Imaginação estratégica e partido
Em artigo, o sociólogo espanhol realiza exposição conceitual resgatando conceitos como partido e estratégia à luz da experiência de Podemos.
Este artigo foi publicado originalmente na edição especial 150 do jornal espanhol Viento Sur “1917-2017 Repensando a Revolução”, dedicada à estratégia política e alternativas anti-capitalistas.
1. Partido-movimento. Após décadas de crise das forças políticas de esquerda e de refúgio ativista nos movimentos sociais, o atual renascimento do combate político-eleitoral e a construção de novas ferramentas políticas estão acontecendo junto com a necessidade de se repensar e renovar a própria noção de partido. Como resultado de um longo declínio da esquerda política desde o final dos anos 1970, a crise (desigual) dos partidos tem sido uma crise de conteúdo (programa), forma (organização) e prática. Em suma, uma crise de projeto, sentido e estratégia. De fato, o ressurgimento da eterna “questão do partido” esconde uma discussão mais ampla sobre estratégia política, a natureza da própria luta política e a relação entre o político e o social.
A noção de partido-movimento resume bem a vocação de empreender uma renovação do partido inspirada nos movimentos, como uma certa analogia com o conceito de sindicalismo de movimento social. Usado nos círculos acadêmicos por Kitschelt1 para se referir aos partidos verdes e anti-autoritários que surgiram na década de 1980 em vários países europeus, o termo pode ser reformulado em um sentido mais amplo. Aplicado ao debate no Podemos, mostra uma pretensão de continuidade político-simbólica entre o 15M e o Podemos em um cenário de crise de legitimação de todo o sistema político do Estado espanhol que apresenta a necessidade de desenvolver, em termos gramscianos, um projeto contra-hegemônico, e não apenas uma voz política alternativa.
Neste contexto, um partido-movimento assume vários significados simultâneos: o partido como um movimento (características de movimento), em movimento (orientado a ação e em transformação contínua), parte do movimento (parte das lutas sociais) e devedor do movimento (que é inspirado por um evento político-social fundacional, o 15M). A “debtocracia” do movimento significa um partido em dívida com o movimento (e o evento), fidelidade que implica pensar além do mesmo e de seus próprios limites a fim de revelar todas as suas possibilidades – excluindo tanto sua santificação quanto sua instrumentalização para fins eleitorais.
Embora os movimentos sociais (na verdade, as organizações sociais) reproduzam muitos dos problemas comumente associados aos partidos, o chamado para um partido-movimento é uma tentativa de ir além da política partidária convencional e, ao mesmo tempo, seguir as trilhas de uma tradição política de, se adaptarmos a fórmula clássica de Draper, mudança a partir dos de baixo.2
2. Partido-estrategista. Um partido orientado em direção a uma política de emancipação deve ser concebido como um partido-estrategista, usando o termo de Daniel Bensaïd.3 Um partido-movimento-estrategista. Dirigir-se à realidade estrategicamente é uma pré-condição para a vitória, embora não haja garantia disso. Planejar uma estratégia não significa que ela seja correta. Ou que é útil para avançar a causa da emancipação. Ou que sua implementação é taticamente correta. Ou ter uma correlação de forças que leva à vitória. Mas pensar estrategicamente é o primeiro passo. “Não há vitória sem estratégia”, observa Bensaïd.4
Uma visão estratégica do mundo é, portanto, um ponto de partida útil, mesmo que não garanta que o destino será alcançado. Isto é feito com base em hipóteses de trabalho, como mapas rodoviários provisórios para ação política que precisam ser contrastados e passar no teste de uma prática nunca conclusiva. Na era do GPS (Sistema de Posicionamento Global), devemos reconhecer que quando se trata de estratégia política, nós ainda estamos navegando com um astrolábio. A política do astrolábio presume que uma luta política não funciona com certezas imaginárias ou improvisações inconsistentes. Baseia-se em abordagens rigorosas e flexíveis para uma realidade em mudança que é muito complexa para se entender perfeitamente. A incerteza do resultado da ação em si é uma parte intrínseca de qualquer abordagem estratégica. “Na luta revolucionária não há garantias antecipadas”, alertou Trotsky em 1934, discutindo a situação mundial.5
O ponto culminante de todo pensamento estratégico é desenvolver o que eu chamei de imaginação estratégica, ecoando o conhecido conceito de “imaginação sociológica” de Wright Mills.6 Definida como “a consciência vívida da relação entre a experiência e a sociedade em geral”, a imaginação sociológica requer uma mente aberta em relação à sociedade. A imaginação estratégica precisa de uma mentalidade similar. Significa pensar estrategicamente de um ponto de vista auto-reflexivo e permanentemente inovador, e ter uma vontade indomável e insaciável de procurar novas possibilidades para transformar o mundo. Nesse sentido, toda estratégia para a revolução também deve ser uma revolução na estratégia. A perspectiva espaço-tempo, ou seja, ter o alcance histórico e geográfico para tirar lições de experiências passadas e contemporâneas, fracassadas e bem-sucedidas, é sempre uma base fundamental para a aprendizagem estratégica – uma base para a expansão das fronteiras da imaginação. Portanto, curto e longo prazo, e experiência concreta e conhecimento comparativo, estão todos entrelaçados.
3. Estratégia integral. Uma força política deve operar em todas as dimensões da vida social. Mudar o mundo necessita de um “trabalho diário em todos os campos”, para tomar emprestada uma expressão de Lenin.7 Ela trabalha em cada recanto e fissura. Nenhum aspecto pode ser negligenciado. Nem político, nem econômico, nem ideológico. Todos os detalhes importam. Todos os flancos são importantes a fim de evitar pontos cegos estratégicos que possam ocultar vulnerabilidades imprevistas e dificultar a capacidade de reagir.
Um projeto político emancipatório exige essencialmente o que eu poderia chamar de estratégia integral, por analogia com o conceito gramsciano de estado integral, que Gramsci sintetizou nas suas fórmulas de “Estado (no seu significado integral: ditadura + hegemonia)” e “Estado = sociedade política + sociedade civil, ou seja, hegemonia blindada com coerção”.8 Não é minha intenção discutir aqui as virtudes e os problemas da concepção gramsciana do Estado e as controvérsias em torno de seu trabalho. Vale simplesmente notar, seguindo Peter Thomas, que Gramsci procurou usar a concepção de Estado integral para analisar “a interpenetração e o reforço mútuos da “sociedade política” e da “sociedade civil” (a serem distinguidas uma da outra metodologicamente, não organicamente) no interior de uma forma-estado unificada (e indivisível)”. O estado integral, então, designa “uma unidade dialética dos momentos da sociedade civil e da sociedade política”.9 Usando a imaginação estratégica, podemos conceber uma estratégia integral pela qual temos que operar em vários níveis e gerenciar uma dialética da “sociedade civil” e da “sociedade política”, onde a luta ocorre em todos os campos no âmbito de uma estratégia unificada e indivisível.
4. Ritmos variáveis de tempo e escala móvel de espaços. Toda estratégia integral enfrenta o desafio de governar o tempo e o espaço – duas variáveis que qualquer estratégia política deve considerar e que são permanentemente redefinidas pela lógica do desenvolvimento capitalista, como apontado por Harvey.10
A atividade política, como qualquer processo social, não é linear. Agir estrategicamente implica entender o que eu chamo de ritmos variáveis do tempo. O tempo político é “um tempo partido”, e “cheio de nós e entranhas, acelerações súbitas e freagens repentinas, saltos para frente e para trás, síncopes e contratempos”, para citar Bensaïd.11 Saber como mudar o ritmo em permanência torna-se a chave para uma boa abordagem estratégica e boa execução tática. Nem um sprint de curto prazo, nem uma maratona a um ritmo fixo, o combate político parece mais uma corrida de campo em terreno irregular, cheio de encostas, lama e poças de água que forçam constantes mudanças de ritmo e requerem uma boa resistência. Assim, o curto, médio e longo prazo se sobrepõe. Daí a metáfora bensaïdiana do partido como uma caixa de marchas.12
Por meio de atalhos através do espaço e do tempo, as crises abrem buracos que tornam possível alcançar destinos que pareciam antes impossíveis. Todo partido (ou organização), se não entender a natureza de uma situação de crise, corre o risco de entrar em um processo de rotinização estratégica que pode se deteriorar em uma verdadeira “zombificação” estratégica quando os desajustes entre sua teoria e prática e as mudanças abruptas do mundo real se tornam muito grandes. Os negócios, como sempre, ad mortem. As crises envolvem uma crise de estratégia e a necessidade de uma estratégia de crise. Em tempos de crise, há uma necessidade fundamental de ler as mudanças súbitas na situação para revolucioná-las e desestabilizar o adversário. Isto foi precisamente o que aconteceu com o lançamento do Podemos, que abalou a paisagem política do estado espanhol como um relâmpago – “a imagem dialética é uma imagem que surge de repente, em um flash”, notou Benjamin que capturou a combinação de crise e temporalidade partida quando escreveu: “catástrofe – ter perdido a oportunidade”.13
A gestão espacial é o outro lado de qualquer estratégia política, embora, como Harvey14 apontou, muitas vezes tende a ser esquecida como conseqüência das próprias práticas sociais que levaram a sua subalternalização ao longo do tempo. Um verdadeiro desafio, o espaço sempre foi esquivo para os movimentos trabalhistas e populares, que tradicionalmente foram mais confortáveis, como Harvey nos diz novamente, controlando o lugar ao invés do espaço.15 O conceito de escala móvel de espaços, introduzido por Bensaïd 16, intitula estrategicamente a multiplicidade de níveis escalares de espaço político em tempos de capitalismo global. “Exercitar a ginástica estratégica que permite a intervenção simultânea em vários níveis” é, para ele, uma maneira de evitar localismos sem saída, recuos impotentes do Estado-Nação e internacionalismo abstrato e desenraizado.
5. Estado e poderes sociais (alternativos). O desenvolvimento de uma estratégia abrangente significa sintetizar adequadamente a relação entre o político e o social, como uma espécie de “politização social e socialização do político” (para tomar emprestada a fórmula do ativista espanhol Miguel Romero). 17 Nem toda a politização do social ou qualquer socialização do político é útil, mas apenas aquelas que buscam romper a exploração e a opressão, tecer alianças entre os subalternos de todas as condições, e promover uma cultura de luta e antagonismo.
O trabalho político e social com lógicas específicas. Entre os dois, há dessincronização e desalinhamentos e um caminho cheio de solavancos, curvas e bifurcações, o que indica um relacionamento caótico e tempestuoso, com resultados explosivos. Como Bensaïd insistiu, o político não é meramente um reflexo mecânico do social, mas tem seus próprios códigos, ritmos e linguagem.18 Isso não é o mesmo, no entanto, que postular uma relação contingente entre o político e o social, em que o primeiro é construído quase independentemente do último, como sustentado pelo ex-secretário político do Podemos, Iñigo Errejón.19 Um determinado processo social abre múltiplas e conflituosas possibilidades políticas, cuja materialização não é garantida de antemão. É aí que o trabalho de estratégia entra em cena. Mas a estratégia não opera em uma esfera política isolada, mas em um terreno político que interage com o social e em um terreno social que interage com o político.
A articulação estratégica entre o político e o social precisa de uma boa compreensão da natureza do Estado, em particular no seu sentido estreito de quadro institucional, para ser capaz de definir um relacionamento com ele que evite o grande problema histórico dos partidos políticos (e outras organizações como os sindicatos): sua integração institucional, assumindo o Estado como a alavanca fundamental pela qual se muda o mundo. A ficção oposta de uma exterioridade pura em relação a ele, seja na sua versão anarquista ou autonomista, simplesmente inverte o problema sem resolvê-lo. Nenhuma das duas opções, “a política dos oprimidos”, observa Bensaïd, “deve ser mantida a uma distância prudente do Estado. Mas essa distância continua sendo um relacionamento, não uma exterioridade absoluta ou indiferença.20
A construção de uma rede sólida de poderes sociais alternativos, como um sistema de fortalezas que asseguram a conquista provisória de posições em terrenos hostis, é fundamental como um campo de base para qualquer investida eleitoral sobre o poder político e a implementação de uma verdadeira política de mudança uma vez que alguma responsabilidade de governo (local, regional ou nacional) foi alcançada – então a questão fundamental é evitar ficar preso nas velhas engrenagens do estado. “A classe trabalhadora não pode simplesmente apoderar-se da maquinaria estatal pronta, e usá-la para seus próprios propósitos”, observou Marx em sua consideração sobre a Comuna de Paris.21
6. Radicalidade e realidade. Um programa e estratégia revolucionários e emancipatórios começam tanto de um pedido de radicalismo como do desafio de alcançá-lo. Inspirados por Marx, podemos entender “radicalidade” como tendo dois significados complementares. O primeiro é sua conhecida afirmação em Contribuição para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel de 1843-44 de que “ser radical é apreender a raíz da questão”22 e, portanto, ir além da superfície. O segundo é a “crítica impiedosa da ordem existente”, para citar sua carta a Arnold Ruge, também em 1843-44 23, na qual ele defende a necessidade da “crítica impiedosa da ordem existente, impiedosa na medida em que se diminuirá nem de suas próprias descobertas, nem do conflito com os poderes que são”.
Isso contrasta com a afirmação do secretário geral do Podemos, Pablo Iglesias, de que o radicalismo na política é medido pela radicalidade dos resultados, não pelos princípios. 24 Embora haja alguma verdade nisso, em opor-se à radicalidade dos princípios com a dos resultados, ele esquece que sem a primeira (“a crítica impiedosa da ordem existente”), os últimos provavelmente serão altamente superficiais. Sem radicalidade de princípios não haverá resultados radicais. “É preciso sempre tentar ser tão radical quanto a própria realidade”, Lenin aconselhou o jovem poeta pacifista romeno Valeriu Marcu25 em uma conversa durante a Primeira Guerra Mundial. É então quando os resultados podem atender às necessidades da realidade.
7. Transição e horizonte regulatório. Todo partido emancipatório precisa de um “horizonte regulatório”. Ter um é estratégico e qualquer estratégia requer um. Por isso, o “horizonte estratégico regulatório” é como Bensaïd26 sintetiza a ideia. Ele está baseado em dois aspectos: a noção de revolução ou ruptura e a ideia central de outro modelo de sociedade. Ou seja, o como e o que, respectivamente. Um horizonte regulatório que apenas conta com um dos dois, porque lhe falta o outro ou porque é mal definido, é politicamente fraco. Estar confuso sobre a estrada e/ou sobre o objetivo equivale a se perder em algum momento da jornada.
Este duplo horizonte regulatório foi agora evaporado de todas as imagens político-estratégicas dentro dos partidos e movimentos de esquerda. Sem ele, a própria noção de transição desapareceu. Uma perspectiva transicional pode funcionar em dois sentidos. Primeiro, como uma definição programática que procura, no caminho ao poder, conectar as demandas diárias com a visão de outra sociedade. Segundo, como uma trajetória após a conquista do poder, para empreender um processo em direção a outro modelo da sociedade. Ambos os significados de uma estratégia de transição estão ausentes hoje. O horizonte para a “mudança” defendida por partidos como Podemos, conseqüentemente, permanece impreciso em seus objetivos e difuso em sua marcha adiante.
Diante disso, são necessárias duas tarefas. O primeiro é desenvolver um programa apropriado à radicalidade da realidade. Não enfrentar os nós gordianos envolvidos na mudança do mundo, como se eles não existissem, não elimina o problema. Não é o programa que faz a realidade, mas a realidade que faz o programa. Em segundo lugar, reabilitar a própria idéia de “alternativa”, que “outro mundo é possível”. Para conseguir isso, é necessário um esforço multinível: discussão programática, atividade cultural, mobilização de rua e organização. Imaginar as coisas de uma maneira diferente, contribuindo com pequenas experiências para fazê-las assim, e ganhar vitórias que aumentam as expectativas, são maneiras de fazer as pessoas acreditarem que o mundo realmente pode ser diferente. A utopia tem um legado ambíguo, diz Jameson27, que considera que, em um contexto de crise da perspectiva socialista e comunista e do horizonte revolucionário, “não temos alternativa à utopia”. O desafio é, podemos acrescentar, sintetizar a imaginação utópica e estratégica. Ou seja, estrategizar a utopia e, a partir de suas possibilidades, ultrapassar seus limites.
8. Democracia e militância. Uma condição necessária, mas insuficiente, a democracia interna é essencial para alcançar um destino sem o horizonte da emancipação ser sabotado por um “gremlin burocrático” cujo crescimento está diretamente ligado à queda da luta social e à institucionalização de qualquer partido. A burocratização implica a autonomização do aparato e a formação de um estrato interno (“casta”?), cujos interesses são parcialmente diferenciados da categoria e da filiação. Como observou Ernest Mandel, “o problema da burocracia no movimento trabalhista é posto em primeira instância como o problema do aparato das organizações de trabalhadores”28. Mas, embora esteja presente em qualquer fase da luta, a sombra sinistra da burocracia é ampliada ao acessar as responsabilidades do governo – desencadeando o que Rakovski em 1928, discutindo a degeneração do partido comunista na URSS, chamou de “perigos profissionais do poder”29. Para eles, é necessário contrapor uma estratégia preventiva anti-burocrática.
A democracia interna e o exorcismo da burocracia exigem não só uma cultura de participação e mecanismos para controlar a liderança, mas também uma luta incessante contra a divisão social e sexual do trabalho e contra qualquer forma de desigualdade que inevitavelmente penetra qualquer organização. O mundo antigo está sempre embutido em todas as sementes do novo, quer o novo se refere a instrumentos de luta ou a experiências de mudança. Ao mesmo tempo, a democracia pressupõe o gerenciamento da contradição irremediável entre as exigências da temporalidade externa, pressionadas e atormentadas de urgências, e as internas, marcadas pelos ritmos lentos de deliberação e discussão. O tempo partido e sincopado da política entra em tensão com o da democracia e da organização. A militância da democracia é o outro lado da democracia da militância.
A democracia implica a centralização político-organizacional ou a descentralização? Um excesso do primeiro envolve vários problemas: concentra o poder em poucas mãos; leva a erros ou simplesmente à subordinação de interesses locais ou regionais em benefício de necessidades gerais; e sufoca o potencial dos quadros locais e regionais, cujo destino depende da liderança central toda-poderosa. Ao mesmo tempo, muita descentralização gera contratempos opostos: dilui o próprio sentido do partido e enfraquece sua capacidade de intervenção em momentos decisivos; propicia dinâmicas centrífugas; e facilita a criação de feudos e lideranças autoritárias em micro-escala disfarçadas com uma retórica da democracia-dos-de-baixo30. Nenhuma destas opções, a fórmula algébrica adiantada por Daniel Bensaïd31, de “tanta descentralização quanto possível, tanta centralização quanto necessária”, parece ser uma boa maneira de ser dialeticamente orientado neste campo.
9. Militância e vida. Transformar o mundo é uma tarefa militante. Reivindicar a militância é imprescindível antes de qualquer tentativa de transformar o compromisso político em ativismo narcisista à la carte ou, pior, em uma questão de carreirismo profissional à la Podemos. Um partido que luta pela emancipação deve ser uma organização militante, oposta a um partido eleitoral-profissional de membros passivos, seja em sua versão tradicional social-democrata ou em sua versão populista online-plebiscita como o Podemos. Mas há uma necessidade de definir uma concepção de militância que é despida de qualquer fetichismo de conotações quase militares ou de devoção religiosa. A imaginação estratégica militante-vital envolve o gerenciamento da tensão irresolúvel entre os imperativos da vida política, sua dinâmica absorvente e suas responsabilidades infinitas, e as demais esferas vitais. Essa é a condição para evitar discriminação organizacional baseada em gênero, idade e profissão, ou daqueles que têm menos tempo disponível para a política. É também uma maneira de evitar um certo isolamento ativista da própria sociedade.
A política militante não é para heróis, “mas para pessoas comuns, rebeldes nas ruas” porque “uma revolução só pode ser bem-sucedida se as pessoas comuns entendê-la e torná-la sua”, como observou Miguel Romero32. Isso implica que a militância e a política devem estar em permanente relação com outras facetas da existência e da vida humana que também fazem parte da luta política, mas têm sua própria lógica – algo especialmente importante em uma época de fragilização de biografias e individualização social. “Política revolucionária”, para ele, “tem que ser uma paixão, mas não deve ser a única”. A paixão pela política também é uma paixão pela vida. A vida da militância é a militância da vida. “”Transforme o mundo”, disse Marx; “mude a vida”, Rimbaud disse: estas duas palavras de ordem são uma para nós”, proclamou André Breton em seu discurso no Congresso Internacional dos Escritores em Defesa da Cultura em junho de 193533. Fundir as perspectivas política e vital, essa é a questão.
10. A lei da vida. “O dever de um revolucionário é a luta, a luta venha o que vier, a luta até a morte”, escreveu o infatigável Auguste Blanqui34, “cujo distante trovão tinha feito o século anterior tremer”, como escreveu Walter Benjamin35. Por isso, a luta. Mas ela deve ser estrategicamente considerada e concebida a partir de uma visão global da existência humana. Caso contrário, existe o risco de se tornar o fruto de um compromisso militante tão louvável quanto estéril, tão épico quanto insustentável e tão corajoso quanto pobre em suas facetas.
Lutar e fazer isso em todos os campos. Nisso reside a possibilidade de articular uma estratégia integral a partir da imaginação estratégica. “A luta” é precisamente o que Marx aludiu em sua última entrevista conhecida, dada em setembro de 1880 ao jornalista do New York Sun, John Swinton36. Swinton explica que durante a conversa ele lhe fez uma pergunta sobre a lei final do ser, a que Marx respondeu solenemente: “luta”. Swinton acrescenta: “A princípio, parecia que eu tinha ouvido o eco do desespero; mas, talvez, era a lei da vida”.
(Tradução de Giovanna Marcelino da versão em inglês publicada no site Historical Materialism.)
Notas do autor
1 Kitschelt, H. (2006). “Movement Parties”. Em: Katz, R.S & Cotty, W.J. Handbook of Party Politics. London: Sage.
2 Draper, H. (1966). Two souls of socialism.
3 Bensaïd, D. (2003). Un monde à changer. Paris: Textuel.
4 Bensaïd, D. (2014). An impatient life. London: Verso, p. 324.
5 Trotsky, L. (1934). “For the 4th International. Appeal of the Communist-Internationalists to the Workers of the World”. The Militant VII (13): 1, March 31.
6 Wright Mills, C (2000 [1959]). The Sociological Imagination. Oxford: Oxford University Press.
7 Lenin (1920). “The Tasks of the Youth Leagues“. Discurso entregue ao Terceiro Congresso de toda a Rússia da Liga dos Jovens Comunistas Russos, 2 de outubro.
8 Gramsci, A. (1971). Selection from prison notebooks. New York: International Publishers, p.497 e p.532.
9 Thomas, P. (2010). The Gramscian Moment. Chicago: Haymarket, p.137.
10 Harvey, D. (1996.) Justice, Nature, and the Geography of Difference. Oxford: Blackwell.
11 Bensaïd, D. (2008). Penser Agir. Paris: Lignes, p. 274. Todas as citações de fonte não-inglesas são minha tradução.
12 Bensaïd, D. (2003). Un monde à changer. Paris: Textuel.
13 Benjamin, W. (1999) The Arcades Project. Cambridge: Harvard University Press. p.473 e p.474.
14 Harvey, D. (1989). The Urban Experience. Baltimore: Johns Hopkins University Press.
15 Harvey, D (2000). Spaces of Hope. Edinburgh: Edinburgh University Press.
16 Bensaïd, D. (2008). Éloge de la politique profane. Paris: Albin Michel.
17 Para uma análise da vida e legado político e intelectual de Romero, ver Antentas, Josep M (2015). “Miguel Romero (1945–2014): A Political and Intellectual Portrait”. Rethinking Marxism 27 (4): 590-600.
18 Bensaïd, D. (2008). Éloge de la politique profane. Paris: Albin Michel.
19 Desenvolvi uma análise crítica do Podemos, que inclui uma avaliação do pensamento de Errejón, em: “Iglesias, Errejón, and the Road Not Taken“. Jacobin, February 11 2017. e: “Power in Podemos“. Jacobin, March 7 2017.
20 Bensaïd, D. (2008). Éloge de la politique profane. Paris: Albin Michel, p. 349.
21 Marx, K. (1871). The Civil War in France.
22 Marx, K. (1843). A Contribution to the Critique of Hegel’s Philosophy of Right.
23 Marx, K. (1843). Letter from Marx to Arnold Ruge.
24 Iglesias, P. (2015). Politics in a Time of Crisis: Podemos and the Future of Democracy in Europe. London: Verso.
25 Marcu, V. (1943). “Lenin in Zurich. A memoir”. Foreign Affairs, April issue.
26 Bensaïd, D. (1997). Le pari mélancolique. Paris: Fayard, p. 291.
27Jameson, F.(2007). Archaeologies of the Future. London: Verso.
28 Mandel, E. (1969). Sobre la burocracia.
29 Rakovski, Ch (1928).”The “Professional Dangers” of Power.
30 Eu tomo a idéia de lideranças autoritárias em micro-escala disfarçadas com uma retórica da democracia-dos-de-baixo de: Martin, F. (2016). “Hacia una reivindicación libertaria de la forma partido: Para una autocrítica de las formas organizativas en la nueva izquierda”.
31 Bensaïd, D. (1998). Lionel, qu’as-tu fait de notre victorie? Paris: Albin Michel, p.281.
32 Romero, M.(2010). “Política de Daniel Bensaïd”. Viento Sur 110: 83-90. p. 87.
33 Breton, A. (1973). Antología (1913-1966). México: Siglo XXI.
34 Blanqui, A. (1866). Manual for an Armed Insurrection.
35 Benjamin, W. (1940). On the Concept of History.
36 Swinton, J. “Karl Marx“.