A crise da vanguarda: crítica ao texto “Sobre a natureza da crise brasileira”

O caráter da Operação Lava Jato, o papel das organizações socialistas na luta contra a corrupção e a crise em curso no Brasil são objeto de debate com posições recentes da corrente Insurgência.

Bruno Magalhães e Felipe Moreira 10 jul 2017, 19:16

Circula entre militantes um texto publicado na página da Insurgência (corrente interna do PSOL) produzido pelos camaradas Ana Carvalhaes e José Correa que expressa as principais ideias dessa organização acerca da crise que marca a conjuntura brasileira atual. Em um espírito de ampliação do diálogo e debate fraterno entre militantes do PSOL, colocamos aqui divergências sobre as análises e conclusões dos companheiros, buscando também o diálogo com outras organizações combativas da esquerda brasileira.

Uma das principais diferenças políticas com a Insurgência no período atual está na avaliação do caráter das investigações operadas atualmente pelo judiciário brasileiro. Analisar a Lava Jato e outras operações como simples ferramentas da burguesia leva os companheiros a problemas políticos decorrentes dessa caracterização. No texto criticado, os companheiros aparentemente recuam na posição sobre a Lava Jato, mas a ambiguidade textual não nos permite tirar conclusões imediatas.

Não se trata de pautar a corrupção de maneira monotemática, mas de evidenciar que nos dias de hoje tudo aquilo que nos une é abalado pelas diferenças nesses marcos, nos dando caracterizações diferentes sobre o PT, o PSDB, o judiciário e tudo mais o que importa. Nesse texto, a ideia é aprofundar as duas possibilidades de visão da Insurgência sobre a Lava Jato: braço de um setor da burguesia ou ação de um setor não controlado pela burguesia, e pensar as consequências de cada posição na realidade.

Cada dia é um fato novo

Na própria forma, o texto da Insurgência se esquiva de elementos contraditórios. Segue o primeiro parágrafo:

Este texto não trata do “varejo” da conjuntura nacional. Não debate as consequências da não cassação da chapa Dilma-Temer no TSE, o inédito pedido de impeachment de um ministro do STF, as peripécias do “fico não fico” do PSDB, as perspectivas da campanha das Diretas Já, nem os caminhos fundamentais da resistência às contrarreformas ultraliberais do capital para o Brasil, que seguem em curso veloz no Congresso Nacional cada vez mais desacreditado. (grifo nosso)

A análise dos processos de maior duração é essencial, mas necessariamente deve levar em conta os eventos da conjuntura se tiver qualquer objetivo não acadêmico, como a política. O que chamamos de processos é em última medida a sequência dos fatos encadeados, cuja compreensão sobre seu desenvolvimento, suas combinações e contradições é o que permite a tática para intervenção na realidade. Na conjuntura vertiginosa em que vivemos, os fatos cada vez mais deixam de ser “varejo” e tornam-se “atacado”, parte central de processos incertos.

O imponderável elemento do “fato novo”, que balança toda semana a política brasileira, é essencial na compreensão da realidade, elementos como a possibilidade de prisão do Aécio, da delação de Palocci, Temer negociando propina em rede nacional e o que mais aparecer não são elementos para serem tratados como simples “varejo” porque podem muitas vezes virar a conjuntura e exigir de nós mais do que análises.

Não é apenas uma questão de discurso. Se os companheiros debatessem a não cassação da chapa Dilma-Temer teriam mais elementos para caracterizar a aliança e confluência entre os interesses de PT e PMDB. E se debatessem a proposta de impeachment de Gilmar Mendes teriam mais elementos para caracterizar as diferentes correntes dentro do judiciário. Ao colocar os fatos na categoria de “varejo”, de forma consciente ou não, os companheiros da Insurgência deixam de lado evidências que vão contra a política que defendem.

O combate feito por setores da esquerda contra as investigações no último período – dizendo que as investigações acabariam depois do impeachment, que o PSDB nunca seria afetado, que a Lava Jato era uma operação planejada pelo imperialismo, entre outros erros crassos – foi totalmente desacreditado justamente pelos fatos de “varejo” que o texto procura ignorar.

As investigações são um plano da burguesia?

Uma diferença maior com a Insurgência está na hipótese da Lava Jato como ação da burguesia imperialista (se há um equívoco aqui e a Insurgência não tem essa leitura, podemos pular os parágrafos abaixo e estabelecer mais um marco de unidade). A hipótese, formulada inicialmente por intelectuais como Emir Sader e Marilena Chauí e ampliada pela mídia petista, teve alguma força na época do impeachment, mas foi desmoralizada nos últimos meses pelo avanço das investigações. Quem defende essa hipótese parte de um silogismo: “o judiciário é de direita, a direita é imperialista, logo o judiciário é imperialista”. A cereja do bolo argumentativa é a ida de Sérgio Moro aos EUA em evento sobre lavagem de dinheiro, a prova final da relação orgânica entre as investigações e as agências de inteligência do governo americano.

Isso não se sustenta porque a realidade é muito mais contraditória. Os esquemas generalizados de corrupção no Brasil produziram imensas fortunas a serem lavadas, mecanismo que de certa forma vai contra as formalidades do capitalismo internacional. Os reflexos da crise econômica no país e a generalização dos esquemas de corrupção nos levaram à situação atual de crise dupla (econômica e política), tendo a conjuntura internacional como estopim da primeira e o judiciário como estopim da segunda (dois elementos, diga-se de passagem, menores no texto), as duas refletidas nos processos abertos em junho de 2013.

Ainda que juízes e promotores sejam majoritariamente conservadores ou liberais, contando-se nos dedos os magistrados marxistas, e acreditem de fato na impossível “limpeza”, o processo de investigações tem múltiplos interesses e movimentações independentes, é mais complexo e contraditório do que certos modelos conseguem abranger. Daí a dizer que esses processos podem substituir a classe trabalhadora como sujeito histórico é uma vulgarização barata, não defendida por nenhuma organização no campo da esquerda.

É impossível sustentar que a desmoralização do PSDB seja parte do plano da burguesia, ou que a provável queda de Temer seja parte disso, ou ainda que o recuo nas reformas foi um “tiro que saiu pela culatra”. O grau de crise dentro da burguesia brasileira é evidente e o elemento de instabilidade trazido pelas investigações afeta os planos tanto da “oligarquia” quanto do “capital internacional”. O texto dos companheiros da Insurgência insinua a hipótese das investigações como parte desses planos, mas nunca a afirma diretamente. Vejamos:

Já se vão três anos de recessão e uma completa paralisia do sistema político. Esta realidade evidencia que o regime (termo usado aqui como sinônimo de sistema político, ou seja, aquela dada articulação de instituições utilizadas para a dominação política de classe) se tornou disfuncional para amplos setores do capital. Uma burguesia com a dimensão e interesses (leiam-se negócios) globais como a nossa não pode coexistir com tanta instabilidade e incerteza sobre o futuro por tanto tempo, já que o prolongamento da crise política aprofunda a crise econômica e prejudica tanto a extração direta de mais valia quanto os lucros do rentismo no sistema financeiro. (grifo nosso)

Se a nossa burguesia global não pode coexistir com essa “instabilidade” e não suporta o “prolongamento da crise”, por que teria um comportamento suicida de planejar uma operação judicial para atrasar as próprias reformas e esquemas de poder? Esse dilema dos companheiros é insolúvel. E continuam:

Apostamos na hipótese que um setor do aparelho de estado, autonomizado, representado por parcela da PF, pelo MP do PR e juiz Moro, está tentando fazer uma limpeza do pessoal político e empresarial formado na velha escola patrimonial – para usar a linguagem e a análise que empresários estão empregando. Esse setor está querendo “moralizar o ambiente de negócios” no Brasil. E faz isso golpeando outros setores dirigentes do aparelho de estado e empresários importantes– todos muito beneficiados nos anos do lulopetismo. Está se dispondo a degolar políticos e capitalistas. É neste sentido uma disputa pela “modernização” do estado, tendo como pano de fundo um cenário internacional de instabilidade e incertezas sobre o futuro da globalização neoliberal. (grifo nosso)

O texto não é direto (nesse caso nem pode ser), mas dá a entender que esse “setor do aparelho de estado”, apesar de “autonomizado”, é organizado ou subsidiado por uma “burguesia com interesses globais”, mais “moderna” que a “velha escola patrimonial”. Se essa hipótese sobre a interpretação do texto se confirma, a Lava Jato é uma operação do imperialismo e o argumento cai no problema exposto acima. Se não, se o “setor do aparelho de estado” é mais independente e autônomo inclusive da própria burguesia, a postura da Insurgência precisaria mudar, pois seria necessária alguma política para esse setor contraditório que se enfrenta com interesses da burguesia, e seria necessária principalmente uma política que dialogasse com as amplas camadas da população que defendem essas investigações.

A tentativa de profundidade do texto acaba ignorando elementos visíveis à superfície. Que setor da burguesia globalista está contra o PSDB? Quem controla a Lava Jato? Essas questões-chave na reflexão proposta pelos companheiros ficam como lacunas sem resposta.

Para nós, essa “disputa pela modernização”, que a Insurgência não deixa evidente quem dirige, é reflexo de uma sequência interminável de fatos do “varejo” que levaram a processos maiores. O descontrole de hoje dos “fatos novos” que sacodem nossa conjuntura foi plantado durante as décadas dos governos FHC e Lula, com muita sujeira sendo enfiada debaixo do tapete com os esquemas de corrupção nas privatizações, na compra da reeleição, nos fundos de pensão, no mensalão (que tirou camaradas como Chico Alencar e Ivan Valente do PT) e em tantas outras expressões da aliança orgânica de todos os governos da “Nova República” (PSDB, PMDB, PT) com a burguesia nacional, seja ela “globalista” ou “oligárquica”.

Há uma década, quando Lula se uniu a Gilmar Mendes para afastar Paulo Lacerda da ABIN e blindar o PSDB (principalmente Serra e Alckmin), acabando com as operações Satiagraha e Castelo de Areia, plantou a rusga para o troco que esse setor dá hoje, colocando o regime político nas cordas. Obviamente, as direções políticas da burguesia tem política para setores do judiciário, mas nesse momento o “varejo” dos governos FHC e Lula explica melhor o “atacado” de hoje do que uma hipotética conspiração burguesa internacional.

É bom lembrar também que, já há uma década, as organizações que dariam origem à Insurgência foram contra o diálogo entre PSOL e os setores que se enfrentavam contra a corrupção e eram perseguidos, principalmente no caso Satiagraha de Daniel Dantas. É bom lembrar também que naqueles tempos esse setor via a consigna contra o então presidente do senado (“Fora Sarney!”) como “agitação moralista”, e propunham ao invés disso o propagandista mote “Fim do Senado”, política impraticável na realidade e que caiu no esquecimento. É como um mantra sempre repetido: sob risco, fazer qualquer coisa, menos arriscar.

Hoje Daniel Dantas continua amigo de Gilmar Mendes e virou bilionário semana passada, conforme a revista Bloomberg. Vimos esse processo se desenvolver há mais de 10 anos atrás, e enquanto PSOL solenemente demos as costas a ele porque a pauta da corrupção parecia contraditória e “moralista” demais para nossa propaganda socialista (além de incomodar certos “amigos” petistas), agora parece que repetimos novamente o mesmo erro. De novo por medo do novo.

De onde vem a crise?

Uma grande diferença com o texto dos companheiros está na avaliação da origem da crise atual. Para nós, a crise do regime político brasileiro não se inicia com a movimentação de unidade da burguesia no impeachment (como defende o texto e, também, o PT), mas tem sim sua origem na profunda crise econômica e nos processos internacionais, cujos ventos incendiaram a fogueira de junho de 2013 no Brasil. Em suas múltiplas expressões, junho demonstrou as rachaduras do arranjo de poder da governabilidade burguesa e foi uma experiência do movimento de massas que rompeu a barreira da partidocracia corrupta. As ruas tomadas em todo Brasil por mais direitos, e as consequentes vitórias e novas mobilizações (nas próprias tarifas, nas lutas da Copa do Mundo, Primavera Feminista, ocupações de escolas, etc.) deram ao povo a lição de que é possível lutar e vencer, um elemento subjetivo essencial na construção das próximas lutas. O exemplo de junho ainda é forte e marca a mudança no patamar de mobilizações depois de 2013.

Durante grande período, muitos setores defenderam ou flertaram com a ideia petista da onda conservadora após Junho, que exigiria uma postura defensiva da vanguarda socialista. O fortalecimento do MBL, Vem Pra Rua e mesmo de um setor fascista bastante minoritário ocorreu na esteira da desmoralização do PT, e impactou a análise da conjuntura de muitos socialistas honestos. A polarização de ideias se acirrou no Brasil como fruto do próprio acirramento social promovido pela crise, mas o avanço das investigações sobre PMDB e PSDB desmoralizou as direções da “onda conservadora” e decretou a falência política dos movimentos da direita, que hoje não conseguem nem mesmo convocar manifestações de rua.

Essa onda (ou seus termos similares) se desorganiza antes de sofrer qualquer golpe sério da vanguarda, que infelizmente na sensação de “perigo” preferiu se alinhar à narrativa da oligarquia e do PT, na qual a corrupção estatal é um “mal menor”, em que uma obra superfaturada ou a venda de uma lei são elementos menores no contexto da grande exploração capitalista. Para a população, a corrupção não é um mal menor, e os trabalhadores estão certos, não à toa grande parcela considerada “antipetista” é contra as reformas e o governo Temer.

O avanço das investigações esvaziou os atos dos coxinhas e desidratou a caracterização desse setor da vanguarda, mas sem uma política independente para assumir a luta contra a corrupção o vazio apareceu. Bolsonaro surge no cenário, e seu crescimento está diretamente ligado à falta de uma alternativa socialista independente do petismo, que tenha para si as prioridades do povo e não dos ditos “progressistas” que enriquecem em consultorias privadas.

A ideia de “preservação dos partidos” ou do “estado de direito”, que vez ou outra também é defendida ou insinuada no campo da esquerda como política para o momento atual, é um dos maiores tiros no pé que podem dar aqueles que defendem uma ruptura social. Muitos que são contra as investigações sobem o tom para defender o “estado de direito” na denúncia dos métodos utilizados contra corruptos comprovados. E muitos desses (no caso, não os companheiros da Insurgência) utilizam-se inclusive da memória da ditadura contra a ameaça de um suposto golpe militar, enquanto reservadamente negociam a alma com a cúpula burguesa brasileira que aplicaria esse mesmo golpe. Essa demagogia não pode fazer bem à construção da nova política que defendemos.

Indo a outro tema, e novamente citando os companheiros da Insurgência:

O pessoal político estabelecido nos atuais partidos – o que é conceitualmente e na prática diferente de burguesia, são sua representação política constituída, com autonomia frente a ela, como também o são as figuras de proa do Judiciário – vai tentar a todo custo que esta crise imensa termine em pizza. Em outras palavras, que se encerre preservando suas carreiras e sua liberdade frente à ameaça de encarceramento e preservando ao máximo as regras atuais do jogo atuais, ou regras do jogo ainda mais antidemocráticas. (grifos nossos)

Ao diferenciar os partidos burgueses da própria burguesia o texto parece afirmar, novamente sem fazer isso diretamente, que as investigações do judiciário e PF são esse braço da burguesia por fora de seus partidos, e inclusive contra eles, que não querem que tudo “acabe em pizza”. Resta saber novamente o porquê desse instinto suicida da burguesia brasileira em desvendar os esqueletos do próprio armário. Mas voltemos ao texto:

Mas pelo menos uma parte do Judiciário não vai recuar da “limpeza antipatrimonialista” e o conflito pode se prolongar. É muito provável que termine no STF, em que Cármen Lúcia, a presidente, já defendeu um plebiscito ou referendo para a reforma política. A reforma política desejada pelas forças da ordem, evidentemente não resolve a crise econômica, mas pode formalizar o desmantelamento da Nova República como regime – para o qual convergiam tanto o PSDB como o PT, além do PMDB e todos os cerca de 30 partidos fisiológicos. (grifo nosso)

Ficam evidentes algumas perguntas que o texto (e a formulação em geral) não se preocupa em responder. O desmantelamento da Nova República é negativo? Se o judiciário é uma simples representação da burguesia (ainda que um tanto independente, conforme dito no trecho acima), qual o plano desse setor da burguesia quando derruba sua própria narrativa perante a corrupção e o impeachment? Se o nível de conspiração do judiciário é desse nível, quem está por trás disso?

Essa indefinição na caracterização afeta seriamente a política da Insurgência e de outras organizações de esquerda. Defender as investigações no abstrato e ao mesmo tempo denunciá-las perante a vanguarda (“para não parecer de direita”) no concreto é uma contradição formal que embaralha todo o resto. Como já dito em outro texto, “é como tirar as meias sem tirar o sapato”.

O arranjo teórico fraco sobre as investigações no judiciário brasileiro serve aos companheiros como alicerce político arenoso e tem dois efeitos nefastos, servindo de justificativa para uma política de “aderência” ao petismo (que realmente faz um discurso “à esquerda” do judiciário, apesar dos fundos de pensão) e impedindo que a luta contra a corrupção tenha o necessário destaque na agitação e propaganda.

Lênin e a política de avestruz

Comecemos pelo texto dos companheiros:

Crise nacional, é bom lembrar, não é “crise revolucionária”. O conceito mais conhecido desta última, desenvolvido por Lênin (…) – 1) impossibilidade para as classes dominantes manterem sua dominação de forma inalterada(…); 2) agravamento, além do comum, da miséria e da angústia das classes oprimidas; 3) desenvolvimento acentuado, em virtude das razões indicadas acima, da atividade das massas (…) para uma ação histórica independente. – Fica evidente que o terceiro elemento está ausente no Brasil, pelo menos por enquanto.(…)Mas não se abre situação pré, nem revolucionária, nem crise revolucionária por ação e desejo de outros setores sociais que não sejam as classes trabalhadoras e seus aliados despossuídos em ofensiva e organizados de forma independente. Afirmar que viveríamos uma situação pré-revolucionária aberta pela Lava Jato não encontra nenhum respaldo nos fatos. (grifo nosso)

Nosso maior problema está justamente no terceiro elemento do conceito de crise nacional, que se for utilizado para fins não acadêmicos evidencia a necessidade da preparação e organização independente das atividades de massa para uma ação histórica. O momento crítico exige independência na construção do novo. Esse é um ponto crítico da polêmica por dois motivos:

Primeiro porque os companheiros da Insurgência separam o ascenso das mobilizações dos últimos meses com as jornadas de junho de 2013, as lutas da Copa e tantas outras mobilizações de massa durante o governo do PT. Segundo porque a ação histórica independente das massas diz muito sobre a lição de casa da própria vanguarda, e nunca ocorrerá enquanto revolucionários se sentirem atraídos pela fraseologia e pela estética da social-traição. A construção de uma alternativa passa mais pelos lampejos do futuro do que por recordações corrompidas do passado, e por aí se abrem possibilidades de disputa do poder.

A caraterização exagerada que setores honestos da esquerda dão ao golpe parlamentar é extremamente útil à continuidade da narrativa petista, mas não tem subsídio nos fatos. Ocorreram ilegalidades flagrantes e obviamente se tratou de um rito absurdo, mas é fato que se desenrolou não através do conflito direto e sim com o desmanche da governabilidade petista, segundo a dinâmica de um jogo cujas regras o PT aceitou alegremente.

As constantes negociações do governo Dilma com os golpistas, sem rupturas claras até o fim do processo (e até hoje!) mostram que essa manobra é muito insuficiente para o título de fato central do último período. E se fosse um golpe imperialista orquestrado com o judiciário contra os trabalhadores, o PSDB estaria forte, a Lava Jato teria se encerrado há tempos e as reformas já teriam sido aprovadas. Foi um golpe parlamentar, uma ação antidemocrática, uma traição, mas cuja principal responsabilidade foi daqueles que criaram os corvos.

A análise do golpe como elemento central é próxima da leitura petista, inclusive com as críticas. A esquerda exige, a direção do PT aceita e hoje não tem problema algum em reconhecer seus “erro” e “limitações”, prometendo até a economia planificada após uma possível eleição de Lula em 2018. Depois de tantas e evidentes traições, estranho seria se quadros tão “flexíveis” mantivessem a posição anterior após tamanha mudança na conjuntura.

Novamente no texto, dizem os companheiros da Insurgência:

Parcelas da juventude crêem que bandeiras como “greve geral de 48 horas” ou “construir conselhos operários” (como o PSTU) são saídas “políticas”. Como se estas palavras fossem mais radicais e opostas pelo vértice àquelas que dialogam com o funcionamento geral da sociedade. (grifo nosso). Para muitas delas, apontar para saídas que incluam propostas no plano das instituições seria “capitulação à institucionalidade burguesa”, uma negação das reivindicações de transição, que, todavia, dão destaque fundamental às bandeiras democráticas, quando não da política mesma.

É justa a crítica ao PSTU, e justa também a mesma crítica à própria Insurgência. Ora, não seria a luta contra a corrupção uma pauta que dialoga com “o funcionamento geral da sociedade”? A saída “política” da unidade de resistência contra um presidente frágil que cairá pela mão de terceiros também não é algo abstrata? Se existe alguma proximidade política entre PSTU e Insurgência, talvez ela esteja nesse nível de abstração de objetivos, com desejos mais lineares que os incertos processos que vivemos. Voltando ao texto:

Algumas correntes da esquerda não dão importância ou simplesmente negam ter havido um golpe, ou uma virada desfavorável na correlação de forças em 2016, tendendo a colocar sinal de igual entre os governos lulopetistas e o atual.

Aqui aparecem resquícios daqueles erros de análise levantados acima. O golpe parlamentar, conforme dito anteriormente, foi uma etapa de todo esse processo cujo sentido em si já tem pouco efeito prático. Defender que a virada momentânea na correlação de forças realmente ocorrida em 2016 tem efeitos fortes ainda hoje é ceder aos lamentos do fisiologismo petista, é ignorar o naufrágio que vive o governo Temer, a crise brutal do PSDB, o esvaziamento da direita nas ruas, entre tantos outros elementos. A hipótese da defensiva política que prevalece no texto e fica mais evidente nesse trecho faz os companheiros da Insurgência escorregarem mais uma vez. Os governos “lulopetistas” e o atual foram diferentes, mas também umbilicalmente parecidos, e por isso o PSOL existe.

De novo ao texto: “Elas flertam também com os movimentos anticorrupção da direita, em boa medida instrumentalizados, até há pouco, como movimentos antipetistas” (grifo nosso). Na continuação do parágrafo, outro erro. A caracterização dos movimentos antipetistas automaticamente como movimentos de direita ignora que setores majoritários da classe trabalhadora não são mais dirigidos politicamente pelo PT, ainda que comparativamente associem os governos petistas a um ciclo de crescimento econômico. A “disputa das bases petistas”, que de fato deve ser feita, não pode anular a disputa das multidões de trabalhadores “não petistas” disputados pelo conservadorismo, e se a primeira tarefa é continuar aquilo que já fazemos a segunda significa fazer algo totalmente novo.

Junho de 2013 tinha elementos antipetistas, assim como as ocupações de escolas, e esse fenômenos tinham também elementos anticorrupção, mas foram processos que passaram longe da direita (na verdade geraram reações contrárias à direita onde a esquerda nunca conseguiu). O setor dito acima como “antipetista” (que está em todos os lugares) é um campo de jovens que não se identificam com a partidocracia e não consideram a luta anticorrupção como moralismo. São essenciais no diálogo e na construção de uma alternativa independente, e recebem mais política dos autonomistas que de outro setor.

Nesse momento de crise, os companheiros da Insurgência defendem a diluição de nossa intervenção em uma grande frente ampla defensiva. Nós defendemos a necessidade cada vez maior da independência e da diferenciação com os grupos que governam o país há décadas e hoje estão desacreditados politicamente. Conforme demonstra o professor Pablo Ortellado,

De um lado, a esquerda da sociedade civil, ludibriada pelos partidos, foi levada a acreditar que os que se indignavam com a corrupção não passavam de cínicos que, no fundo, só queriam reverter as conquistas sociais dos anos Lula. Do outro lado, novas e velhas lideranças políticas faziam os indignados com a corrupçã oacreditarem que a esquerda era toda ela composta de petistas sem caráter que defendiam a corrupção. E enquanto, na base, a sociedade se polarizava numa guerra despropositada entre os puros e os justos, no topo, a pragmática classe política respirava aliviada com a sobrevida que tinha conquistado pelo enfraquecimento dos de baixo. (…) É esse enfraquecimento gerado pelo conflito na sociedade civil que explica como que, a despeito do grande consenso em torno dos serviços públicos e do combate à corrupção, o desdobramento dos protestos permitiu que emergisse o seu oposto: a ascensão de nosso pior partido político com a missão de limitar os serviços públicos e encontrar algum tipo de salvaguarda contra as investigações da Lava Jato.

Mesmo os movimentos assumidamente de direita desidrataram quando a massa que os acompanhava percebeu que eles também tinham “corruptos de estimação”, deixando aberto um enorme espaço entre aqueles que não consideram a luta por direitos e contra a corrupção como contraditórias. É um grande espaço político e uma grande oportunidade perdida.

Lênin nunca teve uma política de avestruz perante o povo, nunca se deixou impressionar pela lógica própria da vanguarda, e é certo que a política leninista incomodou pela virulência contra o regime, sendo muitas vezes criticada pelo resto da esquerda por fazer “o jogo do imperialismo” (no caso, o alemão). Mas foram sua tenacidade e independência que permitiram aos trabalhadores verem ali uma ferramenta para sua ação consciente. Da mesma forma, hoje nos parece que a prioridade é golpear sem dó o regime, sem acordos superestruturais com corruptos, sejam burgueses ou traidores, e buscar a construção de uma alternativa independente que denuncia essas quadrilhas que espoliaram o país nas últimas décadas.

Essa alternativa passa necessariamente pelo diálogo entre setores que hoje constroem a CSP-Conlutas e a Frente Povo Sem Medo, os mesmos setores combativos que desde o governo Lula têm apontado as traições e contradições do modelo que nos trouxe a essa situação. A política de frente única só é real se incorporar esses dois polos, as iniciativas da FPSM com o ex-governismo e sem a CSP-Conlutas não são espaços de frente única por definição, tal como o contrário.

As consignas de “Fora Temer!” e “Diretas Já” precisam ser combinadas imediatamente a alguma definição que nos diferencie do petismo, interlocutor privilegiado de um setor da burguesia brasileira. O fortalecimento do PSOL como polo independente, sempre golpeando na rachadura da burguesia em crise, também é imprescindível para essa urgente tarefa.

Por isso, é essencial afirmar desde já uma política independente, que não espere definições sobre Lula para se postular. Não é possível nos atrelarmos novamente à dinâmica petista de conchavos com vistas às eleições de 2018. Existem multidões dispostas a cerrar fileiras contra o regime e as reformas, e essas multidões em disputa não capitularão a acordos por cima nem a relativização da corrupção. Nesse sentido, é hora de armar nossa política desde já, e o nome do camarada Chico Alencar se torna cada vez mais evidente para essa luta.


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