa da escola burguesa, em todas as suas vertentes, quando questionada do ponto de vista do projeto hegemônico das classes populares. A escola tradicional, enquanto escola de elites, representa um mundo social em desagregação. Nos marcos da ordem capitalista, o conhecimento “em si” – e não “para algo” –, como enciclopedismo diletante, perde crescentemente seu valor prático e sua funcionalidade como objetivo da educação. No entanto, com relação à sua dinâmica de ensino, voltada à apropriação de noções concretas explicativas do mundo natural e histórico-social, cada vez mais abrangentes, essa escola estaria fundada – ainda que de modo inconsistente – no princípio pedagógico do trabalho como mediador entre o ser humano, a cultura e a ciência. Os ataques dirigidos pela pedagogia espontaneísta e naturalista à escola tradicional, recusando o ensino das noções concretas e substituindo-as pela “pura educatividade” do “aprender a aprender”, considerando a diretividade do processo pedagógico como absolutamente nociva e apostando em uma crença no autodesenvolvimento espontâneo da personalidade individual do educando, tomado abstratamente e desconectado da história e de seu meio social, representam muitos passos para trás, ao invés de qualquer avanço.

Neste sentido, ainda com Gramsci, a incapacidade da pedagogia espontaneísta em perceber o desenvolvimento da humanidade, em cada ser humano concreto, como um processo social fundado na história, a leva a recusar o papel da educação escolar como meio de promover essa humanidade sócio-histórica nos educandos, juntamente com eles, através dos conteúdos do ensino e da mediação do educador e da coletividade escolar. Isso implica que a educação espontaneísta que objetiva desenvolver o puro “aprender a aprender” nos jovens, privando-os do ensino de noções concretas para a partir das quais possam fazer uma reflexão crítica sobre sua realidade, não faz mais do que reproduzir as profundas desigualdades culturais (e políticas) de classe, porque enquanto a infância e a juventude das classes superiores estão espontaneamente imersas em uma cultura letrada e erudita, própria ao seu meio social extraescolar, os filhos das classes populares não podem contar, em seu meio, com a mesma riqueza de noções sistemáticas para a compreensão e apreciação de seu mundo. Sendo o conhecimento uma forma de poder, o resultado prático dessa pedagogia espontaneísta é neutralizar a capacidade da escola de democratizar o acesso das crianças e jovens das classes subalternas a esse importantíssimo recurso de poder.

Por este modo, a pedagogia espontaneísta e naturalista, originalmente uma corrente de pensamento ligada ao individualismo pequeno-burguês, encontrou eco ao longo do século XX (e ainda encontra hoje) em algumas correntes políticas que afirmam sua vinculação ao socialismo. Essa “ultraesquerda” do pensamento pedagógico cede à tentação simplista de clamar pela imediata destruição da escola burguesa, em todos os seus elementos, e pela supressão de todos os vestígios da cultura burguesa, afirmando sobre seus escombros, de uma vez por todas, uma “cultura proletária” nova, imaculada, sem nenhuma vinculação com o passado e produzida a partir da mente genial de seus proponentes. Gramsci, assim como Lênin e Marcuse, combateu duramente esse fetiche teórico. Para ele o comunismo é o resultado do desenvolvimento de toda a história da humanidade. A cultura comunista não é o oposto absoluto da cultura burguesa: cultivada como uma flor de estufa, fora da história. Mas é sim a superação crítica e dialética da cultura burguesa. Dessa maneira, o desenvolvimento entre as massas do povo de uma cultura verdadeiramente comunista depende, dentre muitos outros fatores econômico-sociais, de que sejam capazes de uma apropriação crítica da cultura burguesa, não de sua recusa ou “abolição”.

O educador, a autonomia e a prática radical

Se retomarmos o início do trabalho, balizando-nos pela noção de esclarecimento e emancipação como o projeto irrealizado da modernidade, vemos que a concepção de Marcuse pode ser coadunada em pontos importantes à tese Gramsciana sobre o valor da educação como um todo. A emancipação concreta nascida da teoria marxista, para ambos os autores, só pode ser pensada pressupondo a superação desta sociedade e desta ordem de dominação. Gramsci dirá que a emancipação do indivíduo se dá somente a partir da emancipação coletiva, de sua classe, na qual o indivíduo se realiza e emancipa a si mesmo neste decurso; Marcuse, por sua vez, ainda que não negue este imperativo, coloca a ênfase no sujeito e nos setores radicais não integrados. Se é assim, uma possível síntese deste caminho que projete na realidade educativa a correta compreensão dos nossos desafios só pode vir à tona pela convicção de que a escola e a universidade são espaços de contradição nos quais é necessário fazer a disputa por outro tipo de sociedade e por outro tipo de indivíduo. Isso nos impõe que consigamos exercer uma prática pedagógica diferenciada, comprometida com a emancipação, onde forma e conteúdo formem uma síntese dialética: uma pedagogia da emancipação total por meio da educação política radical!

No que diz respeito ao legado de Gramsci, nos marcos da escola burguesa, os educadores socialistas devem travar uma verdadeira “guerra de posições”. Disputando “trincheira a trincheira” o sentido da prática educativa que nela se desenvolve. Devem ser o elemento consciente capaz de fomentar nos estudantes – e no conjunto do coletivo escolar – os meios para a autoconsciência de sua condição, limites e possibilidades. Vinculados ativamente à luta de classes que se desenvolve na totalidade social abrangente, os educadores socialistas devem mediar a tradução do “verdadeiro”, do conhecimento sistemático, para o “certo”, do pensamento popular. Com uma intencionalidade explícita, devem chamar os estudantes à organização, à mobilização, à crítica prática e teórica, como método pedagógico. Devem ajudar a evidenciar, pela ação comum, os limites impostos pela institucionalidade de uma ordem social de classe, presentes – e muito – na própria escola. Devem contribuir para que a comunidade escolar assuma o controle político e pedagógico da escola, em um sentido público e democrático, fomentando que se queira e que se faça o mesmo com o país.

Reunir e organizar os profissionais da educação em torno de uma nova concepção político-pedagógica, organicamente articulada com o projeto hegemônico da classe oprimida, deve ser também, segundo Gramsci, o objetivo permanente do partido político socialista. Como instância de articulação e organização coletiva dos contingentes militantes envolvidos na construção da nova hegemonia, o partido deve buscar reunir os educadores escolares, profundamente estratégicos em função de seu número e de sua inserção institucional; e estes podem encontrar no partido, o centro de irradiação de uma nova concepção de mundo e de educação, no interior da qual o significado histórico e social concreto de sua atividade, então vinculada ao movimento total de auto-emancipação das classes subalternas, suba à superfície de sua consciência e anime sua vontade, rompendo com a rotina burocrática alienada e alienante que absorve a vida escolar e o trabalho docente, nos marcos da ordem burguesa.

Assim, a escola precisa ser capaz de lutar para promover a formação de personalidades críticas, autônomas e democráticas, e isso apenas pode se realizar através do próprio exercício da crítica, da autonomia e da democracia. Precisa lutar porque é disso que se trata, a escola deve ser consciente da luta cultural que trava contra os elementos de tradicionalismo, de superstição e de particularismo imediatista presentes no senso comum popular. Na era das comunicações de massa (sob rígido controle político e ideológico burguês) e do reencantamento religioso do mundo, carregado de obscurantismo, a luta cultural da escola deve ser cada vez mais consciente, para que ela esteja à altura do desafio posto. Dessa maneira, a promoção do exercício da crítica ao senso comum, revelando a origem de seus condicionamentos e estimulando a busca por um nível mais elevado de coerência entre teoria e prática, é o caminho no qual a atividade pedagógica escolar numa perspectiva emancipadora deve orientar a personalidade que avança no sentido da autonomia intelectual e ético-política. A educação democrática para a democracia deve se expressar em uma escola que reflete de modo abrangente a dinâmica de sua vinculação ao drama histórico real da luta pela autoemancipação popular, contra a tirania exclusivista da dominação burguesa.

A tradição liberal sempre postulou seus conceitos sobre uma base abstrata e idealizada. Também na educação, o ideal de construção da autonomia é desligado da vida real e hipostasiado no espírito reflexivo. Mesmo assim podemos partir da crítica a este conceito para resgatar o núcleo radical da ideia de autonomia. A partir do legado de Marcuse podemos tomar como imperativo a necessidade de uma nova personalidade: o estudante crítico, autônomo, sensível e comprometido com a tarefa da emancipação. Marcuse acentua que se a situação de miséria, dor e desumanidade dos povos pode ser até pensada sem que isso engendre necessariamente o impulso à ação radical pela mudança, tanto por causa do véu ideológico como pelas benesses que o sistema oferta e se alimenta, então o cogito não pode ser o único foco da educação. Assim se origina a ideia fundamental de uma educação estética, que dispõe o processo educativo em dois sentidos principais: a emancipação da consciência e da sensibilidade.

A consciência não está apartada do corpo, do olhar, do ouvir, do sentir: ela própria concebe a si mesma através da mediação da sensibilidade, daquilo que desprezamos e amamos, desejamos e odiamos, do que gratifica e repulsa. Isso indica que só é possível uma educação emancipadora na medida em que ela se dirija também à sensibilidade, e só é possível uma educação estética na medida em que ela se converta numa educação política, que possa disputar os valores que se materializaram na sensibilidade e se tornaram uma segunda natureza. Neste palco de disputa e de conflito que é a segunda natureza, somente politizando o corpo e a sensibilidade podemos romper com a administração pulsional que não permite a libertação da consciência, e somente disputando diariamente a consciência pela crítica e pela solidariedade, pela reflexão e pela vivência de outras formas de relação, ela pode enxergar-se e libertar-se a si mesma.

Se, de um lado, o trabalho árduo da reflexão crítica possibilita que com que se revele uma realidade opressiva caricaturada como gratificação e satisfação, por outro, a chance de intervir, entrar, invadir o espaço padronizado de comportamentos e valores sedimentado quase instintivamente se dá pela libertação da imaginação, aquela faculdade mediadora da razão e da sensibilidade. Isso significa, para Marcuse, dar voz à potência criadora da fantasia como aquela que é capaz de plantar raízes de uma nova sensibilidade, não-repressiva, avessa a qualquer autoritarismo e barbárie, construída e experienciada então pela prática coletiva na tentativa da construção de novas relações humanas já nesta sociedade. Contudo, Marcuse insiste na ideia de que não há libertação satisfatória dentro dos marcos do capitalismo. Estamos fadados à uma consciência infeliz14: sentimos e sabemos das possibilidades reprimidas, das promessas traídas, da felicidade geral não realizada, da falsa liberdade do todo. Apesar disso, ou justamente por isso, nossos esforços têm de ser realizados numa direção clara de superação desta sociedade a partir da práxis, da organização revolucionária e da educação revolucionária.

É importante dizer, ainda, que não se pode de modo algum entender a ideia de uma educação estética como um pressuposto para o irracionalismo. Não se trata de negar a razão como a faculdade essencial de compreensão da realidade, mas de reconhecer que a razão não é uma categoria pura, mas histórica, cravada no tempo, no espaço, no corpo, que de maneira alguma paira incólume aos valores hegemônicos que foram enraizados nas dimensões pulsionais: se trata, para Marcuse, de estabelecer e pujar um novo conceito de Razão ligado à Eros – uma razão sensível que guie a construção de uma nova sensibilidade. Na esteira do que seu colega Adorno escreveu em Educação após Auschwitz (1965) – mantendo aqui em suspenso as divergências políticas de ambos sobre a relação entre teoria e prática15 –, Marcuse vislumbra um tipo de educar que não reverencia o sofrimento e não se honra pela severidade, mas se fundamenta politicamente no princípio da não-indiferença ao outro, da solidariedade. As aulas do dia-a-dia devem ser pensadas como expressão já agora desta outra forma da realidade: uma prática democrática, não-autoritária e não-indiferente, que possa ser signo de exemplo daquilo que se deve construir. Uma utopia, tanto no sentido de ser um não-lugar-comum, mas, sobretudo, como adiantamento do futuro.

Apontamentos sobre a realidade brasileira

No que se refere especificamente à questão educacional na sociedade brasileira, o desafio elementar de garantir o acesso universal à educação básica, ainda está distante de ser superado. Em um estado como o Rio de Janeiro, cerca de 30% dos jovens estão fora da escola (e fora do mercado de trabalho). Estamos em pleno século XXI, dando combate por uma demanda típica do final do século XIX e início do século XX. No contexto histórico de um capitalismo dependente e periférico, como o brasileiro, no qual a superexploração do trabalho, como princípio estrutural de acumulação, exige uma firme limitação do precário espaço democrático às maiorias populares, a escolarização em massa nunca foi um compromisso efetivo da classe dominante. Além do mais, essa inserção dependente e periférica do país na divisão internacional do trabalho também leva a que sejam abandonadas as tarefas educativas ligadas à promoção de uma elevada capacidade intelectual inventiva entre os jovens, inerentes que são às necessidades científicas e tecnológicas de um padrão autônomo de desenvolvimento econômico e social, reservado, no entanto, aos países centrais na ordem capitalista internacional.

No momento atual, quando, sob os impactos da longa crise econômica internacional do capitalismo, a burguesia impõe um duro ajuste espoliativo ao país – dilapidando nossos recursos naturais e setores econômicos estratégicos, saqueando nosso fundo público e desmantelando os direitos trabalhistas e sociais do povo – a precarização da educação pública, em todos os níveis, a conduz à beira do colapso e do desmonte. O sucateamento da estrutura física das escolas e universidades; a profunda desvalorização das condições salariais, de carreira e de trabalho dos profissionais da educação (além da desvalorização simbólica); bem como o abandono dos estudantes à sua própria sorte; parecem configurar uma nova etapa, fortemente regressiva, da relação da burguesia que nos governa com a pauta da educação das maiorias. Tudo indica a adoção, pelos de cima, de uma perspectiva ainda mais exclusivista e imediatista na condução dos destinos do país, destituída de qualquer projeto nacional digno desse nome, o que, por consequência, aponta para a marginalização do tema da educação pública em sua agenda. A privatização e mesmo a militarização das escolas públicas, que surgem no horizonte das políticas educacionais no país, refletem a dramaticidade do quadro.

Nesse contexto, aqueles que são permanentemente esquecidos, negligenciados e ignorados no debate educacional erguem sua voz e sua ação, exigindo participar diretamente das decisões que afetam seu presente e futuro, tomando nas próprias mãos suas escolas, suas universidades e seu destino. Ao lado das muitas lutas sociais e greves (com forte ativismo dos profissionais do ensino) que se espalham pelo país desde 2013, os estudantes – em especial os secundaristas – a partir do ano passado, se lançaram a uma ofensiva de mobilização em defesa da educação pública, através do método e da política de ocupação das escolas. Várias centenas de escolas, em diferentes estados do país, foram ou seguem ocupadas pelos estudantes, que não apenas se valem da inciativa para exercer pressão em favor de suas reivindicações, como também para organizar e gerir, autônoma e subversivamente, o espaço da escola, mesmo enfrentando a truculenta repressão das forças policiais e paraestatais a serviço do status quo.

As lutas se desenvolvem também nas universidades públicas: não apenas gravemente sucateadas e cada vez mais subsumidas no oceano do ensino superior privado, como também dirigidas por uma lógica burocrática, mesquinha e privatista que as distanciam do papel estratégico que teriam a cumprir, diante das urgentes necessidades do país. Mantidas afastadas da integração viva na elaboração de soluções para os grandes dilemas nacionais, em todas as áreas, nossas universidades públicas se rebelam. Através da luta de seus profissionais e estudantes, elas tentam resistir aos duros ataques que sofrem, ao mesmo tempo que esboçam caminhos para uma articulação dinâmica com as lutas das classes subalternas e com as inciativas de auto-organização popular. Por essa mesma via, se estabelecem pontes entre a vanguarda das universidades públicas rebeladas e movimentos de educação popular extraescolar, capazes não apenas de operar como iniciativas de auto-organização voltadas para uma educação colaborativa de base, como também enquanto pivôs de mobilização para a luta pelo direito a um ensino público, gratuito e de qualidade para todos. Como exemplo destacado de uma iniciativa dessa natureza é possível apontar a Rede Emancipa – movimento social de educação popular, que se expande pelo território nacional, estabelecendo fecundas parcerias com os setores mais avançado da universidade pública no país.

Nesse cenário de intensa mobilização, a educação pública entra pela porta da frente no debate público nacional. As greves de professores e técnicos educacionais, assim como as lutas estudantis, sobretudo as ocupações de escolas promovidas pelos secundaristas, demonstram que a educação pública está viva, na luta e pela luta. Em muitas ocasiões, as escolas públicas ocupadas se transformaram em polos de articulação das comunidades locais, como na extrema periferia de São Paulo, agregando aos profissionais e estudantes em luta, seus familiares e vizinhos. Mobilizadas e assumindo o protagonismo político na defesa da educação pública como projeto, as escolas e universidades – consideradas como coletividades capazes de tomar posição – exigem o fim do silenciamento e da marginalização a elas impostas pelos representantes políticos, midiáticos e intelectuais da classe dominante, no que se refere à formulação de políticas educacionais. Educadores e estudantes precisam estar na primeira fila dos que elaboram as soluções educacionais para o povo brasileiro, não aceitam mais a condição de objeto passivo das decisões impostas de cima, pelos de sempre.

A luta e a mobilização da educação pública deve prosseguir diante dos ataques anunciados pelo governo ilegítimo, corrupto e antipopular de Michel Temer, cuja missão histórica é das mais indignas: combinar o abafamento das investigações da Polícia Federal contra a corrupção sistêmica da política burguesa no país, com a aplicação dura de um ajuste ultracapitalista contra os trabalhadores. Setores ultrarreacionários que dão sustentação a esse governo, pelo menos enquanto ele ainda consegue unificar razoavelmente a classe capitalista em torno de si, não apenas celebram as medidas anunciadas que buscam atacar os direitos trabalhistas, previdenciários e sociais do povo, e aprofundar a asfixia financeira do setor público, como propõem submeter as escolas a um censura política conservadora, religiosa e anticientífica, incluindo a criminalização dos docentes que “assediarem ideologicamente” seus alunos.

Como as margens das liberdades democráticas são cada vez mais comprimidas pelas necessidades de estabilização de um regime político burguês impermeável às demandas dos de baixo – um fenômeno internacional – o espaço democrático próprio à escola e à universidade pública, principalmente em um contexto de radicalização das mobilizações, incomoda profundamente o Establishment e os donos do poder. A rebeldia crescente das escolas e universidades públicas é vista como séria ameaça por aqueles que se valem da mídia empresarial monopolista e do fundamentalismo religioso como agências decisivas de educação do povo contra seus próprios interesses históricos. Professores, técnicos educacionais e estudantes precisam estar em condições de constituir uma articulação orgânica a nível nacional, assumindo a vanguarda da luta pela defesa, expansão e fortalecimento da educação pública, trazendo outros setores populares junto de si.

Não é mais suficiente a resistência dispersa e pulverizada, ainda que sejam o nosso ponto de partida concreto. Diante da grave crise econômica, social e, sobretudo, política na qual está mergulhado o país, nossas organizações sindicais, estudantis, acadêmicas e científicas precisam ir além na luta pela educação pública contra o privatismo e o obscurantismo. É necessária uma construção coletiva capaz de disputar o debate na sociedade e apresentar uma concepção e um plano próprio para a educação brasileira. É preciso que a esquerda socialista possa se empenhar na construção de uma ampla coalizão nacional em defesa da educação pública. Um instrumento de defesa mas também de ataque, capaz de ser portador de uma nova perspectiva para a formulação da política educacional, em sentido amplo. Uma perspectiva articulada ao projeto radical e contrahegemônico das classes populares, das mulheres, da população negra, do movimento LGBT, da juventude que ocupa escolas e de todos os oprimidos, na crítica e superação de um modelo social de educação voltado para a reprodução dos privilégios de uma ínfima minoria.

Fica evidente a necessidade de garantir uma maior consistência programática às demandas, mais ou menos imediatas e fragmentadas, que emergem do ascenso atual da mobilização de educadores e estudantes. Nesse sentido, parece muito importante resgatar os acúmulos e as sínteses produzidas pela luta do movimento educacional brasileiro ao longo de sua história. Em primeiro lugar, a defesa da constituição de um verdadeiro sistema nacional de educação; efetivamente integrado, democraticamente gerido e adequadamente financiado, contra a asfixia orçamentária e a desorganização imposta por um ultrafederalismo administrativo combinado a uma extrema centralização dos recursos. Em segundo lugar, a exigência da destinação de recursos públicos exclusivamente para a educação pública e num montante coerente com o nível de importância que possui, de modo a garantir, em curto prazo, a universalização do acesso à pré-escola e à educação básica para as crianças e jovens do país. Fazer a defesa do caráter público, obrigatório, gratuito, laico, democrático e emancipatório da educação nacional. Exigir a universalização do horário integral de ensino na educação básica. Defender a valorização do profissional da educação, assegurando-lhe condições próprias a uma carreira de Estado. Erguer a bandeira da gestão democrática e participativa das escolas pela comunidade escolar. Lutar pela autonomia universitária, com plenas garantias orçamentárias e de toda ordem, para o alargamento do acesso popular e o desenvolvimento efetivo da integração entre ensino, pesquisa e extensão como missão articulada ao desenvolvimento nacional.

Uma educação pública, laica e emancipatória precisa ser capaz de enfrentar o desafio de operar como fator decisivo de descolonização de nosso arcabouço sociocultural, combatendo o racismo profundo e institucionalizado da sociedade brasileira como o que ele é: um poderoso fator de atraso no processo de nossa integração como sociedade nacional e um fundamento estrutural do caráter antidemocrático de nossa sociabilidade. Da mesma maneira, é preciso que a educação incorpore como tarefa a discussão da temática de gênero, recusando a condição de refém e reprodutora de uma bárbara e irracional ordem patriarcal e LGBTfóbica, responsável por um panorama de violência extrema contra mulheres e contra a comunidade LGBT, que coloca o Brasil nos primeiros lugares mundiais em registros dessa violência inaceitável.

Parece incontestável a necessidade de manter vivo esse debate educacional como debate político da esquerda socialista, especialmente em uma conjuntura na qual o aprofundamento da crise do regime político burguês vai tornando visível, no horizonte, a necessidade de um novo processo constituinte. Precisamos estar bem preparados para enfrentar esse debate que certamente será muito duro, tanto do ponto de vista prático como teórico. As elaborações do pensamento educacional socialista, como as de Gramsci, e as reflexões sobre uma educação emancipadora, como a de Marcuse, podem servir como eixo no âmbito da luta pela educação pública, para a afirmação de uma concepção popular e democrática de educação, capaz de apontar saídas a partir da correlação de forças postas em cada conjuntura. Por fim, é preciso afirmar a importância central de uma educação pública, obrigatória, gratuita, universal, laica, democrática e emancipatória para o aprofundamento, entre nós, de uma vigorosa democracia popular, capaz de assegurar a todo o povo brasileiro as condições existenciais próprias às potencialidades do século XXI. Da mesma forma, no entanto, é imprescindível que possamos estar engajados na construção revolucionária de uma nova ordem política, social e econômica, liberta da tutela dos interesses restritos de uma classe dominante arcaica, antinacional e antipopular, para que possamos garantir que a educação pública adquira, entre nós, a centralidade que hoje não possui e não pode possuir.

Referências Bibliográficas:

GRAMSCI, Antonio. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Cadernos do cárcere 3, páginas 11-116, 2000.

____________. Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Cadernos do cárcere II, 2000.

LOUREIRO, Isabel. Herbert Marcuse – a relação entre teoria e prática. In: LOUREIRO, Isabel; MUSSE, Ricardo (org.), Capítulos do Marxismo Ocidental. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

MARCUSE, Herbert. An Essay on Liberation, Boston: Bacon Press, 1969.

___________. Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de janeiro: Zahar, 1968 [1955].

___________. Herbert Marcuse: a grande recusa hoje. Petrópolis: Vozes, 1999, organização de Isabel Loureiro.

___________. O homem unidimensional. (A Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1967 [1964])

___________. Um ensaio sobre a libertação. Amadora, Portugal: Livraria Bertrand, 1977 [1969].


1 Infelizmente, Gramsci faleceu em 1937, algum tempo após ser libertado da prisão. A correspondência temporal entre os autores se dá, portanto, apenas na juventude. Marcuse terá a oportunidade de desenvolver sua teoria observando o avanço do capitalismo até o ano da sua morte, em 1979. A tentativa de aproximação que aqui se pretende não pode servir para esconder as diferenças de formulação e de horizonte estratégico entre estes autores, pelo contrário. Queremos combinar e articular conceitos que possam, mesmo em oposição, orientar a prática em educação.
2 Cf. Marcuse, p. 40, 41, 42, 1973 [1964].
3 Cf. Marcuse, p. 80, 81, 82, 1973 [1964].
4 Idem, p. 82, 85, 86.
5 Cf., idem, p. 83.
6 Em 1964 Marcuse dá ênfase as tendências de estabilização e integração, minimizando as tendências de crise e oposição. Se trata de um acento histórico. Mais tarde, ainda na mesma década, a perspectiva da nova oposição radical mudará este quadro.
7 Trecho da palestra Perspectivas do socialismo na sociedade industrial avançada, de 1964, disponível no livro A grande recusa hoje, organizado por Isabel Loureiro, 1999.
8 Idem.
9 Ver introdução de One-dimensional man, e a obra An essay on liberation, p. 56, 1969.
10 Marcuse, p. 79, An essay on liberation, 1969.
11 Aqui é importante fazer uma ressalva histórica: diferente da época de Gramsci, o fato é que a década de 60 é marcada não só pela crise da esquerda tradicional e dos métodos ortodoxos de fazer política, como também pela articulação de uma Nova Esquerda que surge e desencadeia um novo tipo de espontaneidade organizada, ao mesmo tempo em que atropela as velhas estruturas burocráticas de partidos e sindicatos. O maio francês é emblemático neste sentido, pois levou mais de dez milhões de trabalhadores às ruas a partir de reivindicações que começaram dentro da universidade, e que sofreram a resistência não só do governo, mas, sobretudo, do PC francês e seus braços sindicais engessados, que só no último momento decidiram somar forças aos estudantes em marcha, buscando orientar e dirigir o movimento. Essa ponderação explica, mas só em parte, a ênfase de Marcuse na universidade, que pode ser estendida à educação da juventude nas escolas em geral, e o papel marginal dado à educação das massas.
12 Em Eros e Civilização Marcuse crítica uma designação de estética usualmente conhecida como “enfeite”, “decoração”. Bem diferente, para ele, a dimensão estética é intimamente ligada a sensibilidade, pois existe “uma associação intima entre prazer, sensualidade, beleza, verdade, arte e liberdade – uma associação revelada na história filosófica do termo estético” (p. 133, 1955). Neste sentido, pode-se dizer que a dimensão estética para Marcuse possui uma “afinidade essencial com a liberdade na sua expressão política”; ela é a “ciência da sensibilidade”.
13 Entrevista com Marcuse, A revolução de 1969, p. 71, 1999.
14 Este conceito é uma das figuras mais famosas da fenomenologia do espírito de Hegel, e é um momento resultante do desenvolvimento da experiência da consciência quando esta atinge o plano da consciência-de-si. De modo genérico – ainda que sobre Hegel não seja indicado abreviações – a figura da consciência infeliz pode ser entendida como uma consciência duplicada ou cindida para si mesma, um momento de oposição interiorizado no seio da própria consciência-de-si. Para Marcuse, ela revela um tipo de sujeito raro nas sociedades unidimensionais, que “conserva a consciência infeliz do mundo dividido, as possibilidades derrotadas, as esperanças não concretizadas e as promessas traídas”. A “consciência feliz” seria, ao contrário, a figura da consciência constituída e alicerçada a partir da “dessublimação repressiva”.
15 Sobre as divergências de Marcuse e Adorno vale observar o diálogo por cartas em 1969, pouco antes deste último falecer, nos quais aparece claramente a posição a respeito do movimento estudantil, e da relação teoria e prática. Na ocasião, Adorno havia chamado a polícia para os estudantes que tentavam ocupar o Instituto contra a morte de um colega. Marcuse repudia veementemente esta postura, que Adorno volta a defender, rotulando o movimento de “fascismo de esquerda”, ao que Marcuse reitera sua crítica ao colega, dizendo que “a ocupação de prédios e interrupção de aulas são atos legítimos de protesto político”, que “há situações em que a teoria é impulsionada pela prática, nos quais a teoria que se mantem afastada da prática é ela mesma falsa”, e que “eu desesperaria de mim (de nós) se eu (nós) aparecesse do lado de um mundo que apoia ou se cala sobre o genocídio no Vietnã”. Estas cartas estão publicadas na obra já citada, A grande recusa hoje, 1999.


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