1 de março de 1923 – Uma breve entrevista de Leon Trotsky ao The Guardian
Leon Trotsky discute a respeito dos rumos da revolução bolchevique e de temas como o internacionalismo e a questão nacional em entrevista concedida ao jornal inglês.
Inverno de 1923. O correspondente do The Manchester Guardian na Rússia soviética, Arthur Ransome, envia um questionário ao Comissário de Guerra e comandante máximo do Exército Vermelho. Prontamente respondido. O entrevistado é ninguém menos que Leon Trotsky, um dos dirigentes internacionalistas mais incisivos dentre os bolchevique.
Como não poderia deixar de ser diferente, a curiosidade de Ransome — que mais tarde viria a se tornar um escritor de livros infantis de renome na Grã-Bretanha e também se casaria com Evgenia Petrovna Shelepina, ex-secretária de Trotsky — passa pela capacidade dos socialistas conciliarem uma estratégia comunista (e, portanto, internacionalista) com os interesses de uma nação revolucionária, acossada por duas dezenas de exércitos estrangeiros. Trotsky ensina como um verdadeiro comunista não pode separar a perspectiva nacional de um conteúdo classista.
A breve entrevista — encontrada em The Guardian — foi traduzida ao português pela equipe da Revista Movimento e pode ser conferida abaixo.
Arthur Ransome, 01/03/1923
Eu estava discutindo com Litvinoff o caráter aparentemente dual da política russa, os objetivos aparentemente contraditórios do Jekyll de uma Sociedade Internacional e o Hyde1 de um Governo Nacional, quando, após um pequeno impasse no argumento, ele disse: “A melhor coisa que você pode fazer é pedir que Trotsky declare sua posição, pois ele é ao mesmo tempo um membro da Internacional Comunista e um membro do Governo Soviético.”
Redigi um pequeno questionário; Trotsky respondeu as perguntas, escrevendo a declaração impressa abaixo.
Arthur Ransome – Você é um membro da Terceira Internacional. Você também está à frente do gabinete russo de Guerra. Não há momentos em que o Trotsky da Internacional discorda do Trotsky do Ministério de Guerra sobre um país particular? Se não, por que não?
Leon Trotsky – Não está claro para mim por que e de onde poderiam surgir contradições entre os interesses da República Soviética e os da Terceira Internacional. O proletariado russo é a parte constituinte mais importante da Terceira Internacional. A classe trabalhadora em todo o mundo está interessada no fortalecimento da Rússia Soviética, e tem dado provas disso em muitas ocasiões.
A Rússia Soviética está interessada no crescimento de poderosas organizações dos trabalhadores e no aumento de sua consciência de classe. Você sabe que, em nossa visão, somente o programa do Comunismo corresponde completamente aos interesses da classe operária. O contraste por si é possível apenas se alguém antepõe os interesses “nacionais” da Rússia aos interesses internacionais da classe trabalhadora.
Mas, do nosso ponto de vista, o que é nacional não existe fora do que pertence a uma classe. Em todo o mundo, a burguesia dá seus interesses de classe como interesses nacionais: algo que, para nosso desgosto, vimos ocorrer claramente e com sucesso durante a guerra mundial. Os interesses nacionais da Rússia coincidem com os interesses de sua classe dominante, isto é, o proletariado. Mas os genuínos interesses da classe trabalhadora não podem ser satisfeitos senão por meios internacionais, isto é, o estabelecimento de uma federação mundial de repúblicas baseadas nos trabalhadores e em sua solidariedade.
AR – As mesmas diferenças de motivo e de interesses devem existir no exército, o qual, certamente, é mais russo que revolucionário?
LT – O que eu já disse aplica-se completamente para essa questão também. Você disse que o Exército Vermelho é mais russo do que revolucionário. Você esquece primeiramente que o Exército Vermelho em sua composição não é apenas russo, porque nele estão ucranianos, bielorrussos, georgianos, armênios, tártaros, etc. Em segundo lugar, nos Exércitos Brancos2 contra os quais lutamos também há russos. É absolutamente claro que os objetivos do Exército Vermelho têm e continuam a ter um caráter revolucionário.
AR – Quando os franceses marcharam no Ruhr3 em 1919, sinto que a crise teria sido julgada em Moscou exclusivamente como uma crise revolucionária. Por que isso não é assim hoje?
LT – Você pergunta por que nós não saudamos a invasão francesa do Ruhr como um estímulo revolucionário. Certamente nós estamos interessados na vitória da classe trabalhadora, mas não é de todo nosso interesse que a revolução aconteça em um Europa exausta e drenada de sangue, e que o proletariado receba das mãos da burguesia nada além de ruínas, como nós recebemos a Rússia depois do Czarismo e da burguesia russa. As massas trabalhadoras da Europa estão gradualmente aprendendo as lições da guerra imperialista. Isso é expresso pelo crescimento gradual da Internacional Comunista. Sem nos permitir profecia sobre datas, nós não temos dúvida de que esse processo levará à vitória da classe trabalhadora em toda a Europa e em todo o mundo.
Se, entretanto, a burguesia conseguisse arrastar a Europa para outra guerra devastadora, isso significaria antes, primeiramente, o sangramento e a destruição daquelas gerações da classe trabalhadora que são as portadoras do futuro, e, em segundo lugar, a mendicância econômica da Europa. Por isso, nós, de um ponto de vista revolucionário, estamos vitalmente interessados na preservação da paz.
Notas dos tradutores
1 Personagens do livro O Médico e o Monstro (1886), do escocês Robert Louis Stevenson. Este clássico da literatura britânica simboliza a dualidade de personalidades no mesmo indivíduo: dr. Henry Jekyll é um cientista que se transforma periodicamente no horripilante Edward Hyde, ao beber uma poção que bloqueava todos os escrúpulos morais.
2 O movimento reacionário branco era composto por czaristas e liberais russos e recebia o apoio físico e material das tropas inglesas, holandesas, americanas e japonesas, recém saídas da I Guerra Mundial.
3 Entre 1923 e 1925, tropas francesas e belgas ocuparam o vale do Ruhr — rica em carvão e minérios — na Alemanha para pressionar a agonizante República de Weimar a pagar maiores indenizações em virtude da derrota na I Guerra Mundial.