“Esses viados matam fascistas”: A resistência curda aponta o caminho

O mundo tomou conhecimento da existência de uma coluna formada por LGBTs em combate direto contra o Daesh.

Samir Oliveira 27 jul 2017, 19:22

A imagem de guerrilheiros sustentando uma bandeira LGBT e uma faixa com os dizeres “Estes viados matam fascistas” percorreu o mundo ao longo desta semana. Trata-se de uma coluna formada por LGBTs em combate direto contra o Daesh1, criada nas fileiras da resistência curda na Síria.

O exército de insurreição e libertação queer2 surgiu no âmbito das forças revolucionárias internacionais de guerrilha do povo, que são um batalhão de combatentes do mundo inteiro ligados às unidades de proteção do povo no território curdo dentro da síria.

São muitos nomes, siglas e jargões. O fundamental é entendermos que existe um contingente considerável de pessoas lutando contra o Daesh e construindo uma alternativa em meio a uma região conflagrada. É a resistência do povo curdo. E agora os LGBTs estão na linha de frente deste combate.

“As imagens de homossexuais sendo jogados de edifícios e apedrejados até a morte pelo Daesh são cenas que não podemos simplesmente assistir e não fazer nada a respeito”, diz o grupo em seu manifesto.

Os curdos são a mais numerosa etnia do mundo sem um Estado. Representam mais de 26 milhões de pessoas que vivem em regiões do Irã, do Iraque, da Síria e da Turquia. É evidente que nenhum destes países aceita ceder nacos de seus territórios nacionais para o povo curdo constituir um Estado independente.

No Iraque existe um nível maior de autonomia, com um governo regional formado dentro das fronteiras iraquianas. Na Turquia, a escalada autoritária do governo Erdogan desmantelou o HDP, o partido de esquerda pró-curdos.

Na Síria, os curdos do Norte do país têm se organizado para travar uma luta incansável de proteção de seus territórios contra o Daesh e também contra as forças do regime de Bashar al-Assad. Representam um enclave importante de resistência contra o avanço da barbárie expressa pelo Daesh. Foram os curdos que obtiveram as mais expressivas vitórias militares contra os terroristas.

Mas existe uma diferença fundamental. Enquanto no Iraque o governo regional curdo adota uma linha política conservadora e aliada às grandes potências globais, na Síria o povo curdo aposta na auto-organização de seus territórios por meio do confederalismo democrático.

Trata-se de um sistema de governo de inspiração anticapitalista, traduzido para a realidade curda através das formulações políticas do PKK, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão. O PKK existe desde os anos 1970 e é considerado uma organização “terrorista” pelos Estados Unidos, pela União Europeia e pela Turquia — país onde seu principal líder, Abdullah Öcalan, encontra-se em prisão perpétua desde a década de 1990.

A premissa política seguida pelo povo curdo na Síria estabelece a igualdade total entre homens e mulheres. Em 2015 tive a oportunidade de conversar com Melike Yasar, do Movimento de Mulheres Livres do Curdistão. Cansada de explicar qual o papel das mulheres curdas na luta travada no Norte da Síria, ela disparou: “As mulheres não têm papel nenhum na revolução. Elas são as que fazem a revolução. Os homens é que têm um papel nela e precisam aprender que sem a autolibertação feminina eles também não irão se libertar”.

Em 2013, os curdos na Síria anunciaram a organização de três regiões administrativas no Norte do país. São os chamados “cantões”: Afrin, Jazira e Kobani. Localizados em meio a um território conflagrado pela guerra, os cantões formam a região de Rojava — palavra que, em curdo, significa “oeste”.

Rojava possui uma população de cerca de 3 milhões de pessoas. Enquanto se mobilizam para lutar contra o Daesh e conquistar independência em relação ao governo Sírio, os curdos estão criando uma própria forma de organização social, política e econômica.

Os cantões são governados pelo povo através de assembleias populares. Cada região possui uma co-presidência composta por um homem e uma mulher. O caráter anti-capitalista e anti-estado do processo curdo em Rojava não pode ser ignorado

É por isso que a resistência curda na Síria é tão invisibilizada na mídia, que prefere destacar os combatentes do governo regional curdo no Iraque ou a disputa entre o regime de Bashar al-Assad e o Daesh — acompanhada com uma lupa por grandes potências mundiais, especialmente pelos Estados Unidos e a Rússia.

O destaque mais comum dado à resistência curda em Rojava é através de fotos das combatentes mulheres, que possuem seu próprio exército e estão emparedando os fanáticos do Daesh na região.

Agora o mundo volta mais uma vez seus olhos para a luta do povo curdo na Síria ao contemplar a criação de um exército formado por LGBTs. Homossexuais estão na linha de frente do combate contra os comensais da barbárie. Sinal de que a esquerda inteira se move neste avanço, especialmente se considerarmos que nos anos 1960 e 1970 os LGBTs não eram respeitados dentro das fileiras dos grupos guerrilheiros que lutavam contra as ditaduras na América Latina.

Há inúmeros relatos de ex-combatentes que demonstram a mentalidade machista e homofóbica dominante na época, mesmo nos círculos mais avançados da esquerda revolucionária. Uma tradição que felizmente já foi superada.

Agora, do outro lado do mundo, os LGBTs e as mulheres estão liderando a construção de um outro tipo de organização social nos cantões de Rojava. Contra poderosos interesses geopolíticos, a resistência curda se soma ao rol de experiências históricas que apontam o caminho para a libertação contra todas as formas de opressão.

Manifesto do Exército de Insurreição e Libertação Queer3

Nós, as Forças Internacionais de Guerrilha do Povo (IRPGF), formalmente anunciamos a criação do Exército de Insurreição e Libertação Queer (TQILA), um subgrupo da IRPGF formado por camaradas LGBT*QI+ e também por outros companheiros que buscam esmagar o binarismo de gênero e avançar na revolução das mulheres ao mesmo tempo em que ampliamos a revolução sexual e de gênero.

Os integrantes do TQILA assistiram horrorizados aos ataques de forças fascistas e extremistas ao redor do mundo contra a população LGBT, que assassinaram incontáveis membros de nossa comunidade, argumentando que somos doentes e antinaturais. As imagens de homossexuais sendo jogados de edifícios e apedrejados até a morte pelo Daesh são cenas que não podemos simplesmente assistir e não fazer nada a respeito. Não é apenas o Daesh que espalha o ódio contra a população LGBT baseado em motivos religiosos. Cristãos conservadores no Ocidente também atacam a comunidade LGBT numa tentativa de silenciar e apagar sua existência. Nós queremos enfatizar que a homofobia e a transfobia não são características do Islã ou de qualquer religião. Na verdade, conhecemos muitos muçulmanos, judeus, cristãos, hindus, budistas etc. que aceitam e acolhem as pessoas em suas singularidades, inclusive LGBTs. Somos solidários a essas pessoas contra o fascismo, a tirania e a opressão. Além disso, criticamos e lutamos contra o pensamento conservador e feudal a respeito da população LGBT na esquerda revolucionária aqui e no mundo inteiro.

Nosso compromisso de luta contra o autoritarismo, o patriarcado, a heteronormatividade opressiva e a LGBTfobia é reforçado pelos avanços revolucionários conquistados pela luta das mulheres curdas. O fato de as aulas de Jineologia4 debaterem construções de gênero e sexualidade dá visibilidade aos avanços da revolução em Rojava e em todo o Curdistão, com as mulheres na linha de frente deste processo revolucionário. É necessário fortalecer estas conquistas enquanto avançamos na luta LGBT, que motivou os camaradas a criarem o TQILA.

Libertação LGBT! Morte ao arco-íris capitalista!

Contra-ataquem! Esses viados matam fascistas!

Comunidades e coletivos militantes horizontais e auto-organizados pela revolução e pelo anarquismo LGBT!

(Texto originalmente publicado pelo portal Vós)


Notas do autor

Neste texto irei me referir ao autoproclamado Estado Islâmico como “Daesh” — a forma como a sigla de “Estado Islâmico no Iraque e na Síria” é pronunciada em árabe. O som também lembra o de outra palavra em árabe, “Dahes”, que significa “aquele que semeia a desordem”. Os fanáticos do Daesh detestam ser chamados assim. Mais um motivo para usar este termo. Além de ser uma maneira de não oferecer a este grupo o status de Estado e muito menos o de representante da religião islâmica.

2 O nome original em inglês é The Queer Insurrection and Liberation Army, formando a sigla TQILA. Como a palavra “queer” é de difícil tradução no contexto da população LGBT brasileira, acabei optando por preservá-la ao me referir ao grupo em português.

3 O manifesto foi originalmente publicado na conta das Forças Revolucionárias Internacionais de Guerrilha do Povo no Twitter (@IRPGF) no dia 24 de julho de 2017. A tradução é livre e de minha própria autoria.

4 Jineologia é uma filosofia de vida formulada pelo povo curdo em Rojava. Conforme explicou Melike Yassar, a expressão significa, em curdo, “mulher” e “vida”.


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