Uma contribuição ao debate sobre os tempos difíceis

Sobre as relações entre crise capitalista e psicologia.

Gilvandro Antunes 3 jul 2017, 23:13

O texto em questão, e que a militância em geral poderá lê-lo de forma crítica, não tem a pretensão de ser um orientador político-partidário ou de estabelecer novas táticas diante da conjuntura que se apresenta. Entretanto, não se trata, por suposto, de um texto despretensioso, caso o fosse, não haveria por que escrevê-lo em uma manhã de domingo, uma vez que o descanso seria o mais indicado para tal dia. A pretensão que será exposta é de contribuir com conceitos ainda pouco usuais em nossas contribuições teóricas internas, colocando diante da vasta teoria marxista que nos acompanha elementos conceituais como “anomia social”, “cinismo”, “supereu”, “eu” “Id”, “sintoma” e “mal-estar”. Note-se aqui que além da análise político-econômico-sociológica entra um forte componente da psicologia social, mais precisamente com grande influência freudiana.

Dito isso, começaremos pela análise da conturbada conjuntura que se apresenta diante de nós.

A crise econômica

Quando falamos em crise econômica mundial, nos remetemos imediatamente ao resultado da crise de acumulação capitalista em sua forma neoliberal, em que a desregulamentação e a financeirização do capital tornaram-se a forma dominante de valorização do mesmo. Ou seja, somos a geração que pode ver in loco o capitalismo em sua fase superior como assinalara Lênin, quando diz:

desse modo, o século XX marca o ponto de partida de viragem em que o antigo capitalismo deu lugar ao novo, em que o domínio do capital financeiro substituiu o domínio do capital em geral 1.

Mais adiante, Lênin caracteriza o imperialismo como o resultado direto do capitalismo monopolista organizado em cartéis, trustes, em aliança com os grandes bancos. “Se tivéssemos de definir o imperialismo da forma mais breve possível, diríamos que ele é a fase monopolista do capitalismo”2. Em resumo, somos testemunhas não só da forma mais madura do capitalismo monopolista, como também de sua decadência (o que não quer dizer do seu fim). Somos testemunhas do resultado de 120 anos da fase superior do capitalismo. Se alguém questionasse Lênin à época e se pudéssemos voltar no tempo para sair em sua defesa, teríamos a narrativa completa desde a fusão do capital bancário e industrial até a financeirização extraordinária que se estabeleceu. Assim teríamos a narrativa completa da crise.

O capitalismo caracteriza-se por sua necessidade contínua de quebrar barreiras, como afirma David Harvey em O Enigma do Capital. Essas barreiras são: 1- de ordem territorial, o capital tem que se movimentar livremente para além das fronteiras nacionais e regionais, precisa continuamente mundializar-se; 2- de ordem trabalhista: o capital para se valorizar precisa precarizar o trabalho, aumentar a taxa de mais valia; 3- de ordem tecnológica, o capital para se valorizar precisa substituir o trabalho vivo por trabalho morto; 3- de ordem temporal, o capital precisa diminuir o tempo entre produção, circulação e consumo. Assim, precisa investir em tecnologia logística (transporte) e tecnologia creditícia (cartões e compras pela internet); 3- de ordem ecológica, o capital precisa obter legislações coniventes com seus interesses para poder consumir os recursos naturais para além da possibilidade de renovação desses recursos. Desse modo, a quebra de barreiras essenciais ao desenvolvimento-sobrevivência do capitalismo é também o que engendra e aprofunda sua própria crise. Nesse caso, a frase que afirma que “a diferença entre o remédio e o veneno é a dose” encaixa-se perfeitamente ao sistema capitalista. Harvey aqui, nos esclarece com maior precisão de detalhes:

(…) a circulação do capital implica também movimento espacial. O dinheiro é reunido em alguma região e levado para um lugar especial para utilizar os recursos de trabalho que vem de outro lugar. Deposito o dinheiro em uma conta poupança no meu banco local em Baltimore, e o dinheiro acaba nas mãos de um empresário que construiu uma fábrica de meias em Dongguan, na China, e contrata trabalhadores migrantes do interior (principalmente jovens mulheres). Os meios de produção têm de ser trazidos de mais um lugar para produzir uma mercadoria que tem de ser lavada a um mercado em outro lugar. Atritos e barreiras a esse movimento espacial tomam tempo para ser negociados e diminuem a circulação. Ao longo da história do capitalismo muito esforço tem sido posto, portanto, na redução do atrito de distância e dos obstáculos à circulação. Inovação nos transportes e comunicação tem sido cruciais. Aumentar a abertura das fronteiras do Estado ao comércio e finanças, assinar acordos de livre comércio internacionais e garantir um bom enquadramento jurídico para o comércio internacional também são vistos como essenciais a longo prazo. (…) Ao longo da história do capitalismo tem sido uma tendência para a redução de barreiras espaciais e a aceleração3.

A crise imobiliária das hipotecas estadunidenses de 2007 é a pura essência do movimento de um capital sem barreiras, em que o simples ato de comprar uma casa por um indivíduo esconde por trás de si um movimento frenético de circulação de um capital sem barreiras em que o que nutre sua valorização é o mesmo que pode levá-la à inanição. Como disse Harvey: “As crises financeiras servem para racionalizar as irracionalidades do capitalismo”4. Assim, vivemos o estrangulamento de um tipo de capitalismo iniciado com a crise do petróleo e com a queda da taxa de lucro devido ao crescimento da massa salarial dentro do capital geral na Europa pós-segunda guerra. Ou seja, a crise do capitalismo em sua fase neoliberal.

Ainda que falemos em financeirização, capital fictício (como aborda François Chesnais, por exemplo), etc., a essência do capitalismo segue sendo a produção de mercadorias, afinal de contas é para isso que bilhões de pessoas se acordam para trabalhar quase todos os dias para consumir bilhões de mercadorias. Além disso, é daí, e só daí, que vem a mais-valia, da produção, circulação e venda de mercadorias. É aí que se dá o movimento completo da mais-valia. No mundo contemporâneo, altamente consumista é preciso produzir cada vez mais, produzir em grande escala. Para isso, é preciso, para abastecer os mais diversos mercados consumidores, baratear os custos da produção. Ocorre que para tal barateamento é preciso aumentar a taxa de investimento na composição geral do capital, é preciso investir em bens de capital, em transporte, em comunicação, em pesquisa. Isso requer vultosas somas de capital, o que, por suposto, o capitalista não tem tudo em suas mãos. Assim, parte ou todo o patrimônio da empresa vira ações. Ou seja, financeiriza-se, o que, por sua vez, vira juros às instituições que se destinam a tal finalidade. Porém, do outro lado há o trabalhador que produz as mercadorias. Ora, se o capitalista não pode parar de investir, não podendo diminuir a taxa de investimento, é preciso baratear o capital variável. Assim, dentro da produção do valor de troca aumenta a taxa de mais-valia. O deslocamento de empresas para o sudeste asiático, América Latina, China e África é parte disso. Hoje, fala-se na necessidade de se fazer de todas as fábricas localizadas no hemisfério sul um grande modelo chinês de produção. Por parte das instituições financeiras, estas ganham com os juros cobrados por empréstimos à produção e do outro lado por empréstimos cobrados para o consumo e financiamento de déficits. Neste sentido, Celso Furtado explica que

(…) o mais importante a considerar é que a elevação da taxa de juros significa, em última instância, transferir para as classes proprietárias uma parcela maior da renda nacional, ou seja, criar novo mecanismo de concentração de renda5.

De modo esclarecedor, Furtado vê a política de juros como transferência de renda, voltada à concentração da mesma. Em termos simples, quem paga os juros é o trabalhador. Esse é o movimento circular da crise em que as medidas que são tomadas para sair de uma crise servirão para analisarmos os motivos da próxima.

Para além da esfera econômica da crise

A enorme crise política vivida na contemporaneidade está, por óbvio, ligada à crise econômica. As guerras no Oriente Médio nada mais são que repartição dos territórios em interesses imperialistas. Chovendo no molhado, agora vamos partir para as origens e consequências disso. Durante algum tempo tivemos a dificuldade de ver e, portanto caracterizar, a onda conservadora que muitos falavam pelos mais diversos motivos que não cabe aqui esmiuçar. Sim, há de fato uma onda conservadora mundial. Dentro da crise econômica, desenvolveu-se uma crise política e dentro dessa crise política a saída pela direita tem tido mais ressonância. Bem, toda a crise gera debates sobre alternativas. Os primeiros debates foram pela esquerda, culminando em grandes mobilizações antineoliberais, sobretudo na América Latina. Podemos chamar de o primeiro estágio de alternativas à crise neoliberal. Esse primeiro estágio, por seu turno, teve como expressão a vitória de governos de esquerda e centro-esquerda no continente latino-americano. Já no esgotamento dos governos latino-americanos de esquerda e centro-esquerda e com o aprofundamento da crise neoliberal que ganha contornos catastróficos com a crise hipotecária estadunidense e com a crise dos países do sul da Europa, cresce um importante movimento de alternativa de poder com a vitória do Syriza na Grécia, do Podemos na Espanha e a campanha de massas de Mélenchon na França. Na verdade, Syriza e Podemos foram a expressão eleitoral de um riquíssimo movimento de esquerda que sacudiu a Europa e que segue mesmo com a capitulação na Grécia e com a ofensiva da direita e extrema-direita, o exemplo francês. Esta pode ser chamada de segundo estágio. Ocorre que no mundo atual lutas por emancipação como as da primavera feminista andam em paralelo às lutas contra a retirada de direitos. As lutas ofensivas e defensivas andam juntas.

Uma conjuntura de crise é a crise da “conservação”. Abre-se um período de forte questionamento aos que querem conservar o mundo à mercê da manutenção de seus benefícios. Sendo assim, abre-se a possibilidade para que milhões de indivíduos ouçam àqueles que querem mudanças, àqueles que questionam os conservadores. Nesse sentido, extrema direita e extrema esquerda ganham ressonância. Isso porque há um forte questionamento à democracia formal de hoje. Na verdade, é o maior questionamento à democracia desde o entre guerras. Alguém poderia dizer: e os golpes militares de 60-70? Bem, isso era guerra fria, ou seja, vinha de cima para baixo. Hoje o questionamento vem de baixo para cima, como no entre guerras (é claro que quando falamos em de cima para baixo e de baixo para cima estamos falando em dinâmica e não em pura essência, pois se trata de influências mútuas e dialéticas). Mas o caso é que a direita tem encontrado mais ressonância nos últimos anos. Mas por quê? Primeiro é que o discurso de direita ganha um forte apoio dos grandes meios de comunicação de massas, e isso não é qualquer apoio. Segundo, porque vivemos um forte momento de incertezas, um forte período de medo. Sabe-se que o medo pede segurança e não liberdade. A direita amplifica o discurso do medo e oferece segurança, ao passo que a esquerda tenta dissuadir a população do medo e oferece liberdade. Mas convenhamos, em um mundo atolado em guerras, crise, atendados terroristas e crescente violência urbana (tudo isso com um forte componente de intolerância) faz o medo ser mais forte que a esperança. É muito difícil competir com o instinto natural de autopreservação da vida. O discurso de direita apela para este instinto.

Em entrevista ao blog do jornalista mexicano Alberto Buitre, o médico e neurobiólogo, Gernot Erns, falou sobre o impacto neurocerebral do medo:

Ernst, dime, ¿por qué tiene tanto éxito la derecha hoy en día?

Los medios de información han cambiado, particularmente internet. Pero también la forma de educación, de movimiento, esto provoca que nuestra mente cambie, que tengamos dificultades de concentrarnos y de aceptar o entender argumentos. Esto es explotado por la derecha porque se especializa por utilizar el miedo. Saben lo que están haciendo. Están utilizando el miedo social.

¿Pero por qué funciona tanto (o medo)?

El miedo, la confusión. Es un hecho que, cuando eres confundido, tu cerebro no logra argumentar. El cerebro es fácil de convencer con imágenes, con palabras simples. Por ejemplo, las grandes tiendas hacen grandes laberintos donde las personas no encuentren la salida. Es una estrategia. Porque cuando eres confundido no tienes fuerza mental para no comprar cosas. Es una técnica; es fácil confundir a la gente. Es la estrategia: aumentar el miedo, aumentar la confusión y así saben que la gente va a apuntar hacia la derecha. Es una estrategia clásica fascista6.

A crescente crise econômica e política incide diretamente no aumento da exclusão social, da violência e da corrupção. Isso, por seu lado, faz com que uma crescente parcela da população jogue no colo da democracia representativa meramente formal a culpa pelo quadro atual. Essa democracia é vista como corrupta e ineficiente. Não é à toa que ela é questionada pela esquerda e pela direita. Os movimentos como Occupy Wall Street, Podemos, Jornadas de Junho, etc. questionam o formalismo excludente da atual democracia burguesa, já os movimentos de direita antiliberais, neonazistas e fascistas questionam a putrefação dos valores devido à frouxidão da democracia. A vantagem nisso para a direita é o forte componente do medo.

Medo, mal-estar, anomia social, seus sintomas e a crise da modernidade: recorrendo a Freud

A princípio, esse diagnóstico hegeliano parece convergir em larga medida com descrições sociológicas que caracterizam o risco maior da modernidade como sendo a tendência à generalização de situações de anomia e indeterminação em razão da consciência da impossibilidade de garantir a substanciabilidade de formas tradicionais de vida. Nesse sentido, devemos entender por anomia ‘os efeitos de um enfraquecimento das normas e das convenções tácitas reguladoras de expectativas mútuas que conduz a uma degradação dos vínculos sociais7.

Ao abrirmos com a citação de Safatle, caracterizamos que o atual quadro de anomia social advém não só da crise econômica, mas também da crise de representatividade da modernidade. O sistema político mais emblemático da modernidade é a democracia burguesa representativa. A crise da modernidade e, portanto, também crise da democracia burguesa, são a causa de um forte mal-estar social, pois diferentemente da passagem da tradição arcaica para o moderno, a passagem do moderno para o pós-moderno não indica para onde vamos. Ainda que de forma enganosa, a ruptura que o moderno fez com o tradicional apontava para uma caminhada rumo ao progresso, para a vitória da razão e da ciência sobre o místico e o tradicional. Parte foi feito, é evidente, mas muito não. Não é à toa que de forma dualista, desigual e combinada, o moderno e o arcaico coexistem. Isso por si só já traz consigo um forte componente de anomia. Ocorre que hoje, na passagem pós-moderna, o pós-moderno coexiste com o arcaico, também de forma desigual e combinada. Dentro da França temos a sociedade capitalista pós-moderna e a sociedade arcaico-capitalista tradicional islâmica. Isso gera, inevitavelmente, anomia social permanente e não mais anomia social anacrônica periódica como nos indicava Émile Durkheim. O sociólogo José de Souza Martins, ao falar da anomia social brasileira, nos empresta mais luz ao que nos referimos:

(…) a anomia brasileira se caracteriza pelo desencontro de temporalidades que se cristalizaram em determinadas situações sociais e em determinados grupos sociais residuais ao longo da história8.

Mais adiante ele segue:

(…) estamos hoje anomicamente polarizados entre a busca do futuro no passado e a busca do futuro na mera taxa de lucro de um presente sem futuro9.

Quando falamos aqui em anomia social falamos em desencontro de temporalidades. O Estado Islâmico é fruto das consequências da pós-modernidade ou da modernidade em crise, ao mesmo tempo em que é desencontro temporal. Em outra obra o mesmo sociólogo segue:

(…) o anômalo é também constitutivo do processo histórico no marco do desenvolvimento desigual que define a dinâmica da sociedade contemporânea11.

O capitalismo precisa se desenvolver de forma desigual; isso, por sua vez, é o componente combinado. Assim, ele via de regra é anômico por natureza, pois ser desigual é ser destemporal. Não se pode extrair diamantes na África sem ser desigual, sem submeter uma dada sociedade à destemporalidade. Entretanto, essa mesma sociedade destemporal reage da forma mais violenta possível. O Estado Islâmico trata-se dessa destemporalidade anômica. Em que pese sua funcionalidade ao próprio capitalismo desenvolvido, através da função do medo dentro do corpo social. Ele é anomia, uma vez que dentro da pós ou da modernidade em crise é uma tentativa de volta ao passado, ou mais precisamente, a volta a um passado que nunca existiu.

Estamos diante da sociedade do mal-estar gerado pela indefinição. Em um quadro assim, fica difícil a anomia ter início, meio e fim. O psicanalista Christian Dunker nos explica este mal-estar anômico:

(…) um estado no qual a anomia torna-se a regra e o efeito necessário da produção do mal-estar e sua gestão, o motor fundamental desse novo estado do capital. Seria, portanto, desejável que levássemos em conta a segunda metadiagnóstica da modernidade e sua tese de que sofremos com o déficit de experiências produtivas de indeterminação, com suas narrativas conexas, de dissolução da unidade do espírito e de alienação da alma11.

Dessa maneira, temos aqui um conjunto de elementos que levam à anomia que, por sua parte, é geradora de um permanente mal-estar, mais precisamente a uma patologia do social. Crise econômica e política, crise da modernidade, medo e indefinição, anomia e mal-estar, busca por segurança e liberdade relegada. Assim avança a direita antiliberal.

Sigmund Freud vê na vida em sociedade (ou vida na cultura dependendo da tradução) uma inevitável tendência ao mal-estar. Em seu célebre livro, O Mal-Estar na Civilização, Freud se pergunta do porquê de tal mal-estar. Para ele a resposta acerca do mal-estar social tem que iniciar com uma pergunta: o que buscam os homens? Nesse sentido, o pai da psicanálise vê duas respostas: a busca de um sentido para a vida humana e a busca por felicidade. Sem os dois o que há é um sentimento de desamparo e o desamparo é um forte causador de mal-estar. Em relação à explicação do sentido da vida, Freud vê que esta resposta é extremamente difícil, pois não é à toa que milhares de anos desde a antiguidade até a contemporaneidade as explicações mais satisfatórias seguem sendo as religiosas.

Já sabemos que a apavorante impressão do desamparo infantil despertou a necessidade de proteção – proteção através do amor -, que é satisfeita pelo pai; a percepção da continuidade desse desamparo ao longo de toda a vida foi a causa do homem se aferrar à existência de um outro pai – só que agora mais poderoso (Deus)12.

Mais adiante Freud prossegue:

A religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade e tal como a da criança, teria sua origem no complexo de Édipo, na relação com o pai13.

O desamparo é tamanho frente a uma falta de explicação para o sentido da vida que a humanidade “cria” sua neurose obsessiva universal e a institucionaliza fortemente.

Mas Freud vê que a segunda resposta, qual seja a busca da felicidade tem resposta mais fácil: o Princípio do Prazer, ou seja, a máxima satisfação do prazer e nenhuma sensação de desprazer. Para Freud, o estado de natureza pode garantir a satisfação instintual dos seres humanos, a satisfação sexual irrestrita e a satisfação agressiva irrestrita também. Ocorre que tal satisfação só lhe poderá ser realizada se este fosse o mais forte indivíduo da horda primordial humana, como dissera Charles Darwin na obra A Origem do Homem e a Seleção Sexual. Assim, não ser o mais forte da horda traz permanente insegurança aos demais e até ao mais forte que pode perder seu posto de forma violenta a qualquer hora. Desse modo, vê-se na civilização a troca da satisfação instintual por segurança. Na sociedade civilizada, mais segura, onde a vontade do indivíduo mais forte não prevalece sempre, é preciso ter-se um conjunto de normas que regem a comunidade civilizada. O medo do sofrimento do corpo, o medo das intempéries da natureza e o medo dos outros seres humanos nos levaram, de acordo com Freud, a abrir mão do princípio do prazer em nome da segurança. Ou seja, a humanidade buscou a felicidade na segurança. Influenciado por Thomas Hobbes, Freud vê no contrato social a viabilidade para a civilização. Todavia, como já referimos é um contrato restritivo dos desejos (talvez a ética protestante seja a forma mais emblemática da civilização construída a partir da renúncia e do recalque instintual).

O poder da ascese religiosa, além disso, punha à sua disposição trabalhadores sóbrios, conscienciosos, extraordinariamente eficientes e aferrados ao trabalho como se fosse finalidade de sua vida, querida por deus14.

A sociedade não progredirá com liberdades instintuais, mas com disciplina. Disciplina da agressividade através do monopólio da força pelo Estado, disciplina sexual através da religião. No entanto, a abdicação ao prazer sexual e agressivo traz, inevitavelmente, a infelicidade. Nesse sentido, Freud disse:

(…) se a cultura impõe tais sacrifícios, não apenas à sexualidade, mas também ao pendor agressivo do homem, compreendemos melhor porque é tão difícil de ser feliz nela. (…) O homem primitivo trocou um tanto de liberdade por um tanto de segurança15.

A liberdade instintual não garantia a superação do medo da insegurança, ao passo que a segurança não trazia a felicidade proporcionada pela liberdade instintual. Freud não traz aqui uma descrição histórica da construção social, mas uma construção psicológica da sociedade. Como a civilização foi psicologicamente construída. Mas de onde vem o mal-estar social? Advém de que a civilização foi feita para excluir o medo e garantir a felicidade não só do mais forte, ocorre que a vida cultural traz renúncia ao princípio do prazer, onde o instinto é recalcado ao inconsciente e pode apresentar, quando aflorado, forte componente neurótico individual ao voltar de forma distorcia ao consciente. Vamos a Freud novamente:

(…) em termos bem gerais, nossa civilização está baseada na repressão dos instintos. Cada indivíduo renunciou a um quê do que possuía, à plenitude de seu poder, às tendências agressivas e vingadoras de sua personalidade; dessas contribuições originou-se o patrimônio cultural de bens materiais e ideais16.

Bem, o mal-estar pela renúncia nada mais é que o mal-estar de que a vida em sociedade poderia dar-nos felicidade, mas não deu. Pois ela mantém nossas incertezas e nossa insegurança, além de nos controlar, afinal, a vida em sociedade é uma vida em controle permanente. Acontece que um mal-estar iniciado nos primórdios da vida cultural, portanto psíquico, se agrava em determinados momentos da conjuntura política e econômica, nos momentos de medo, de indecisão, causando assim, a anomia. Os seres humanos na condição de vida em anomia agem de forma agressiva, buscam satisfação sexual não consentida (estupro, por exemplo) se apropriam do que não é seu sem qualquer motivação revolucionária ou de sobrevivência.

Em 1932, a pedido da Liga das Nações, um punhado de homens com notória contribuição universal à humanidade foi convidado a convidar outros indivíduos, também notórios, para debater os assuntos de maior relevância no período. Albert Einstein, por sua vez, escolheu como tema a guerra. Seu escolhido para debater foi Sigmund Freud. No texto intitulado Por que a Guerra? Einstein pergunta a Freud como é possível livrar os homens da fatalidade da guerra. Na esteira das perguntas de Einstein, Freud oferece-lhe sua teoria dos instintos:

(…) o senhor me permite, neste ponto, apresentar-lhe parcialmente a teoria dos instintos a que nós chegamos após muitos tenteios e oscilações? Nós supomos que os instintos humanos são de dois tipos apenas: os que tendem a conservar e unir – nós os chamamos de eróticos, exatamente no sentido de Eros, no Banquete de Platão – e os que procuram destruir e matar, que reunimos sob o nome e instinto de agressão ou de destruição17.

Dessa maneira, Freud não vê num horizonte sequer distante a possibilidade de os homens não praticarem a guerra como forma de exercer o direito via agressividade, pois como fala “é um erro de cálculo não considerar que originalmente o direito era força bruta e que ainda hoje não pode prescindir do amparo da força” (Idem, pág. 426). Assim, pode-se concluir que em uma situação de anomia permanente (anomia como regra e não mais como exceção) a agressividade, via o instrumento da guerra, também é a regra e não pode ser cessada a partir de resoluções da ONU ou protesto muito bem intencionados, ainda que ingênuos, de paz.

Quer nos parecer que jamais um acontecimento destruiu tantos bens preciosos da humanidade, jamais confundiu tantas inteligências das mais lúcidas e degradou tão radicalmente o que era elevado18.

Neste texto de 1915, em plena 1ª Guerra Mundial, Freud vê que a guerra dissolve as mentes mais elevadas, uma vez que homens e mulheres tão radicalmente pacifistas defendem a aniquilação do outro tão facilmente. Este é o componente da guerra, pois ao dissolver os parâmetros da cultura, aflora os instintos outrora recalcados pelos valores morais ou proibidos pelo Estado. Mais adiante o psicanalista segue:

(…) dizíamos, é verdade, que as guerras não podem acabar enquanto os povos viverem em condições tão diferentes, enquanto divergirem de tal modo no valor que atribuem à vida individual, e enquanto os ódios que os dividem representem forças psíquicas tão intensas19.

E é exatamente o que leva ao convencimento e à aprovação da guerra por parte da população, até das mentes mais elevadas. É do ódio psíquico ao diferente, em épocas de crise que a guerra é consentida, não por todos, mas por parcelas significativas dos indivíduos. Freud afirma que o Estado, durante o período de guerra, permite ao cidadão fazer o que ele (Estado) já faz em tempos de paz, pois o Estado não proíbe atos de injustiça ao cidadão porque quer aboli-la, mas porque quer o seu monopólio. Ocorre que em tempos de guerras e/ou de anomia o Estado não consegue, por descrença em suas instituições, reivindicar o monopólio da crueldade.

Mas o que nos impede cotidianamente de praticarmos nossas satisfações instintuais? É fundamental em Freud os conceitos de Id, Eu e Supereu. A grosso modo, é no Id que residem os instintos, este age sob o puro princípio do prazer, não é consciente. O Eu, age sob o princípio da realidade, ele busca o prazer, mas já os media com a situações externas a ele, ele varia entre o consciente e o inconsciente. Já o Supereu, que é o que nos interessa mais por hora, age sob o princípio do dever ser. Ele é o ideal do eu e responde às expectativas coletivas. No livro Totem e Tabu, Freud analisa que o Supereu nasce com o sentimento de culpa, às vezes ele é o próprio sentimento de culpa. O sentimento de culpa freudiano vem desde a horda primordial darwiniana, onde o macho mais velho e mais forte, geralmente o pai dos demais machos tinha acesso ilimitado e possuía todas as fêmeas do bando (primeiro requisito da exogamia). Os machos menores, geralmente os filhos, desejavam igualmente as fêmeas, a começar pela fêmea principal, a mãe, não podendo ter acesso, desejavam a morte do pai, um dia os irmãos consumaram a morte do pai através do parricídio, devorando-o após a morte. Tudo isso para demonstrarmos que o sentimento de culpa vem do arrependimento do sentimento do Complexo de Édipo, pois a relação do menino com o pai é ambivalente, uma vez que deseja a mãe como objeto sexual ao mesmo tempo que admira o pai. Matar ou desejar a morte de quem se admira sempre nos traz sentimento de culpa. O desenvolvimento humano do animismo ao totemismo e do totemismo à religião está intimamente ligado ao sentimento de culpa exercido pelo parricídio. Quatro obras foram fundamentais para que Freud tivesse desenvolvido a teoria do Complexo de Édipo: Édipo Rei (o amor objetal pela mãe e o assassinato do pai), de Sófocles, Hamlet (ódio ao pai) de Shakespeare, Os Irmãos Karamazov (o assassinato do pai e o estabelecimento da fátria), de Dostoiévski e O Ramo de Ouro (onde é investigado a universalidade do tabu do incesto e sua ambivalência), de James Frazer. Desse modo, a morte do pai traz um forte sentimento de culpa entre os filhos. Isso, por seu turno, gera a primeira inibição moral da cultura, a proibição do incesto. O desejo pela mãe deve ser recalcado e tido como tabu até desaparecer no inconsciente. Esse sentimento de culpa gera a moral, a religião, a repressão instintual sexual e agressiva tão necessária à civilização.

Hoje, o Supereu é a família, a igreja, a escola e a ideologia de Estado, nasce através da figura do pai e vai até a internalização das leis positivadas dos Estados e costumes morais da sociedade. Na teoria marxista, seria o equivalente à superestrutura. Os seres humanos são seguem as leis não só pelo medo, mas também pelo dever ser, para poder estar à altura das expectativas morais coletivas, para poder ser o que a família, a igreja, o Estado, etc. entendem como ideal de um ser humano. Para que possamos obter mais elementos para a compreensão do papel do Supereu em Freud devemos ir a Safatle, o qual reconhece “um dos principais conceitos criados por Freud para a análise de fatos sociais foi o de Supereu”20.

A anomia social, psicologicamente, assim, é o desequilíbrio entre os desejos do id, agora não mais recalcados ou só parcialmente recalcados, e o dever ser do Supereu. A linha tão evidente que os separa agora já é tênue.

Violência como expressão da crise e situações de anômia: a sociedade cínica

Tratando do discurso do establishment político liberal, Safatle aponta:

(…) a retórica das democracias liberais continuaria aceita exatamente por não exigir convicção absoluta dos sujeitos; até porque o problema da justificação foi desvinculado do problema da verdade21.

Com isso, aqui está demostrado o “valor” cínico que opera a sociedade contemporânea ocidental. Para afirmar algo ou desejar algo não é necessário acreditar. Como já nos indicou o filósofo Slavoj Zizek quando aponta para a sociedade que se reúne todos os anos para o natal sem acreditar em Cristo, a sociedade descafeinada, cínica.

Como dissemos anteriormente, a sociedade pós-moderna não tem claro para onde vai, pois ela já tem a razão, a ciência, o belo e a civilidade. Não obstante, não tem a felicidade. Para isso, a pós-modernidade só pode oferecer mais consumo. Felicidade diretamente ligada ao fetiche da mercadoria. Mercadoria, por sua vez, é valor de troca e valor de uso, ela deixa de ser mercadoria no consumo. Felicidade dá-se na troca (dinheiro por mercadoria) e no uso, mas deixa de ser felicidade também após o ato de consumo e como a mercadoria tem que estar ligada ao infinito círculo de produção e destruição. Para manter a busca de sua felicidade através do consumo, não mais das metas sociais coletivas, a sociedade contemporânea busca soluções cínicas para problemas sociais complexos. Diante do problema dos refugiados, busca-se construir muros, diante da violência urbana se constrói condomínios, diante do sofrimento advindo do mal-estar social se medica o que na verdade deveríamos politizar (trecho baseado na tese da Vida em Condomínio de Chirstian Dunker). Mas alguém acredita que isto gera solução, ou é apenas um ato cínico de agir para que a sociedade do hiperconsumo não faça uma reflexão crítica que, ida a fundo, questionaria o próprio modo consumista de ser? Para Marx, “a produção é, pois, imediatamente consumo; o consumo é, imediatamente produção”22. Nesse círculo, diríamos também que produção e consumo também são imediatamente reprodução. Reprodução de uma superestrutura. Quando dissemos que há uma tendência de que parte do mundo se torne uma grande fábrica chinesa é a reprodução de uma produção para um dado consumo, o consumo na sociedade pós-moderna. Além disso, há o consumo meramente financeiro que “produz” juros e na ilusão de se ter acesso a essa “produção” de juros são consumidos bilhões de dólares todos os dias. Consumidos na forma de transferência de riqueza dos pequenos para os grandes especuladores e sobretudo destruídos na forma de capital pela crise financeira. Para que essa sociedade seja a sociedade do hiperconsumo ela precisa concentrar riqueza. Uma concentração sem precedentes quase inacreditável. Em uma pesquisa a ONG OXFAM divulgou o seguinte dado:

Los nuevos datos de Oxfam son demoledores. Tan sólo 8 personas (8 hombres en realidad) poseen ya la misma riqueza que 3.600 millones de personas, la mitad más pobre de la humanidad. La súper concentración de riqueza sigue imparable. El crecimiento económico tan sólo está beneficiando a los que más tienen. El resto, la gran mayoría de ciudadanos de todo el mundo y especialmente los sectores más pobres, se están quedando al margen de la reactivación de la economia23.

Sim! Oito pessoas detêm a riqueza de 3,6 bilhões. Em um mundo de enorme concentração de renda não é possível não haver anomia advinda da destemporalidade. Dessa maneira, não é possível não haver violência em grande escala. Soma-se a isso a indefinição de para onde vamos, pois uma sociedade com mais capitalismo terá cada vez mais crises. Já o socialismo não é uma racionalidade partilhada nem por 0,1% da população. Em verdade, não há uma ideologia teleológica que signifique hoje uma possibilidade em que um grupo significativo de pessoas acreditam, com exceção da religião.

Novamente, vamos a Safatle para que possamos compreender o que há quando temos uma crise das ideologias teleológicas:

(…) devemos chamar de ‘cinismo’ um problema geral referente à mutação nas estruturas de racionalidade em operação na dimensão da práxis. Há um modo cínico de funcionamento dessas estruturas que aparece normalmente em épocas e sociedades em crise de legitimação, de erosão da substancialidade normativa da vida social. Isso nos coloca diante de uma hipótese maior: a partir de um certo momento histórico, os regimes de racionalização das esferas de valores da vida social na modernidade capitalista começam a realizar-se (…) a partir da racionalidade cínica24.

A crise de legitimação gera anomia social e esta, por seu lado, engendra uma racionalidade cínica que tem o dom de nada explicar. Portanto, temos uma sociedade imersa em uma grande crise política, econômica e ideológica.

Todavia, quando falamos em crise das ideologias teleológicas e cinismo não dizemos que não há resistência. Sim há muita, diversos grupos se mobilizam, no mundo inteiro, através de manifestações juvenis, democráticas, feministas, greves, etc. Mas isso é uma resposta positiva dentro da crise. Estas mobilizações são respostas à anomia e ao cinismo que dentro dela opera como racionalidade. Mas o que queremos dizer é que há uma hegemonia da racionalidade cínica garantida pelos aparelhos ideológicos estatais e não estatais e que se cristaliza na sociedade através da satisfação da vida (ou busca da felicidade) através do consumismo. Ou seja: não mude o mundo, apenas goze! A vitória de Donald Trump, para além de um avanço da direita, é uma vitória do cinismo. Afinal de contas pode-se atacar as mulheres, os muçulmanos, os latinos, pois estes atrapalham o gozo dos americanos. Mas não é nada muito ideológico, pois Trump não quer um mundo baseado na religião e na liberdade liberal, ele quer o gozo.

Desse modo, temos uma sociedade que olha a violência sem indignação real, mas com indignação cínica do tipo: o que acontece na Síria é muito triste. Mas passada a notícia do tele jornal, segue a centralidade psico-ideológica do consumo. De modo já é possível ficar triste sem consternação. Isso, na verdade, é puro cinismo, mas não é cinismo no sentido valorativo da palavra, pois trata-se de uma estrutura racional de pensamento própria da anomia.

Medo, mal-estar, anomia e cinismo: o lado brasileiro disso tudo

Assim como o mundo inteiro o Brasil vive uma situação de medo e de indefinição quanto ao futuro. Vivemos em uma sociedade que convive cotidianamente com o medo. Afinal, estamos no país com o maior número de homicídios em termos absolutos, são 60 mil todos os anos. Isso, por seu turno, gera medo. Sendo assim, a sociedade brasileira vive do medo da violência e do mal-estar da indefinição, o que são indícios indubitáveis da condição de anomia na qual estamos imersos. As mobilizações “Verde e Amarelo”, protagonizadas em sua maioria por um pensamento de direita formam o exemplo mais emblemático de quando falamos em medo, mal-estar e anomia. Indignadas pela corrupção parte significativa da classe média vai às ruas para pedir mudanças. De fato, havia concretude nas passeatas, pois a Operação Lava-Jato desnudou um grande esquema de corrupção envolvendo políticos, partidos, estatais e grandes empresas privadas. Porém, a legítima indignação que ligava de forma afetiva os membros das mobilizações com o desenrolar das mesmas logo se transforma em aparência, cujo discurso não é o que de fato estrutura tais ligações de afeto. Não é preciso voltarmos ao que se tornaram as manifestações de 2015 e 2016. O que pretendemos aqui não é também identificar o estruturante, o que já foi feito outrora. Mas é ver as passeatas e o cotidiano do pensamento médio conservador (e muitas vezes preconceituoso) como manifestações sintomáticas do medo, do mal-estar, do cinismo em uma situação anômica:

Seria, então, apenas suma coincidência que Freud tenha designado com o nome de formação de sintoma (symptomblidung) o processo pelo qual desejos contraditórios se articulam em compromisso, originando um novo ato psíquico, negativo ou positivo, que realiza de maneira deformada o que uma vez foi recalcado25.

Aqui, em nossa análise, podemos pegar essa citação e usá-la para descrever um sintoma social (ou sintoma do social). Ali, havia desejos contraditórios agindo em compromisso, quais sejam, o fim da corrupção e a manutenção dos privilégios dos presentes enquanto classe social acima das demais. Note-se um ato psíquico positivo, o fim da corrupção, e um ato psíquico negativo, a manutenção dos privilégios. Mas o que voltou de forma deformada que uma vez fora recalcado? A explicitação dos preconceitos nas faixas e palavras de ordem, uma vez que o preconceito volta de forma “positiva”, travestido de fim da corrupção e o fim da corrupção volta travestido de forma negativa travestido de na manutenção do privilégio. O preconceito racial, que é o engate para o preconceito de classe no Brasil ele é recalcado, porém permanece como latência no inconsciente popular e ele se revela como verdade, como diria Freud, no chiste, no ato falho e nos sonhos. Agora, vamos ver como isso tudo acontece em uma sociedade em anomia como a brasileira. Diante do medo e do mal-estar, parte significativa da sociedade brasileira faz retornar elementos da ordem precedente, elemento imprescindível para a detecção do estado anômico. Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda afirma:

a falta de coesão em nossa vida social não representa, assim, um fenômeno moderno. E é por isso que erram profundamente aqueles que imaginam na volta à tradição, a certa tradição, a única defesa possível contra a desordem. Os mandamentos e as ordenações que elaboraram esses eruditos são, em verdade, criações engenhosas do espírito, destacadas do mundo e contra ele. Nossa anarquia, nossa incapacidade de organização sólida não representam, a seu ver, mais do que uma ausência da única ordem que lhes parece eficaz. Se a considerarmos bem, a hierarquia que exaltam é que precisa de tal anarquia para se justificar e ganhar prestígio26.

O medo da desordem pede o retorno a uma ordem hierárquica precedente, mas Sérgio Buarque de Holanda alertou, já em 1936, a desordem brasileira não fruto da modernidade, mas sim de nossa formação social colonial. O medo pede pena de morte, linchamentos, tortura, presídios medievais, mais repressão para quem quer terra, casa e quer pensar de forma crítica.

Para quem quer mudança de verdade a hierarquia. Mas nossa elite não quer uma hierarquia prussiana ou uma hierarquia do Leviatã de Hobbes, movido pela razão. Nossa elite quer uma hierarquia jocosa, bastante seletiva que tenha como centro o gozo e não a razão; afinal de contas, razão em demasia atrapalha o gozo. Em verdade, o desejo não mudou, ele apenas voltou à tona se justificando através do medo e do mal-estar. Medo da violência e mal-estar pelas mudanças sociais timidamente ocorridas durante o governo petista. Assim, pode-se sentir satisfação (gozo) com cenas de bandidos mortos na rua, presos decapitados, menores sendo linchados, gays hostilizados, pessoas de esquerda escrachadas desde de que seja em nome do “bem”, ou seja, em nome da volta a uma ordem precedente de paz e respeito, em suma, da volta a uma ordem precedente que nunca existiu. Em tempos de anomia social, o ser humano pode através do Eu ligar o Id ao Supereu de forma direta. Desejo de linchamento de outro ser humano em nome da paz e da tranquilidade futuras. A tradição escravocrata voltando de forma “moderna”: isso é anomia, e a racionalidade é o cinismo. Não se acredita que a pena de morte ou o linchamento trará a solução duradoura para a paz social. Entretanto, se afirma de forma cínica, sem reflexão crítica. Todos sabem que em uma sociedade com imensa desigualdade social haverá violência e, portanto, anomia, uma vez que há crise de legitimação do regime. Todavia, para tal reflexão há que se abrir mão do gozar, no sentido lacaniano da palavra.

Para que não cortemos os nossos pulsos

Este texto tentou de forma resumida e limitada introduzir alguns conceitos e autores não muito familiarizados à nossa tradição cotidiana. Acredito que os conceitos de anomia social e mal-estar são chaves para a compreensão dos tempos difíceis em que vivemos, bem como o conceito de pós-modernidade, como algo que engendra inevitavelmente a anomia social. O reconhecimento de que a crise e o período operam mudanças psicológicas nos indivíduos é crucial para nossa armação. Mas é fundamental também que sigamos vendo de forma teórica que a luta de classes ainda é o motor da história, sem isso nossa atuação prática fica totalmente comprometida.

Agradeço a paciência de todos e espero ter contribuído de certa forma com aqueles que seguem a vida de forma indignada!


1 LÊNIN, Vladimir Ilitch. O imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo:Global, 1987. p .45.

2 Idem. p. 87.

3 HARVEY, David. O Enigma do Capital. 2011. p. 42-43

4 Idem. Ibidem. p. 18

5 FURTADO, Celso. Raízes do subdesenvolvimento, 2003. p. 181

6 ENST, Gernot. “¿Por qué diablos la gente apoya a la derecha? Un médico noruego tiene la respuesta” [06 de setembro de 2016]. Disponível em https://albertobuitre.com/2016/09/06/gernot-ernst-alberto-buitre-sosialistisk-venstreparti-por-que-diablos-la-gente-apoya-a-la-derecha-un-medico-noruego-tiene-la-respuesta/amp/ (Visualizado em abril de 2017).

7 SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 17

8 MARTINS, José de Souza. A política do Brasil: lúmpen e místico. São Paulo: Editora Contexto, 2011. p. 43

9 Idem, Ibidem, p. 57

10 Idem, Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2015.

11 DUNKER, Christian. Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 383

12 FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Porto Alegre: LP&M, 2011. p. 83

13 Idem. Idem, p109

14 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 161.

15 FREUD, Sigmund. O Mal-estar na Civilização. In: FREUD, S. O mal- -estar na civilização – novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. (1930-1936). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras Completas, v. 18), p. 82

16 Idem. “A Moral Sexual ‘Cultural’ e o Nervosismo Moderno” (1908), In: Obras Completas, Vol. 8. São Paulo: (cont.) Companhia das Letras, 2015, p. 368

17 Idem. “Por que a Guerra? [Cartas entre Freud e Einstein (1931)], In: Obras Completas, Vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 426

18 Idem. “Considerações Atuais Sobre a Guerra e a Morte” (1915). In: Obras Completas, Vol. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 281.

19 Idem, Ibidem, p. 211.

20 SAFATLE, Vladimir. Um supereu para a sociedade de consumo: Sobre a instrumentalização de fantasmas como modo de socialização. Disponível em: http://www.oocities.com/vladimirsafatle/vladi100.htm (Visualizado em abril de 2017).

21 Idem. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 109.

22 MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. Tradução de Florestan Fernandes. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008b, p. 247

23 OXFAM. “Una economía para el 99% – Es hora de construir una economía más humana y justa al servicio de las personas”. Disponível em: https://www.oxfam.org/es/informes/una-economia-para-el-99 (Visualizado em abril de 2017).

24 SAFATLE, Vladimir. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008. p.13

25 DUNKER, Christian. Op. Cit.

26 HOLLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 33


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Pedro Micussi