People’s Summit: Com Bernie Sanders construindo uma política contra-hegemônica

Informe dos debates ocorridos na recente cúpula da esquerda estadunidense.

Luciana Genro e Mariana Riscali 6 jul 2017, 22:22

Nos dias 10 e 11 de junho estivemos em Chicago, participando de um dos mais importantes eventos do ano da esquerda norte americana: a People’s Summit ou “Cúpula do Povo”. Este encontro reuniu 5 mil ativistas de todas as regiões dos Estados Unidos, dos mais diversos grupos políticos e movimentos sociais que apoiaram a pré-candidatura de Bernie Sanders. Fomos a convite de Winnie Wong, uma das fundadoras do movimento People for Bernie, um dos principais protagonistas do evento, junto com o Sanders Institute, a National Nurses United (União Nacional das Enfermeiras), movimentos como Our Revolution, People’s Action, veículos alternativos de mídia como The Intercept e The Nation, intelectuais e artistas como Naomi Klein, Danny Glover, Jesse Eisenberg, além de lideranças políticas e de movimentos sociais.

Na primeira conferência, “Do conhecimento à ação”, Naomi Klein, que agora está lançando seu novo livro Não, não é o bastante – Resistindo às políticas de choque de Trump e ganhando o mundo que precisamos, falou sobre os movimentos de esquerda ao redor do mundo que representam alternativas ao sistema neoliberal. Ela citou a expressiva votação de candidaturas da esquerda radical como a de Bernie Sanders nos Estados Unidos, do Podemos na Espanha, de Jeremy Corbyn na Inglaterra e de Jean-Luc Mélenchon na França. “O sucesso do projeto neoliberal nunca foi nos convencer de que suas ideias são boas, mas sim dizer que nossas ideias são impossíveis. Isso está mudando, nós estamos aprendendo que é possível vencer. E se nós podemos vencer, temos que vencer”, disse Naomi.

A jornalista Katrina Vanden Heuvel, editora da importante revista de esquerda The Nation, destacou a necessidade de estes movimentos de esquerda se unirem internacionalmente para articular a resistência ao sistema capitalista e a formulação de uma outra forma de organização social, política e econômica: “O establishment falhou. A velha ordem está morrendo, mas uma nova ordem ainda não nasceu”, disse, usando uma descrição que também ilustra muito bem o que temos vivido no Brasil.

Já Amy Goodman, que apresenta um programa semanal de rádio chamado Democracy Now, falou sobre a importância de se fortalecer uma mídia independente das grandes corporações. Ela comentou ainda, a respeito das lutas ambientais nos Estados Unidos, que têm ganhado destaque graças à cobertura dos veículos alternativos: “O nosso trabalho é ir onde está o silêncio. Quando a luz da mídia brilha na direção certa, podemos fazer uma diferença enorme no mundo. Por isso precisamos de uma imprensa independente, que não seja financiada pelas petroleiras, por fabricantes de armas e por grandes laboratórios”, defendeu.

O ator Danny Glover falou sobre racismo e ancestralidade e se emocionou ao se referir a uma jovem estudante negra que havia relatado sua experiência após ter sido presa pela polícia em um protesto: “O grande problema da democracia nos Estados Unidos permanece sendo a questão racial. Sempre foi assim”, finalizou.

O grande evento da People’s Summit ocorreu num sábado à noite, quando ouvimos Bernie Sanders falar para um auditório gigantesco e entusiasmado. Ele foi introduzido por RoseAnn de Moro, diretora executiva da União Nacional das Enfermeiras, um poderoso sindicato nacional que endossou a candidatura de Bernie desde o início, o que nos Estados Unidos é permitido. Bernie começou reafirmando a necessidade de se construir um governo que represente a maioria do povo e não apenas o 1%. Apontou que as eleições no Reino Unido, na qual o Partido Trabalhista, liderado pelo “radical” Jeremy Corbyn, ganhou 30 novas cadeiras (numa eleição que foi um tiro no pé para os conservadores), mostraram que o movimento por igualdade econômica, social e racial está crescendo em escala global.

Bernie resgatou o fato de que sua campanha apresentou a plataforma mais progressista da história dos Estados Unidos, e que teve financiamento sem o aporte de Wall Street: foram cerca de 2,5 milhões de dólares em contribuições individuais em um valor médio de 27 dólares cada.

Ele ressaltou que embora a pré-candidatura tenha sido derrotada, no campo das ideias as vitórias foram muitas, dando visibilidade e ganhando apoio para pautas que vão desde a questão da igualdade salarial entre homens e mulheres, o racismo e o encarceramento em massa, o fim da cobrança de mensalidades nas universidades públicas, a reforma na lei de imigração, entre tantas outras. Vitórias concretas também foram possíveis, com a eleição de congressistas comprometidos com bandeiras fundamentais. A proposta de elevar o salário mínimo a 15 dólares a hora, contrapondo o valor defendido pelos Democratas de 10,1 dólares a hora, está ampliando seu respaldo no Congresso e sendo vitoriosamente implementada em várias cidades e estados do país.

Na luta para avançar além do Obamacare, garantindo assistência médica para todos como um direito, e não um privilégio, houve uma vitória no estado da Califórnia, que aprovou no Senado uma proposta que avança em um modelo de garantia de acesso universal ao sistema de saúde.

Em um balanço da campanha de 2016, Bernie lembrou que eles venceram as eleições entre as pessoas com menos de 40 anos em todos os estados do país e disse: “Nós somos o futuro deste país”. À plateia, aos gritos de “Bernie, Bernie”, ele respondeu: “Não é Bernie, é você!”. Sobre Trump, Bernie destacou que os Estados Unidos estão sob o governo do “pior e mais perigoso” presidente da história dos país:

Trump é o governo com mais bilionários em sua administração em toda a história do país, defendendo uma política de cortes do orçamento como 800 bilhões de dólares do Medicaid, dexando milhares de americanos sem acesso ao Medicare, mulheres sem acesso a políticas de planejamento familiar, enquanto ao mesmo tempo propõe um corte de impostos de 3 trilhões por um ano aos mais ricos – é um governo dos bilionários.

Bernie faz um balanço de que “Trump não ganhou as eleições, e sim o Partido Democrata é que perdeu”, pois o modelo e a estratégia do Partido Democrata são um fracasso – perderam não somente a Casa Branca, mas também cadeiras no Senado, nos governos estaduais e centenas de cadeiras no legislativo. Neste sentido Bernie afirmou que “o Partido Democrata precisa abrir suas portas aos trabalhadores, aos jovens, lutar por justiça social e econômica. O seu lado não pode ser o lado de Wall Street, das petrolíferas ou das companhias farmacêuticas”.

Hoje o Partido Republicano é um partido de extrema direita, disse Bernie, e os “Democratas do Establishment”, assim como o governo Trump, deixaram para trás dezenas de milhões de pessoas: trabalhadores, aposentados, entre outros.

Uma pergunta do ator Kendrick Sampson arrancou risadas da plateia:

– Você já concorreu tantas vezes e perdeu, porque continuar?

Bernie respondeu:

– Persistência. Não se deve ficar preso ao momento.

No domingo, nos dois debates de encerramento, travou-se uma discussão sobre as perspectivas do movimento que tem em Bernie Sanders a figura unificadora, mas que vai além dele, com laços construídos em torno das pautas que ele representou na campanha. Neste momento, foi possível detectar claramente a existência de setores que são mais ligados estruturalmente ao Partido Democrata, muito embora críticos à sua direção majoritária e mesmo ao governo Obama, e aqueles que são mais independentes, que aceitam usar o partido para disputar eleições, mas também utilizam largamente a tática de apoiar candidatos independentes, permitidos pela legislação. Bernie, inclusive, apresenta-se como senador independente.

Na mesa Our Movement Moment : Beyond neo-liberalism and trumpism, chamou nossa atenção o fato de ser composta exclusivamente por mulheres, sendo apenas o mediador um homem. Mas, diferentemente do Brasil, onde só vemos mesas exclusivas de mulheres quando o debate é em torno desta pauta, a discussão foi sobre os rumos da luta.

Becky Bond, organizadora do movimento #KnockEveryDoor durante a campanha de Bernie, falou sobre o fato de estarem enfrentando um sistema econômico fraudulento, aliado a um sistema político corrupto onde os bilionários compram as eleições. Maria Elena Letona, diretora Executiva do Neighbor to Neighbor, e presidente do People’s Action, falou sobre a centralidade das políticas de raça, gênero e classe e da necessidade de uma construção coletiva com os imigrantes. Ela também defendeu que o movimento não pode estar “amarrado” ao Partido Democrata.

Linda Sarsour, membro da Arab American Association e da Women’s March, falou sobre a importância da grandiosa Marcha das Mulheres que ocorreu durante a posse de Trump: “Traduzir a frustração em ação foi como nós conseguimos fazer as pessoas deixarem suas casas e marcharem”. Ela ressaltou que foi um movimento que não apenas reuniu mulheres, mas foi dirigido por mulheres, e que seguiu o “modelo Bernie”: a maior parte do financiamento foi individual, ou com apoio de organizações da sociedade civil. Suas pautas foram não somente pelos direitos reprodutivos ou por igualdade salarial, mas também uma plataforma interseccional que unificou mulheres negras e LGBTs. Para Linda, a marcha foi o início de um novo tipo de resistência: autossustentável, interseccional e intergeracional, organizando e formando uma direção de mulheres com pessoas que ainda não se conheciam entre si. “Foi assim que ampliamos o movimento e realizamos o maior protesto de um único dia na história dos Estados Unidos – e ele foi liderado por mulheres!”, disse.

Sobre os rumos do movimento Linda afirmou que “precisamos parar de balizar o que estamos fazendo pelo que faz o Partido Democrata. Nós somos parte de uma revolução porque não estamos tentando manter o status quo, mas porque estamos tentando transformá-lo”.

Nossa agenda em Chicago também incluiu conversas com lideranças do DSA – Democratic Socialists of America –, que se apresentam como uma organização política e ativista que atua através das mais variadas táticas, desde a tática eleitoral até a ação direta, na luta por reformas que empoderem a classe trabalhadora. Eles estiveram presentes no Acampamento Internacional do Juntos! deste ano, buscando um maior contato com a esquerda brasileira e, em especial, com o MES.

Estivemos com um de seus dirigentes nacionais, Joseph Schwartz, que falou em nome do DSA em um dos painéis da Summit, no qual nós também tivemos a oportunidade de fazer uma saudação em nome do PSOL. Schwartz nos contou sobre os debates dentro do DSA, pois são um grupo antigo na esquerda norte-americana, mas que cresceu muito na juventude, fruto do apoio a Bernie e seu envolvimento em todo o processo de construção do movimento em torno dele. Uma enorme quantidade de jovens veio a militar no DSA nos últimos meses, mais que triplicando a quantidade de ativistas nas suas fileiras. Um dos debates que eles travam, e que é também um debate que permeou indiretamente toda a People’s Summit, é sobre a relação com o Partido Democrata, que todos sabem ser um partido do establishment, mas há diferenças sobre como atuar em relação a ele. A visão mais à esquerda entende que há necessidade de atuar de forma tática no partido, pois o sistema eleitoral americano dificulta bastante o surgimento de um novo partido com força real, mas que é preciso também lançar candidaturas independentes e principalmente estar nos movimento sociais. O fenômeno Bernie Sanders confirmou a importância de atuar eleitoralmente e o grande desafio é dar continuidade a este processo, construindo um alternativa política anticapitalista no coração do capitalismo mundial.

Tivemos também a oportunidade de conversar com um grupo destes jovens, em um happy hour organizado por uma das lideranças de Chicago, Micah Uetricht, que junto com Bhaskar Sunkara também é editor da Revista Jacobin, uma das mais importantes da esquerda norte-americana. Todos muito interessados em entender melhor os processos vividos pela esquerda brasileira e latino-americana, da formação do PSOL às lutas contra o governo Temer. Pensar a organização da esquerda nos Estados Unidos em um momento em que a resistência só cresce é um dos principais desafios para o DSA, que se prepara para realizar sua Conferência Nacional no próximo mês de agosto.

Nesta noite, tivemos a presença também do vereador de Chicago Carlos Ramirez-Rosa. Ele foi um dos oradores no painel final da Summit, é membro do DSA e nos deu a enorme alegria de comparecer ao nosso bate papo. Ele é filho de imigrantes, foi eleito com 25 anos e é o atual vereador mais jovem e o primeiro vereador latino assumidamente gay de Chicago. Sua campanha foi feita com o movimento de voluntários do movimento #knockeverydoor. Isto é, batendo de porta em porta para dialogar com o povo e convencê-los a votar. Seu mandato é uma expressão da força da luta contra as deportações de imigrantes, que já vinham acontecendo durante o governo Obama, e que estão crescendo terrivelmente sob Trump.

O final da fala de Ramirez no nosso encontro resumiu o espírito que vivenciamos nestes dias de contato com o melhor da esquerda norte-americana: “Sabemos que a questão posta é socialismo ou barbárie, e escolhemos o primeiro!”.

O processo de construção de uma alternativa anticapitalista nos Estados Unidos se desenvolveu enormemente com a candidatura de Bernie Sanders, e os setores socialistas que souberem navegar nesta maré – mantendo sua identidade, mas empalmando com a vanguarda lutadora que surgiu desde o movimento Occupy Wall Street e que fez da candidatura de Bernie um canal para expressar suas reivindicações – crescerão enormemente, como foi o caso do DSA. A estrada é longa, mas quando falamos em construir uma alternativa na maior potência capitalista do planeta estamos falando de caminhos decisivos para os socialistas do mundo inteiro.


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Pedro Micussi