“O jovem Karl Marx” – Em defesa da Práxis

Foi lançado o filme sobre a juventude do filósofo alemão. Longe das salas de cinema brasileiras, a obra reivindica a atualidade do marxismo.

Gustavo Rego 11 out 2017, 17:31

Marx: socialista e revolucionário

Desde o final do ano passado, quando anunciou-se a estreia do filme “O Jovem Karl Marx”, no Brasil todo militantes socialistas, jovens de esquerda, estudantes de ciências humanas ou simplesmente pessoas interessadas na vida de um dos maiores gênios da história empolgaram-se para assistir um bom filme sobre os percalços vividos pelo revolucionário junto à sua companheira, Jenny Westphalen, e seu melhor amigo, Friedrich Engels. Eu mesmo não podia esperar por abril, quando supostamente o filme chegaria aos nossos cinemas. Mas o mês de abril passou, e, chegado o mês do centenário da Revolução Russa, tivemos que reconhecer: “O Jovem Karl Marx” não chegaria ao Brasil. Ao menos não nas telonas, mas felizmente alguns militantes fizeram o grande favor de disponibilizar o torrent com versão legendada o qual todos nós estamos assistindo agora.

Por que isso aconteceu? Será que as distribuidoras não poderiam arcar com os custos do direito de exibição? Será que elas imaginaram que não haveria público interessado? Ou julgaram que o filme não tinha qualidade suficiente? Se a hipótese do baixo interesse comercial fosse verdadeira, não deixaria de ser irônica, pois, o próprio jovem Marx, quando era editor da Gazeta Renana, reconheceu que os interesses comerciais poderiam ser um poderoso meio de censura: “A liberdade número um para a imprensa consiste em não ser ela uma indústria.” (MARX apud KONDER; 1976) Entretanto, não se trata dessa nem de nenhuma das outras hipóteses. Em São Paulo e algumas outras capitais do país, há mercado suficiente para filmes europeus sem falar que um título sobre este personagem certamente arrastaria muita bilheteria. Além disso, o filme está na seleção oficial do Festival de Berlim. O motivo é um só: censura política. Os distribuidores podem aceitar as provocações e insinuações mais abstratas das dezenas de filmes críticos que passam em suas telas todos os meses, mas não a perigosa memória do homem que fez o socialismo dar um salto qualitativo, de pequenos grupos de discussão organizados por intelectuais pequeno burgueses, ou seitas utópicas de trabalhadores com métodos ainda vanguardistas, a movimento revolucionário que orienta a classe trabalhadora para a tomada do poder1. Para usar as palavras do próprio Marx, podem aceitar as “alfinetadas” mas não as “cacetadas”. (BENSAÏD, 2013; p. 14)

Esse, aliás, é o grande mérito do filme: reivindicar a atualidade do marxismo. Mas não o Marx “descafeinado” que circula no ambiente acadêmico, transformado em pura filosofia ou ciência econômica “objetiva”. Ou, Nas palavras de Bensaïd, “um Marx sem comunismo nem revolução; em síntese, academicamente correto.” (idem. p. 7) Não se trata também do Marx que os executivos de Wall Street foram obrigados a desenterrar da cova que o haviam deixado (com ressalvas, é claro!) após a tragédia que eles mesmos provocaram em 2008. E tampouco se trata do Marx convidado para os “dias de festa”2 dos oportunistas (para ser mais franco: dos petistas – de dentro e de fora do PT) que serve para perfumar o ambiente com um pouquinho de radicalismo e intelectualidade. Terminada a festa, volta-se a celebrar acordos com as frações mais atrasadas da burguesia e a defender aquela concepção do socialismo burguês que Marx tanto criticou e resumiu numa frase: “os burgueses são burgueses – no interesse da classe operária.” (MARX & ENGELS, 2008; p. 65)

O Marx de Raoul Peck (mesmo diretor de “Eu não sou o seu negro”) é o Marx da práxis. O jovem de menos de trinta anos que, junto a Engels e Jenny, superou a filosofia clássica alemã, a economia política inglesa e o socialismo utópico francês, unindo teoria crítica da sociedade a ação política revolucionária. É esse Marx que não vemos há tanto tempo e precisamos hoje: o jovem que irrita idealistas e sectários, encara a prisão e o exílio, sofre pelas privações materiais consequentes de suas escolhas políticas, não enxerga tabus ou dogmas diante de sua crítica feroz. Bem verdade que o filme em si não é dos melhores. Os planos de câmera são os mais convencionais possíveis, as cenas de romance e ação são bastante previsíveis e os diálogos são um tanto descritivos. Não há nenhuma tentativa de experimentação estética ou inovação artística. Mas me parece que essa não era a intenção mesmo. O objetivo parece ser mesmo apresentar para as massas, ou seja, para um público leigo ou iniciante, um pouco das ideias dos fundadores do materialismo histórico-dialético. Marx, que apreciava as tentativas de tornar sua obra mais acessível aos trabalhadores, provavelmente ficaria satisfeito.

Por que práxis?

Aos 23 anos, em 1841, Marx já é doutor e chama a atenção de intelectuais da época (como Moses Hess) por sua incrível genialidade. Mas, como diz Bensaïd, “as liberdades acadêmicas estreitam-se como a pele de onagro3 sob os golpes da reação prussiana.” (BENSAÏD, 2013; p. 12) O governo da Prússia proíbe os jovens hegelianos de esquerda de lecionar nas universidades do país. Marx vê seu sonho de tornar-se catedrático frustrado. Assim, à revelia de sua vontade, é afastado do circuito acadêmico e jogado ao debate público. Torna-se primeiramente jornalista e logo menos editor da Gazeta Renana. Nessa condição, indigna-se com a condenação de trabalhadores por roubo de lenha e escreve uma série de polêmicos artigos de crítica do direito e da propriedade privada4. Pouco depois, em 1843, é preso provisoriamente e a Gazeta Renana é fechada pela censura. Marx fica enraivecido com o autoritarismo do governo prussiano e, ao mesmo tempo, com a docilidade de seus colegas hegelianos de esquerda que contentam-se em fazer apenas insinuações ao invés de críticas profundas e abertas. Por isso, muda-se com Jenny (com quem havia se casado recentemente após anos de noivado escondido de suas famílias) para Paris.

Na cidade que ele considerava “a velha escola superior da filosofia e capital do novo mundo” (idem. p. 14), conhece os trabalhos de intelectuais utópicos como Proudhon, que profere discursos com retórica radical como “a propriedade é um roubo”. Marx interessa-se por seu discurso em defesa dos trabalhadores e crítico ao capitalismo, mas ainda o julga demasiado abstrato. Além disso, toma contato com a Liga dos Justos, dirigida por Wilhelm Weitlig, uma associação internacional de trabalhadores que atuava na clandestinidade e, inspirada no revolucionário Auguste Blanqui, buscava a revolução por meio de investidas armadas de uma vanguarda revolucionária. Marx dizia: “Entre eles a fraternidade não é uma palavra vazia, mas uma realidade, e toda a nobreza da humanidade irradia desses homens endurecidos pelo trabalho. [Me admira seu] gosto pelo estudo, a sede de conhecimentos, a energia moral, a necessidade de desenvolvimento.” (MARX, 2008; pp. 11-12) Entretanto, Marx acreditava que luta política só poderia ter potencial de mudança material se apropriada pelas massas, portanto, deveria ser feita publicamente, e não por meio de vanguardas clandestinas. Além disso, criticava o fato de que a Liga ainda mantinha muito de sua identidade com o cristianismo primitivo, a referência histórica para a esquerda dos primórdios da Revolução Francesa. Essa perspectiva está calcada em princípios abstratos difíceis de serem traduzidos em um programa político concreto para a tomada do poder, ou seja, compreende o comunismo mais como concepção moral do que como estratégia revolucionária. Por essa razão, Marx aproxima-se do comunismo mas ainda mantém certa distância crítica.

Como diria Lênin, ainda faltava ao socialismo utópico uma teoria capaz de “indicar uma saída real.” “[O socialismo utópico] não sabia explicar a natureza da escravidão assalariada no capitalismo, nem descobrir as leis do seu desenvolvimento, nem encontrar a força social capaz de se tornar criadora da nova sociedade.” (LÊNIN, 1986; p. 38) O próprio Marx futuramente iria produzir essa teoria.

O encontro com Engels em 18445 é outro episódio decisivo em sua inclinação política. Engels (que era dois anos mais novo que Marx) era filho de burgueses e seu pai o obrigava a trabalhar na gerência da Erman & Engels, a empresa da família. Entretanto, ele odiava esse serviço e preferia dedicar-se à arte, ao esporte e, principalmente, à filosofia. Mais ainda, o jovem revolta-se com a condição de miséria e exploração a que os operários estavam submetidos na fábrica por seu pai – e, involuntariamente, por ele próprio! Para o horror de sua família, aos 20 anos já se declara comunista. Na época desse encontro, Engels estava desenvolvendo um interessante estudo sobre “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”. Marx fica admirado com a qualidade dessa análise materialista sobre o proletariado. Ambos ficam animados pela enorme afinidade intelectual que parece haver entre eles. Percebem logo um ponto de acordo fundamental: a crítica aos colegas hegelianos de esquerda, como Bruno Bauer, Max Stirner e Ludwig Feuerbach. A dupla irrita-se com a arrogância desses filósofos que imaginam ter realizado apenas pelo pensamento a revolução no mundo. Naqueles anos, até 1848, escrevem uma série de anotações em que procuram radicalizar a dialética hegeliana superando seu idealismo e concepção teleológica de história – isto é, a concepção de que haveria um “espírito” que rege o sentido da história universal. Em oposição, defendem uma dialética que considere o papel ativo dos seres humanos na história (ainda que essa atividade, Marx dirá futuramente no “18 brumário”, não esteja de acordo com sua própria vontade mas com as condições deixadas pela história) e que portanto a compreenda não a partir de um “espírito” universal, mas dos antagonismos entre classes engendrados pelo desenvolvimento dos modos de produção.

Um dos textos mais interessantes desse período infelizmente foi abandonado, como seus próprios autores disseram, à “crítica roedora dos ratos” (literalmente: esses manuscritos foram largados em uma gaveta e várias páginas foram comidas por ratazanas) e só ficou conhecido em 1931: “A Ideologia Alemã”. Nestes manuscritos, Marx e Engels argumentam que as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante. Ou seja, que

“os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda a sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideiais, que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época.” (p. 47)

Portanto, quando, por exemplo no caso do capitalismo, a burguesia desenvolve conhecimentos pretensamente “universais”, “neutros” porque seriam nada mais do que a realidade dos fatos, na verdade nada faz além de representar seus próprios interesses particulares como interesses das classes em geral, e tratar sua dominação enquanto classe como lei natural das coisas. A ideologia, como pode ser chamado esse fenômeno, é tanto falsa – porque esconde como as relações sociais de fato existem materialmente – quanto uma apologia da ordem existente – porque trata como eterna e universal a condição em que se vive. Em outras palavras, é um reflexo distorcido da vida material. Atenção aqui: a consciência falsa da ideologia, portanto, não decorre de um “mau entendido” contra o qual bastaria o estudo atento dos filósofos. Ela é uma ilusão socialmente necessária, isto é, uma ilusão que surge a partir do modo como materialmente a sociedade está organizada, ao mesmo tempo em que preserva essas condições. Portanto, só há conhecimento universal possível em uma sociedade em que não haja classes – o comunismo.

Este livro não é mencionado diretamente no filme de Peck. Mas há uma cena em que o personagem de Marx enuncia uma de suas frases mais brilhantes, a famosa tese XI sobre Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo.” (p. 539) Em que se baseia essa frase? Marx inicia essas teses criticando os filósofos materialistas que compreendiam a realidade material como objeto, ou seja, de forma contemplativa, apenas. Entretanto, não consideram o sentido prático da atividade humana, a dimensão subjetiva. Em outras palavras, que os seres humanos não apenas vivem sob determinadas condições materiais mas como eles produzem e agem sobre essas condições (mesmo que inconscientemente). Dessa forma, uma teoria só pode provar sua verdade se submetida à prática. Por essa razão, Marx considera que esses filósofos cometeram um grave erro, por exemplo, ao acharem que tinham feito uma revolução por revelar que a sociedade é que cria Deus e não Deus que cria a sociedade. Trata-se uma mera elaboração abstrata que não consegue provar a si própria porque as condições materiais que levam as pessoas a crer em uma religião não estão abolidas. Somente num mundo em que as pessoas sejam plenamente conscientes das condições em que vivem, não sofram com a miséria e as crises causadas por uma economia que “age” de forma inconsciente, como se tivesse vida própria, é que a religião pode ser abolida. Como diz Marx, “assim, por exemplo, depois que a terrena família é revelada como mistério da sagrada família, é a primeira que tem, então, de ser criticada na teoria e revolucionada na prática.” (p. 538)

Portanto, a radicalidade (no sentido de ir até a raiz das coisas) a que pretendiam chegar os jovens hegelianos apenas se consumaria se fosse não apenas teórica como prática. Ou seja, não se realizassem a pretensa “revolução” do pensamento, mas apenas se revolucionassem o mundo real – passar das “armas da crítica” à “crítica das armas”. Isso apenas seria possível se adotassem a perspectiva da única classe que, por ser a explorada, não possui nenhum interesse na manutenção do status quo e é capaz de abolir as classes em geral, o proletariado. Por outro lado, era necessário superar o utopismo do movimento operário com uma teoria revolucionária, pois, diria Marx, “O poder material (…) só pode ser vencido pelo poder material. (…) [Mas] a teoria também se transforma em uma força material quando se apodera das massas.” (p. KONDER, 1976; p. 36) Essa teoria não seria fruto da mente imaginativa de uma vanguarda iluminada, ou, dessa forma, estaríamos retornando ao idealismo. A “práxis” é formulada a partir das necessidades históricos do proletariado e realiza-se pela sua intervenção política de massas. Como diz o próprio Marx:

“Não queremos antecipar dogmaticamente o mundo, mas, ao contrário, encontrar o novo mundo a partir da crítica do antigo. […] Embora a construção do futuro e sua consolidação definitiva não sejam assunto nosso, tanto mais líquido e certo é o que atualmente temos de realizar; refiro-me à crítica radical da realidade dada; radical tanto no sentido de que a crítica não pode temer os seus próprios resultados quanto no sentido de que não pode temer os conflitos com os poderes estabelecidos. Não nos apresentamos ao mundo como doutrinários com um novo princípio: aqui está a verdade, ajoelhem-se diante dela! Trazemos ao mundo os princípios que o próprio mundo desenvolveu em seu seio. Nós apenas lhe mostramos por que exatamente ele luta.” (MARX apud KONDER, 2013; p. 20)

Da mesma forma, ação revolucionária deve encontrar no seio do próprio desenvolvimento histórico e nas contradições internas do sistema capitalista as possibilidades de sua revolução. Assim, ela não deveria ser a prática voluntarista de pessoas corajosas (e ingênuas) como Weitlig, que acreditava ser possível construir o comunismo imediatamente a partir da ação repentina de algumas dezenas de milhares de comunistas armados. Esse é o motivo pelo qual Marx e Engels passaram a dedicar-se aos estudos sobre a economia capitalista. Viram que esse seria uma forma muito eficaz de perfurar profundamente os interesses da burguesia, pois como Marx afirmaria mais tarde na introdução à edição inglesa d’O Capital, “A Alta Igreja da Inglaterra, por exemplo, perdoaria antes o ataque a 38 de seus 39 artigos de fé do que a 1/39 de suas rendas em dinheiro.” (MARX, 2013; p. 80)

Pouco a pouco, Marx e Engels conseguem convencer a Liga dos Justos de suas ideias e na fatídica reunião de 1847 mudam o seu nome para Liga dos Comunistas. O lema deixa de ser o abstrato “Todos os homens são irmãos!” para ser “Proletários de todo o mundo, uni-vos!”. Saem de lá imbuídos de uma importante tarefa: redigir o programa da revolução que deveria estourar em breve por toda Europa. Após longo atraso que deixou os dirigentes da Liga de cabelos em pé, “O Manifesto Comunista” é finalmente publicado em abril de 1848, quando a revolução estava a todo vapor. O texto é uma obra prima da “práxis”. Aponta de forma precisa as tendências do movimento histórico, as características fundamentais da moderna sociedade burguesa em suas contradições internas e as tarefas históricas e conjunturais do proletariado. Ao mesmo tempo, diferencia-se das demais vertentes socialistas apontando seu caráter a-histórico, reacionário, utópico, idealista e burguês. Me chama atenção especialmente sua crítica ao que chama de “socialismo burguês”, representado por Proudhon, que parece tanto antecipar o que seria o futuro reformismo alemão quanto é atual a uma crítica da nossa contemporânea socialdemocracia:

“Uma (…) forma desse socialismo (…) procura fazer com que os operários se afastem de qualquer movimento revolucionário, demonstrando-lhes que não será tal ou qual mudança política, e sim uma transformação das condições de vida material e das relações econômicas, que poderá ser proveitosa para eles. Por transformação econômica das condições materiais de existência esse socialismo não compreende em absoluto a abolição das relações burguesas de produção – o que só é possível pela via revolucionária -, mas apenas reformas administrativas realizadas sobre a base das próprias relações burguesas de produção e que, portanto, não afetam as relações entre o capital e o trabalho assalariado, servindo, no melhor dos casos, para diminuir os gastos da burguesia com sua dominação e simplificar o trabalho administrativo de seu Estado.” (MARX & ENGELS, 2008; p. 65)

Finalmente, cabe um último comentário acerca deste tópico. Como se vê, não há em Marx nenhuma forma de determinismo econômico ou teleologia. Ao contrário, o autor batalhou continuamente contra isso – “se o homem é formado por circunstâncias, o que importa é formar as circunstâncias humanamente.” (MARX apud KONDER, 1976; p. 62) Bastaria uma operação lógica para saber disso: por que este homem teria dedicado os melhores anos de sua vida à militância se fosse um determinista? No entanto, essa “leitura” grosseira de Marx é extremamente difundida. Arriscaria dizer inclusive que é a mais difundida. A quem interessa isso? Primeiramente, aos reformistas e estalinistas, pois, ao eliminar a necessidade da prática no marxismo, educam suas bases a esperar passivamente pela ação iluminada de sua direção ao invés de adotar uma postura ativamente revolucionária. Em segundo lugar, aos intelectuais burgueses pedantes, tanto porque é mais fácil de bater na caricatura do que no original, como porque esse Marx é mais “domesticado”, como descrevi no primeiro bloco.

A necessidade do marxismo hoje

No final do século XX, os burgueses não escondiam sua felicidade ao decretar a “morte do marxismo”. Na realidade, o que morria era a sua caricatura horrenda, o estalinismo, a verdadeira negação do marxismo. O que observou-se nos últimos anos, ao contrário, principalmente desde 2008, foi a consolidação das tendências observadas por Marx e Engels: quase não há mais esfera da vida que não tenha sido mercantilizada; a economia financeirizada eleva à última potência o caráter anárquico e fetichista do sistema capitalista; o capital contemporâneo aboliu as fronteiras do tempo e do espaço de um modo que Marx jamais poderia imaginar quando olhava para as linhas férreas e telégrafos; a televisão e a internet elevam a “autonomia ilusória das coisas” (fetichismo) para a “autonomia ilusória das imagens”, como afirma Fredric Jameson; a desigualdade supera recordes históricos. Raoul Peck não esconde ter sido essa a principal motivação para o filme. Inclusive, acrescentou ao final do filme um belíssimo clipes com imagens da barbárie contemporânea ao som de “Like a Rolling Stone”, de Bob Dylan. Entretanto, como disse Harvey em entrevista traduzida aqui neste site, o capitalismo vai mal mas a burguesia vai bem. Falta ao proletariado um programa mais claro e uma organização consciente. Essa é a relevância de uma filme como esse nesses tempos. Novamente, o diretor afirma abertamente ter sido essa a sua intenção quando perguntado se o marxismo teria condições de florescer novamente nestes tempos:

“É claro! Alguém como Trump irá gerar resistência, mas nós não sabemos que forma terá essa resistência. Diferentes setores irão reagir e lutar de formas diferentes, mas a grande questão é se eles conseguirão tornar-se aliados e formar uma organização de longo prazo. O que quer que vá acontecer deve estar baseado em políticas de longo prazo e estratégias de resistência. Nós tivemos o movimento Occupy Wall Street, mas, quando eles tiveram de dar um passo adiante e organizar-se de forma mais institucionalizada, todo o movimento se dissolveu. Um problema é que hoje nós temos muito menos organizações de resistência poderosas do que tínhamos nos anos 1960 e 1970. Mas eu vejo uma possibilidade. Mas será organizado suficientemente a tempo do que precisamos?”

Nesse contexto, é preciso reivindicar a atualidade da “práxis”. Afirmar que marxismo é unidade entre teoria crítica da sociedade e ação política revolucionária parece ou ao menos deveria parecer trivial. No entanto, boa parte dos estudiosos do marxismo hoje passam toda a sua vida sem nunca militar em qualquer partido ou movimento. Da mesma forma, percebe-se o crescente anti-intelectualismo pós-moderno que acredita encontrar na simples experiência o norte para a militância. Quanto a isso, é preciso lembrar que a degeneração das organizações socialistas esteve sempre baseada no abandono da teoria marxista, pois, quando não há teoria, todo desvio oportunista é permitido: a heterodoxia de Bernstein apoiou a degeneração reformista do SPD, assim como o dogmatismo e as falsificações de Stálin foram pilares da burocratização soviética.

É preciso reeditar para o século XXI a velha máxima: “Proletários do mundo todo, uni-vos!”


Notas do autor

1 Não estou menosprezando o poderoso papel transformador que a arte crítica e engajada possui. Pretendo apenas demonstrar o quanto a memória de Karl Marx causa pavor à burguesia.

2 Referência à acusação que Lênin fazia aos reformistas de falarem em socialismo nas reuniões da Internacional mas fazerem acordos com suas burguesias nacionais e boicotarem processos revolucionários.

3 Nota do texto original: “Referência ao livro A pele de Onagro, de Honoré de Balzac, que conta a história de uma pele mágica capaz de realizer os desejos de seu proprietário. A cada pedido atendido, porém, a pele se encolhe um pouco, reduzindo simultaneamente o tempo de vida daquele que a possui.”

4 Ver: MARX, Karl (2017), Os Despossuídos, São Paulo: Boitempo

5 Na verdade, os dois já se conheciam antes. Mas é no outono de 1844 que começam a se tornar parceiros intelectuais e amigos.

Bibliografia

BENSAÏD, Daniel (2013), “Marx, Manual de Instruções”, São Paulo: Boitempo

ENGELS & MARX (2007), “A Ideologia Alemã”, São Paulo: Boitempo

. (2008), “O Manifesto Comunista”, São Paulo: Boitempo

KONDER, Leandro (1976), “Marx, vida e obra”, São Paulo: Paz e Terra

LÊNIN, V. I. (1986), “As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo” em: “Lênin – Obras Escolhidas, v. 1”, São Paulo: Alfa-Ômega.

MARX, KARL (2013), “O Capital”, Livro I, São Paulo: Boitempo


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