A “lei da mordaça” e os retrocessos na legislação eleitoral brasileira

O retrocesso da “lei da mordaça” de Cunha sancionada por Dilma. Um debate à luz dos temas clássicos sobre a relação entre política revolucionária e democracia burguesa.

Samara Castro 26 jul 2016, 16:03

“De repente deixou de ser sagrado, de repente deixou de ser direito, de repente deixou de ser, o voto. Deixou de ser completamente tudo. Deixou de ser encontro e ser caminho, deixou de ser caminho, deixou de ser dever e de ser cívico, deixou de ser apaixonado e belo e deixou de ser arma – de ser arma, porque o voto deixou de ser o povo”1 (Thiago Mello).

O objetivo desse breve artigo é debater acerca do papel dos socialistas nas eleições burguesas bem como demonstrar os últimos ataques a pouca democracia ainda existente no processo eleitoral brasileiro. A “governabilidade” não é princípio constitucional, enquanto a necessária participação das minorias do debate público e nas instituições políticas o é. O número de partidos não caracteriza a democracia, o direito de oposição o faz. Isso deve ser considerado na divisão do fundo partidário, no acesso ao rádio e na televisão e na avaliação de uma cláusula de desempenho (SALGADO, 2010). Desse modo, será discutido o impacto da “Lei da Mordaça” nas eleições municipais de 2016, como forma de impedir o surgimento de um novo ator político.

O papel dos socialistas nas eleições

A democracia burguesa existente no Brasil, mesmo com todo seu descrédito decorrente da corrupção, das promessas de eleição nunca cumpridas e de todos os escândalos envolvendo dinheiro público, terá o seu processo eleitoral garantido e os trabalhadores irão comparecer às urnas. De fato, isso não se dará de forma imediata como um ato de crença no sistema político, mas sim como uma obrigação a ser cumprida mediante a falta de outra alternativa de organização política e social.

Desse modo, é tarefa importante para as organizações socialistas e revolucionárias intervir no debate eleitoral. A participação nas eleições parlamentares e na luta através da tribuna parlamentar são obrigatórias para o partido socialista, precisamente para educar os setores da classe trabalhadora e principalmente para ser vocalização das demandas populares. Entendendo todos os limites do parlamento, enquanto não existe força suficiente para sua dissolução, mister se faz atuar no seio dessas instituições. Precisamente porque é por meio destes que as ideias socialistas alcançam setores não atingidos de outra forma.

Vale ressaltar que em 1917 os bolcheviques participaram das eleições ao parlamento burguês da Rússia, à Assembleia Constituinte, em setembro-novembro de 1917. Àquele momento, Lênin em sua obra Esquerdismo, doença infantil do comunismo chega à conclusão de que estava provada a necessidade de participação num parlamento democrático-burguês. Isso porque longe de prejudicar o proletariado revolucionário, permitir-lhe-ia demonstrar com maior facilidade à classe trabalhadora a razão por que semelhantes parlamentos deveriam ser dissolvidos, facilita o êxito de sua dissolução.

A atuação dos bolcheviques mesmo nos parlamentos mais contrarrevolucionários demonstrou que semelhante participação foi não só útil como necessária para o partido do proletariado revolucionário, precisamente depois da primeira revolução burguesa na Rússia (1905), a fim de preparar a segunda revolução burguesa (fevereiro de 1917) e, logo em seguida, a, revolução socialista (outubro de 1917).

A experiência russa mostrou as dificuldades de contar apenas com o estado de espirito revolucionário para criar uma tática revolucionária que se transforme em ação. A tática deve ser elaborada levando-se em consideração serenamente, com estrita objetividade, todas as forças de classe do Estado em questão (e dos Estados que o rodeiam, assim como de todos os Estados em escala mundial) e também a experiência dos movimentos revolucionários 2.

De fato, condenar a participação nos parlamentos é extremamente fácil e não se apresenta como solução de problemas complexos e difíceis como a luta de classes. Os partidos de esquerda precisam se postular como alternativas no terreno da ação direta, em greves, marchas e eleições, ser parte ativa de todas as lutas, divulgando, prestando solidariedade. Esse é um palco privilegiado da construção de uma alternativa e da construção do partido. O partido necessita se postular como alternativa política. Isso significa se apresentar nas disputas eleitorais com determinação, disputando a influência de massas. Mais do que isso, o partido precisa se apresentar como impulsionador da luta direta, apoiador, incentivador, organizador. Deve fazer isso sempre movido por uma estratégia de luta contra o poder burguês e em defesa de um novo modelo político e econômico alternativo para o país. A defesa desse novo modelo significa ter propostas claras em defesa de medidas democráticas e contra a corrupção; e medidas econômicas e sociais que façam com que não sejam os trabalhadores os que paguem a conta da crise econômica que se abate sobre o país.

Como Marx, Engels e Lênin definiam, a tarefa estratégica dos revolucionários não é a mudança do Estado, mas sua destruição. Nesse sentido, para mudar o Estado a utilização da cédula eleitoral pode ser suficiente, mas para sua destruição não. Uma vez que o Estado é expressão da sociedade na qual a burguesia é a classe dominante, de tal forma que a derrota desse Estado é necessária para derrotar a dominação de classe.

Entretanto, vale destacar que a experiência da América Latina demonstrou que se pode ganhar eleições e promover profundas mudanças de natureza progressista no Estado. Em geral, não chegaram a destruir o Estado burguês e construir um Estado democrático de novo tipo. Mas mudaram questões fundamentais e, pelo menos nas experiências concretas de Venezuela, Equador e Bolívia, conquistaram regimes políticos qualitativamente mais avançados. Obviamente as mudanças não se deram apenas pela mera utilização da cédula eleitoral.

Tendo essa questão clara, pode-se atuar aplicando todas as táticas, inclusive hierarquizando a disputa eleitoral como uma prioridade da política partidária em determinados momentos da conjuntura. Tal hierarquia, com a compreensão marxista da relação entre as eleições e a necessidade da força social física das classes trabalhadoras como condição indispensável para a vitória e, sobretudo, para a aplicação de um real programa democrático e anticapitalista, reafirma, e não debilita nem desvia da estratégia central e permanente dos marxistas revolucionários, a defesa da mobilização de massas para construir outro regime político. Um regime de natureza democrática, controlado pela população, cujo poder econômico não domine o político e, portanto, sofra uma forte intervenção pública numa transição de uma economia de mercado para uma economia social, a serviço da maioria da população.

Essa breve introdução não é a temática central a ser tratada nesse excerto. Todavia se faz necessária para entender posteriormente a profundidade da crítica colocada ao sistema eleitoral e suas instituições. Não apenas como uma crítica vazia de propósito, mas como parte da tarefa dos socialistas de disputar essa institucionalidade e esgarçar seus limites democráticos, mesmo que poucos.

Instituições Eleitorais e a opção brasileira de controle das eleições

O povo brasileiro se orgulha de seu país. Não de suas instituições. Essa é a fala predominantemente da opinião pública brasileira. Algumas instituições escapam, em momentos específicos, desta visão negativa – os Correios, o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal tem seus momentos de glória popular, mas isso não lhes garante imunidade às críticas mais ou menos ferozes de cidadãos, meio de comunicação e acadêmicos.

Uma instituição é exceção: a Justiça Eleitoral brasileira. Essa nos enche de orgulho, nos empresta um sentimento de pioneirismo, de destaque mundial. A urna eletrônica (cujo registro de voto não conta com nenhum substrato material), o resultado de 140 milhões de eleitores em poucas horas, a convocação e o treinamento de quase dois milhões de mesários, tudo isso quase leva a um ufanismo.

A história brasileira é marcada pela mentira eleitoral. As fraudes eram frequentes durante todo o império, com a violência em nome do imperador e a organização das eleições nas mãos dos partidos políticos. Na República, principalmente durante os períodos dos hiatos autoritários, as fraudes na formação, na manifestação e no escrutínio permaneceram, aliadas à uma forma muito mais sofisticada de adulteração da vontade eleitoral: as fraudes normativas. Essas fraudes, compreendidas a partir da alteração das regras eleitorais para beneficiar determinado candidato ou grupo político, ou, ainda, para impedir o avanço de forças oposicionistas, é um artificio presente em larga escalas em sistemas apenas nominalmente democráticos.

As regras da competição político-partidária no Brasil vêm sendo ultimamente alteradas significativamente por decisões judiciais, oriundas do Supremo Tribunal Federal quanto do Tribunal Superior Eleitoral. E essas alterações, muitas vezes, ocorrem com o processo eleitoral já inaugurado e até mesmo após o encerramento do calendário eleitoral. Também nem sempre se atém à regulamentação de normas já postas pelo legislador, seja em sede ordinária, complementar ou constitucional. Ao contrário, inovam para limitar direitos, criam obrigações, estabelecem ritos processuais, e as vezes, retrocedem para alcançar fatos anteriores às suas publicações ou para retirá-las do sistema jurídico, numa virada da jurisprudência sem qualquer compromisso com as consequências decorrentes de suas aplicações no decorrer do processo eleitoral. Isso faz com que se tenha, no mesmo pleito, casos iguais com deslindes completamente opostos e casos opostos com deslindes exatamente iguais, mesmo quando apreciados pela mesma Corte, com a mesma composição e em decisão tomada à unanimidade na mesma Sessão de Julgamento. Assim, é de se prever a enorme insegurança e incerteza jurídica que tal atuação tem provocado.

A pergunta que se faz é: será que, em nome de uma indiscutível necessidade de “moralização” do processo eleitoral, tendo o objetivo de se alcançar eleições limpas, nas quais os candidatos concorram em pé de igualdade, em que a vontade dos eleitores não seja conspurcada pelo abuso do poder econômico, político ou dos meios de comunicação, estejamos dispostos a admitir que um órgão cuja atuação tem sido marcada tão fortemente pelo ativismo judicial com todas as consequências apontadas acima, continue a dar a última palavra no processo eleitoral, inclusive no resultado das eleições?

E, ainda, será que este deslocamento do eleitor do seu papel de verdadeiro protagonista do processo eleitoral, para ser colocado como o elo mais frágil da cadeia eleitoral e, nesta condição, manter-se sob tutela excessiva da Justiça Eleitoral que, muitas vezes, se substitui à sua vontade para decidir eleições através de sentença judicial tem, realmente, contribuído para o fortalecimento da democracia?

A questão está posta e cabe às instituições competentes e aos atores do processo eleitoral assumirem de forma efetiva seus papéis no jogo democrático, seja através da tão encantada reforma política, seja restabelecendo os limites da atuação de cada qual, na medida da soberania popular. A exclusão cada vez maior dos eleitores no processo de escolha dos seus representantes aprofunda a crise de representatividade e em nada contribui para a democratização do espaço eleitoral.

A Reforma Política e suas principais mudanças

No dia 09 de setembro de 2015 a Câmara Federal encerrou a votação do Projeto de Lei 5735/13, aprovando parcialmente o texto do Senado para a chamada “Minirreforma Eleitoral”. Com a posterior sanção da Presidenta, que apresentou veto com relação a todos os artigos relacionados a financiamento privado, sofreram mudanças a Lei n. 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos), a Lei n. 9.504/97 (Lei das Eleições), bem como a Lei n. 4.737/65 (Código Eleitoral).

Para que as normas que alteram o processo eleitoral tivessem validade para as eleições municipais de 2016, a Lei deveria estar sancionada e publicada antes do dia 02 de outubro de 2015, em função do princípio da anualidade previsto no art. 16, da Constituição Federal de 1988. No dia 29 de setembro de 2015, a Lei n. 13.165/2015 foi publicada no Diário Oficial da União.

A título exemplificativo poder-se-iam mencionar como elementos principais da chamada Minirreforma Eleitoral os seguintes itens:

  1.  Redução do tempo da campanha eleitoral de 90 para 45 dias;
  2.  Ampliação das restrições a campanhas eleitorais tanto em bens públicos, de uso comum, quanto em bens particulares;
  3.  Redução do período de exibição e da duração dos programas de rádio e televisão de 45 para 35 dias;
  4.  Redução da participação dos pequenos partidos no espaço de rádio e televisão e nos debates;
  5.  Fim do financiamento empresarial de campanhas eleitorais por partidos políticos;
  6.  Abertura de prazo para que o detentor de mandato eletivo, possa trocar de partido, sem perder o mandato;

Desta forma, em brevíssima síntese, tem-se que as mudanças introduzidas pela Lei 13.165/2015 significaram mais uma renovação conservadora, supostamente com vistas à diminuição dos custos das campanhas eleitorais, do que propriamente uma reforma ou mesmo uma minirreforma. À exceção do fim do financiamento empresarial às campanhas, persistem intocadas algumas chagas do sistema político-eleitoral, tais como as distorções na representação proporcional e a possibilidade das coligações proporcionais.

A “Lei da Mordaça” e seus retrocessos na garantia de um processo eleitoral democrático

A “Lei da Mordaça” é um ataque ao único reduto de igualdade de disputa nos embates eleitorais. Nos debates não há diferença de tempo de TV, de cobertura ou de recursos financeiros. É o único espaço onde podem ser expostas ideias em pé de igualdade entre todos os candidatos. Exatamente por impedir a participação de alguns partidos, especialmente o PSOL nos debates eleitorais e diminuir consideravelmente o tempo de propaganda política na TV, que essa lei foi denominada de “Lei da Mordaça”.

O debate pode ser compreendido como um encontro face a face entre candidatos concorrentes (normalmente) a cargos do Poder Executivo em que lhes são feitas perguntas e apresentados temas e problemas diversos para suas apreciações e respostas sua finalidade primordial é auxiliar a escolha dos eleitores no dia das eleições. O evento é transmitido pela televisão rádio ou Internet, sendo objeto de grande interesse do público e larga cobertura da mídia. (GOMES, 2016, p.519).

O primeiro registro de debate transmitido pela mídia (televisão e rádio) que se tem notícia ocorreu nos EUA na campanha presidencial de 1960. Já ao final da campanha foi realizada uma série de três debates entre os candidatos dos partidos Democrata John F. Kennedy e Republicano Richard M. Nixon, os quais foram assistidos por cerca de 70 milhões de telespectadores. Na percepção geral, Kennedy saiu vitorioso sobretudo em razão de suas habilidades comunicativas, por sua boa aparência, postura mais espontânea e relaxada, bem como por ter passado a imagem de estar mais próximo e ser mais acessível às pessoas conquistou a confiança do eleitor norte-americano para o que os debates foram decisivos. Conforme assinalam Clift e Spieler (2012, p. 86) foi esse o início de uma importante tradição nas campanhas presidenciais americanas.

Embora tradicionalmente o debate seja mediado por profissionais da mídia nos últimos anos outro modelo também tem sido usado. Trata-se do denominado town hall debate ou town hall meeting (debate ou encontro comunitário), surgido nas eleições presidenciais dos EUA de 1992 na qual se defrontaram os candidatos democrata William Jefferson Clinton e o republicano George H. W. Bush. Nesse formato, questões não são postas por um mediador ou por um time de jornalistas, mas pelos próprios cidadãos; além disso, a um candidato é dado comentar as respostas do oponente. Se de um lado, esse formato de debate favorece candidatos dotados de maior pode comunicativo que sejam desenvoltos, espontâneos, acessíveis e hábeis para interagir com o público, de outro, encorajam a participação de eleitores indecisos, a quem é facultado se dirigir diretamente aos candidatos.

Atualmente, a mercê do desenvolvimento tecnológico, os debates se tornaram uma técnica largamente empregada nas democracias ocidentais. No Brasil, seu uso foi obstado pelo regime ditatorial inaugurado em 1964. Mas, com os ventos da reabertura política, já no ano de 1982, há registros de sua ocorrência. Assim é que a TVS (TV Studios, sucedida pelo SBT – Sistema Brasileiro de Televisão), em 22 de março de 1982, transmitiu debate entre os então candidatos ao governo do Estado de São Paulo Reynaldo de Barros (PDS) e Franco Montoro (PMDB). Nesse mesmo ano, outras emissoras promoveram e transmitiram debates, inclusive com a participação de outros candidatos. Desde então, o debate se incorporou nas campanhas eleitorais brasileiras.

A realização de debate por mídias, jornais e revistas virtuais não é objeto de especifica regulamentação na Lei no 9.504/97. Não há, pois, proibição do que seja realizado e exibido na web. No que for cabível, pode se cogitar a aplicação por analogia do disposto no artigo 46 daquela norma, mormente seu § 4º, segundo o qual “o debate será realizado segundo as regras estabelecidas em acordo celebrado entre os partidos políticos e a pessoa jurídica interessada na realização do evento, dando-se ciência à Justiça Eleitoral”. Saliente-se, porém, não ser imperiosa a formulação de convite e a efetiva participação de todos os candidatos, nem mesmo a de todos os candidatos “dos partidos com representação na Câmara dos Deputados”.

A luz da legislação vigente, o artigo 46 da Lei Eleitoral (com a redação da Lei nº 13.165/2015) faculta às emissoras de rádio e televisão inserir em suas programações normais a realização de debates sobre as eleições majoritária ou proporcional, sendo assegurada a participação de candidatos dos partidos com representação superior a nove Deputados da Câmara dos Deputados e facultada aos demais. A representação partidária na Câmara é a resultante da eleição anterior.

“Art. 46. Independentemente da veiculação de propaganda eleitoral gratuita no horário definido nesta Lei, é facultada a transmissão por emissora de rádio ou televisão de debates sobre as eleições majoritária ou proporcional, sendo assegurada a participação de candidatos dos partidos com representação superior a nove Deputados, e facultada a dos demais, observado o seguinte(…)”

Se o partido do candidato – seja ele majoritário ou proporcional – não contar com representação na Câmara Federal ou tiver menos de nove Deputados, a emissora não tem o dever de convidá-lo para o debate. Querendo, poderá fazê-lo, mas o tanto não está obrigado por lei. E caso queira é necessário contar com a aprovação de 2/3 daqueles candidatos que necessariamente devem ser convidados.

Já quanto aos convidados que necessariamente devem ser convidados, admite-se a realização de debate sem a presença de todos, desde que a emissora os tenha convidado com a antecedência mínima de 72 horas da realização do evento.

As regras do debate são ajustadas entre a emissora interessada e os partidos políticos dos candidatos participantes. No primeiro turno das eleições, consideram-se ‘aprovadas as regras, inclusive as que definam o número de participantes, que obtiverem a concordância de pelo menos 2/3 (dois terços) dos candidatos aptos no caso de eleição majoritária, e de pelo menos 2/3 (dois terços) dos partidos ou coligações com candidatos aptos, no caso de eleição proporcional’ Uma vez aprovado o acordo, deve se certificar a Justiça Eleitoral.

O breve histórico dos debates eleitorais nos dá uma dimensão desses espaços como forma de promoção da democracia. Entretanto vale ressaltar que a reforma política teve em seu bojo outros aspectos de ataque a igualdade de condições da disputa eleitoral. Não que essa existisse de forma profunda anteriormente, mas em teoria a Reforma Política era parte de um avanço reivindicado por muitos setores progressistas. De fato, encabeçada por Eduardo Cunha seus desdobramentos mais se assemelham a uma contrarreforma repleta de retrocessos.

Além do aspecto dos debates, a contrarreforma muda as regras da divisão do tempo de propaganda. Ela determina que somente 10% do tempo seja igualmente dividido entre os partidos. Os 90% restantes seriam repartidos proporcionalmente entre as siglas com mais representantes. Atualmente, esse percentual é de 66,6%.

Às vésperas de cada ano eleitoral o Congresso Nacional promove uma “pequena reforma política”, que na verdade é muito mais eleitoral que política e nunca passa de um remendo para readequar a legislação eleitoral às conveniências de momento dos próprios parlamentares ou do Poder Executivo.

Exemplos dessas medidas encontramos vários, entre eles o mandato de cinco anos, a reeleição, e a própria Lei da Ficha Limpa.

Para as eleições municipais de 2016 não foi diferente. Estavam colocadas para debate inúmeras questões fundamentais e necessárias, como o fim do financiamento privado de campanha, o fim da reeleição para cargos do Executivo, a limitação no número de mandatos de parlamentares, a unificação de data para as eleições e a limitação nos gastos de campanha, entre outras medidas.

Entretanto, não é nenhuma surpresa que nossa legislação eleitoral seja um combinado de distorções e insanidades corporativistas que apenas facilitam a manutenção daqueles que já estão no poder. Diante disso, fica difícil imaginar que esse mesmo Congresso Nacional possa trazer à luz uma legislação transformadora. As mudanças profundas do sistema político brasileiro não encontram espaço para serem aprovadas por pessoas eleitas pelas próprias regras que devem ser mudadas.

Os danos do modelo em vigor são claros. A título de exemplo a própria crise do sistema exposta pela Operação Lava Jato tem origem no financiamento privado de campanha. Está claro que essa rede de corrupção faz parte de uma gigantesca engrenagem que nasce na troca de favores entre a classe política e o capital.

E nesse ponto, vale ressaltar inclusive que um dos únicos avanços da Reforma Política foi justamente o fim do financiamento privado de campanha. Entretanto, isso não se deu no âmbito do legislativo e sim por uma decisão do STF, posteriormente mantida pelo veto da presidenta Dilma, que foi mantido. Em que pese a importância de tal ato não podemos esquecer que a função político-normativa da Suprema Corte não lhe permite ditar regras da alçada exclusiva do Poder Legislativo. Por mais que queira, o juiz constitucional não deveria redesenhar as regras do sistema eleitoral, criando traços e horizontes completamente distantes da soberana prerrogativa de bem interpretar a lei. Assim sendo, até mesmo a melhor parte da Reforma política se encontra contaminada em sua construção.

A lei é construída para impedir o surgimento de um novo ator político

De fato, a casta política não quer correr riscos de que surjam novos atores sociais no jogo político. O PSOL tem ocupado um importante espaço político. Nas últimas eleições a contragosto das grandes emissoras e das elites, os candidatos do PSOL trataram de temas proibidos e bandeiras que outros partidos não tiveram coragem de erguer. Desse modo, a minirreforma política aprovada na Câmara tem seu direcionamento voltado especialmente para impedir que o PSOL e outros partidos ideológicos cresçam e se consolidem.

A palavra que caracteriza os anos de 2015 e 2016 é crise. Uma combinação entre as crises econômica, social, ambiental e política. Uma falência múltipla que envolve o modelo econômico, o regime e o governo. Esse regime marcado pelos interesses burgueses e pelo saqueamento do Estado por meio da corrupção tem sido desnudado com a prisão de banqueiros, empreiteiros e políticos.

Nesse sentido é necessário além de medidas econômicas e sociais, da luta por direitos, defender a construção de um novo regime político. Com este governo federal de plantão e este Congresso Nacional, com o atual sistema judiciário e o monopólio privado da mídia, instituições que se articulam para reproduzir o domínio da burguesia, não há como melhorar a vida do povo. Neste sentido a crise dos partidos que sustentam tal regime é nítida[3]. É preciso construir um terceiro campo. Mas este terceiro campo político precisa apresentar uma saída política global, não apenas propostas de medidas econômicas e sociais e a luta por direitos específicos.

Uma saída política para a crise não será feita por qualquer reforma deste regime político. O regime precisa ser destruído. Para a construção de novas instituições e de uma articulação entre elas que satisfaça aos interesses populares é preciso uma imensa mobilização de massas e a construção de novos organismos de luta do povo, seja renovando e democratizando os sindicatos, derrotando as burocracias aí instaladas, seja avançando na construção de entidades do movimento popular, camponês e estudantil. Trata-se de um processo longo. É preciso buscar as mediações democráticas que colaborem para desenvolver a confiança dos trabalhadores e da juventude em sua luta, em sua força, em sua capacidade de organização.

Neste sentido é fundamental intervir no processo eleitoral, ter uma posição sobre o poder, encontrar uma proposta de poder que questione a ordem atual e tenha alguma capacidade de ser visualizada por amplas massas cansadas deste regime corrupto.

Desse modo, candidaturas como a de Luciana Genro em Porto Alegre, Erundina em São Paulo, Marcelo Freixo no Rio de Janeiro, Edmilson Rodrigues em Belém e tantas outras são ainda mais necessárias nesse momento. De fato, as incertezas do cenário político nacional têm ocupado praticamente a totalidade do debate público, tendo pouco espaço até agora as questões locais.

Como a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik disse em seu artigo para a Folha de São Paulo:

“Se nos pautarmos pelas narrativas presentes nas ações jurídicas e midiáticas, assim como no discurso das novas/velhas lideranças políticas envolvidas no processo de impedimento da presidente afastada Dilma Rousseff, certamente os candidatos aos governos municipais prometerão ‘honestidade’ e ‘responsabilidade em relação aos gastos públicos’. ”

Entretanto, na atual conjuntura os eleitores não estão sendo facilmente convencidos da sinceridade dessas promessas. As tradicionais formas de representação política estão claramente em crise. E isso não ocorre apenas no Brasil, mas em vários lugares do mundo, como na Espanha, na França, até mesmo nos Estados Unidos. Sendo que, as alternativas que tem surgido em meio a tantas crises colocam no centro de seus programas a proposta do exercício da democracia direta. Surgem diferentes experimentações com relação às formas de tomada de decisão, que incluem processos mais horizontais e diretos, com ampla atuação presencial, mas também por meio de redes sociais e ferramentas tecnológicas.

Na crise e falência desse regime há espaço para surgir uma nova esquerda, com alternativas que convençam os cidadãos nessa construção de cidade como bem comum e no qual a política se realiza por meio das mãos de todos. As candidaturas do PSOL cumprem esse papel e as cidades

Como afirma Luciana Genro, é claro que os problemas crônicos e estruturais do capitalismo não podem ser resolvidos a partir da formulação de modelos de gestão presos aos limites estatais das fronteiras municipais. Contudo, se pensarmos em uma luta política anticapitalista que se desenvolva em escalas maiores – nacionais e internacionais -, é inegável que a disputa pela cidade é parte da construção de um novo projeto de poder.

Assim, construir um modelo político em que a justiça prevaleça a partir de uma organização verdadeiramente democrática da maioria, passa necessariamente por elaborar sobre cidades. Isto é, passa pela discussão central de como mobilizar os trabalhadores urbanos para construir seu projeto independente de vida.

Nosso desafio é reconstituir um tipo totalmente novo de cidade, mas isto só pode ocorrer a partir de um vigoroso movimento anticapitalista cujo objetivo central seja a transformação da vida urbana como um todo. Como afirma David Harvey, há possibilidades e potencialidade populares emergindo da crise. Reivindicar o direito a cidade é uma estação intermediária na estrada que conduz ao objetivo de derrubar a totalidade do sistema capitalista e suas estruturas de poder e de exploração.


1 In: A canção do amor armado. Publicado no livro “Faz escuro, mas eu canto”, 1996.
2 LENIN, V.I.. Esquerdismo, doença infantil do comunismo, 1920.


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Pedro Micussi