Do ‘consenso das commodities’ ao ‘consenso anti-indígena’?

Os projetos hidrocarboníferos e a concentração de terras unificam a direita e o kirchnerismo contra os povos indígenas na Argentina.

Maristella Svampa 16 set 2017, 14:25

O não reconhecimento da responsabilidade da Gendarmería Nacional na desaparição de Santiago Maldonado, e, além disso, a negação sistemática do fato, ocorrido numa solitária estada da Patagônia argentina no último 1 de agosto, no marco de um protesto pela liberação do lonko (líder) mapuche Facundo Jones Huala, gerou no governo de Mauricio Macri uma inesperada crise política. Por um lado, a desaparição trouxe à baila não só o endurecimento do contexto repressivo, mas também o desconhecimento e a indiferença do atual governo em relação aos consenso forjados na sociedade argentina em torno dos direitos humanos, depois da experiência do terrorismo de Estado e da desaparição forçada de milhares de pessoas durante a última ditadura. Por outro lado, em meio a uma enorme campanha política midiática anti-indígena, a crise terminou por dar visibilidade às reivindicações dos mapuches sobre a propriedade de terras, hoje em disputa.

Resta saber como evoluirá a indagação da justiça, ante a intimação dos policiais presentes na repressão que culminou no desaparecimento de Maldonado, e como isso impactará nas eleições parlamentares de outubro, que – supostamente – confirmariam o triunfo do governismo a escala nacional. No que diz respeito às demandas mapuches, desde o princípio o governismo deixou claro uma estratégia política que retoma e potencializa as leituras demonizadoras dos grandes proprietários rurais, que associa os mapuches à violência e até ao terrorismo, além de desempoeirar velhas acusações como aquela de que ‘os mapuches não são argentinos, mas chilenos’ ou que ‘eles exterminaram os tehuelches’, os supostamente verdadeiros ‘originários’ da região. A campanha de demonização está ligada à aposta explícita que o governo de Macri fez pelo aprofundamento do modelo extrativista, baseado na exploração dos combustíveis não-convencionais, a megamineração a céu aberto, a multiplicação de represas hidrelétricas e a expansão de cultivos transgênico, ao qual é preciso acrescentar os empreendimentos imobiliários, localizados em territórios que defendem comunidades indígenas e não-indígenas, muitos deles nas mão de proprietários estrangeiros.

O fato é que desde o final de 2015 a situação das comunidades indígenas que reivindicam terras ancestrais tem piorado. Houve numerosos desalojamentos e vários dirigentes indígenas encarcerados em situação irregular entre eles o wichi Agustín Santillán, detido e encarcerado na província nortenha de Formosa, contra que foram reativadas acusações anteriores, assim como o dirigente mapuche Facundo Jones Huala, a quem foram atribuídos crimes de uma enorme gravidade e está em processo o pedido de extradição do Chile. A agressiva campanha político-midiática que tenta associar grupos mapuches à violência política, supostamente, articulada pelo grupo radicalizado Resistencia Ancestral Mapuche (RAM), do qual pouco se sabe e se inventa muito sem nenhum rigor investigativo, teve uma arrancada no princípio deste ano e foi manchete dos principais jornais do país.

As comunidades mapuches estão repartidas pelo imenso território patagônico, nas províncias de Neuquén, Río Negro e Chubut. Depois da chamada ‘campanha do deserto’, em 1878, que exterminou uma parte dos indígenas do sul, muitos dos sobreviventes foram reclassificados como ‘trabalhadores rurais’, considerados cidadãos de segunda e marginalizados na estepe e na cordilheira, em territórios até então não-valorizados pelo capital.

Há alguns dias tive a oportunidade de visitar Añelo e Campo Maripe junto com a Confederação Mapuche de Neuquén. Trata-se de uma das organizações indígenas mais sólidas e de maior trajetória na Patagônia. Com o apoio de organizações não-governamentais (ONG) internacionais, vem desenvolvendo um trabalho social e política que busca conseguir um maior exercício de seus direitos, assim como o fortalecimento e a difusão de sua cultura. As relações da Confederação Mapuche com o poder político, econômico e judicial da província sempre foram tensas. Em 2006, obteve um triunfo histórico, ao incorporar na reforma da Constituição neuquina um artigo que reconhece a preexistência étnica e cultural dos povos indígenas, assim como o reconhecimento jurídico das comunidades por parte do Estado provincial. No entanto, a realidade dos territórios atravessados pela lógica do capita extrativista está longe da promessa da interculturalidade. Em 2013, o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas (ODHPI) destacava que, somente para o caso de Neuquén, havia 42 juízos penais (25 deles pelo delito de usurpação), que criminalizavam 241 mapuches por suas ações. Estas lutas estão ligadas a direitos reconhecidos juridicamente, como as reivindicações de terras e territórios, que se acham amparados pela normativa nacional e provincial existente.

Minha presença no coração de Vaca Muerta, junto com organizações sociais, ativistas e intelectuais de variados países, esteve vinculada à realização de um ‘ato de desagravo’ pelo quarto aniversário da assinatura do convênio entre a multinacional Chevron e a empresa argentina Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), o qual abriu as portas ao fracking em grande escala na província de Neuquén. Talvez poucos lembrem, mas a aprovação desse convênio por parte da Legislatura neuquina (que deveria referendar o assinado pelo governo nacional então presidido por Cristina Fernández de Kirchner) rompeu com todos os protocolos democráticos e inclusive escanteou a intensa retórica nacional-popular e latino-americanista empregada pelo governismo de então. Em 28 e agosto de 2013, enquanto os deputados neuquinos votavam afirmativamente sem conhecer os detalhes do convênio, fora do recinto desenvolvia-se uma interminável repressão – uma das piores do ciclo kirchnerista – sobre uma nutrida mobilização composta por organizações sociais e ambientais, comunidades mapuches, partidos políticos de esquerda e estudantes.

Entretanto, o kirchnerismo não estava sozinho: tanto a oposição de centro como a de direita acompanharam sua decisão. Para além das irregularidades, o “Consenso das Commodities”, como caracterizamos este período, projetava Neuquén como a nova ‘Arábia Saudita’. Em grande medida graças à imagem projetada por Vaca Muerta (a maior formação de shale ou rocha de xisto da Argentina), teve a particularidade de mostrar o resistente fio obscuro que une, numa mesma visão sobre o desenvolvimento, progressistas, conservadores e neoliberais. Como consequência, e da mesma forma que com a soja e a megamineração, a Argentina tentaria se converter num laboratório a grande escala na implementação de uma técnica controversa globalmente, através de um marco regulatório claramente inconstitucional e muito favorável aos investimentos estrangeiros.

A história, no entanto, não é linear. A partir de 2014, a queda dos preços internacionais do petróleo deteria a febre eldoradista em Vaca Muerta, o que não impediu o início de uma reconfiguração social e territorial, com sede em Añelo, localidade ocupada pelas grandes operadoras transnacionais. Certamente, em Añelo tudo está pronto para (voltar a) arrancar, quando for dado o sinal de largada; isto é, basta que aumente o preço do petróleo e projete um horizonte de rentabilidade para o esperado investimento das grandes corporações globais.

A região de Vaca Muerta está longe de ser um ‘território vazio’, tal como concebem as autoridades provinciais e nacionais. Ali se assentam de modo disperso cerca de 20 comunidades indígenas. Em função dos direitos coletivos consagrados pela Constituição nacional e pelas normativas internacionais, os mapuches estão longe também de ser meros ‘superficiários’, como os taxou um dos diretores da YPF, num debate recente. Assim, na esteira dos protestos levados a cabo pela Confederação Mapuche, em 2014, o governo de Neuquén teve que reconhecer a comunidade de Campo Maripe, assentada na zona desde 1927. O território em disputa, assinala o Observatório Petrolero Sur, são 10.000 hectares, ainda que o governo só aceite como parte da comunidade algo em torno de 900. Porém, neste extensão é impossível realizar as tarefas de pastoreio extensivo e a de agricultura, as duas atividades das quais vivem as 120 pessoas que fazem parte dela.

Desde 2015, os conflitos se agravaram e são muitos os dirigentes mapuches judicializados: em julho deste ano, a Gendarmería irrompeu no Campo Maripe, a pedido da YPF, para sitiar e resguardar a zona de exploração de YPF-Chevron; e faz alguns dias, um promotor declarou em estado de rebeldia seis integrantes do Lof Campo Maripe, sobre quem pesa a acusação de ‘usurpar’ um caminho privado que conduz ao campo Loma Campana.

Este é um exemplo, mas existem muitos outros territórios em disputa, hoje recuperados pelas comunidades mapuches que alertam para uma estendida cartografia do conflito frente ao avanço das diferentes modalidades do extrativismo e da concentração de terras. Certo é que companhias como Chevron ou Halliburton, proprietários como o britânico Joseph Lewis ou o grupo Benetton, expandiram-se notavelmente durante o ciclo progressista, mas naqueles anos o avanço da lógica depredadora do capital devia conviver com uma narrativa governista dos direitos humanos que, mesmo contrário ao que as próprias políticas do kirchnerismo impulsionavam, também incluía os direitos dos povos indígenas. No por casualidade, em 2006 e num contexto de crescente conflitividade, foi sancionada a lei 26160, que proíbe os despejos das comunidades indígenas das terras que ocupam e ordena a realização de um levantamento territorial.

Contudo, hoje o duplo discurso, suas tensões e contradições, parecem parte do passado. O racismo contra os indígenas não só segue operando como dispositivos disciplinar e fortemente criminalizador nas cidades, mas que cobra novas dimensões nas crescentes disputas pelos territórios. A campanha anti-indígena contra os mapuches é uma clara ilustração, pois elimina matizes e complexidades, o que é facilitado pelo olhar simplificador e agressivo de certos meios de comunicação. Seu objetivo é claro: trata-se de dissociar as reivindicações dos mapuches do discurso dos direitos humanos, associando-os à violência e criando as bases de um consenso anti-indígena que confirme ante a sociedade o avanço do capital sobre os territórios em disputa. A este contexto de crescente demonização, acrescenta-se o fato de que há alguns o Senado da Nação, com o voto ativo do governismo e a abstenção de uma parte da oposição (incluindo o kirchnerismo), rejeitou tratar com urgência a prorrogação da lei 26160, que vence no final de 2017.

Hoje mais do que nunca a prorrogação dessa lei exige o fim da indiferença e a adoção de um compromisso decidido da sociedade civil em apoio aos povos indígenas. Esta intervenção não só permitiria desmontar o consenso anti-indígena que pretende se instalar; também habilitaria um diálogo necessário e democrático com as comunidades indígenas sobre o lugar que estes povos devem ter no Estado argentino. Ao mesmo tempo, a intervenção da sociedade civil possibilitaria abrir o esperado debate sobre o avanço de modelos de mal desenvolvimento nos território e o papel que as resistências sociais hoje existentes possuem em defesa da vida.

(Artigo publicado originalmente em NUSO.org e traduzido por Charles Rosa)


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