A expedição da Walt Disney pela América Latina

Dois longa-metragens da década de 1940 produzidos pela Disney mostram como a indústria do cinema aprendeu a vender o império americano.

Marcela Croce 11 nov 2017, 14:25

Walt Disney anunciou sua chegada à América Latina com duas animações: “Alô, amigos” [“Saludos amigos”] (1942) e “Você já foi à Bahia?” [“The three Caballeros”] (1944). Ambas as estreias – no Rio de Janeiro e na Cidade do México, respectivamente – foram marcos na década da Política de Boa Vizinhança, iniciada em 1933 por ocasião da retirada militar na América Central ocupada. Nos anos de 1940, o governo Roosevelt tomava a colaboração hemisférica como vital para os esforços estratégicos de guerra.

Com a ascensão do fascismo na região vista como ameaça, em que pese algum exagero nessa percepção, os dois filmes da Disney e uma missão diplomática combinada foram pensados como propaganda antinazista para a audiência Sul-americana. Aproveitando uma onda de excursões semelhantes – associadas à política do “New Deal” de Henry Wallace – as animações produzidas pareciam inicialmente tentativas sinceras, senão ingênuas, de buscar um diálogo autêntico com a cultura da América Latina. Contudo, a retórica do panamericanismo murchou, e com ela aquilo que o Plano Marshall havia sonhado para a região no período pós-guerra. A Política da Boa Vizinhança deu lugar ao pesadelo na Guatemala em 1954, já no contexto da Guerra Fria. Hoje parece claro o estabelecimento de um precedente pelos dois filmes, no qual a indústria do cinema trabalhou para justificar a intervenção dos EUA não só na região, mas ao redor do mundo todo.

Alô, amigos!

Uma das várias cenas de “Alô, amigos” é a de Pateta (Goofy) vestido de gaúcho, fazendo as usuais patetices pelos Pampas argentinos. A familiaridade do caráter desastrado da personagem torna mais acessível a novidade da política da Boa Vizinhança, contida logo na abertura do filme. Um coro entoa:

Saudações, América!
Chegou o tempo
de nos tornarmos bons amigos!
Saudações, amigos,
vizinhos!
Precisamos nos unir como se fôssemos um só.

A versão lançada nos EUA não faz menção a “vizinhos”, tampouco a qualquer tipo de aliança. (tendo em mente alguma discrepância entre as versões, esta citada aqui foi extraída da versão para língua espanhola). Depurado o tom político em sua versão doméstica, o filme sorrateiramente recria a “aminésia imperialista” que frequentemente marca o tom norte-americano em relação à América Latina.

A música da abertura, pelo menos em suas versões em espanhol e português, apela explicitamente às nações da América Latina para que encampem os esforços de guerra dos EUA. Os créditos finais também enfatizam a unidade continental: afirmam que o filme foi realizado graças à “generosidade e colaboração de artistas, músicos e demais amigos por toda a América Latina”.

Essas e outras aberturas expõem as motivações ideológicas por trás da expedição dos cartunistas à América do Sul, a qual é descrita pelo narrador como uma missão para descobrir material novo e recrutar “um novo amigo para o Pato Donald”.

O ensaio clássico de Ariel Dorfman e Armand Mattelart, “Para ler o Pato Donald” (“How to Read Donald Duck”) tornou familiar o termo “imperialismo cultural” para tratar da função ideológica da Disney. Documento fascinante da Unidade Popular, governo de Allende, o ensaio fala da vasta quantidade de quadrinhos da Disney que invadiu a América Latina no período da Guerra Fria. Em um exemplo dado pelos autores, o Pato Donald viaja à região fictícia “Antiplano del Abandono”, supostamente localizada nos Andes, na esperança de encontrar a “cabra de ouro”. Dorfman e Mattelart argumentam que a busca do Pato Donald reprisa a busca dos conquistadores espanhóis pelas ricas minas de Potosí.

No entanto, em 1942 a boa vontade da expedição da Disney muda de tática. Nem Bolívia, nem Peru pareciam importantes aos esforços de guerra dos Aliados, e as cenas que retratavam a região do Lago Titicaca mostram claramente isso; segundo o narrador, “é preciso evitar ambientes urbanos; é preferível manter o foco nos aborígenes”. Na prática isso significa que a Disney retratou a “Terra dos Incas” através dos olhos de um “turista americano”, representado pelo Pato Donald.

Donald se empenha verdadeiramente em estabelecer relações com a cultura local, mas o filma ainda utiliza uma série de provincialismos exagerados: A figura do “chola” personifica a região; mulheres mestiças cantam “melodias exóticas”; o clima inóspito é suportado em virtude da profunda conexão com a “remota civilização Inca”.

Os animadores substituíram os burros típicos da região por “llamas orgulhosas”, as verdadeiras “aristocratas dos Andes”. O narrador prioriza cuidadosamente os animais em detrimento das figuras humanas que os contrapõem, explicando que as criaturas são capazes de humilhar qualquer espectador “com um mero olhar”.

Atravessar o Lago Titicaca acaba se saindo uma “grande aventura”, para qual apenas os ingênuos parecem aptos a encarar. Ao passo que a travessia se incia, os mesmos nativos “permitem ser fotografados livremente, talvez devido ao fato de ainda não saberem o que é uma câmera”. Em que pese a ignorância sobre as tecnologias modernas, os nativos conversam fluentemente com os animais e alistam as llamas para auxiliar os viajantes na travessia. O turista Pato Donald, não podendo lidar com tanto atraso, põe-se a contar vantagem dos avanços tecnológicos dos quais dispõe. Num momento particularmente traiçoeiro da travessia, aprendemos que a andadura das llamas, assim como a dos indígenas do altiplanto, é perfeitamente adaptada para atravessar as instáveis pontes suspensas.

O narrador enfatiza a capacidade das pessoas locais de se adaptarem, enquanto para o turista, só pode mesmo oferecer palavras de encorajamento durante as cenas: “mantenha o juízo, fique calmo, tente relaxar”. Como recompensa, ao Pato Donald é permitido visitar o mercado de cerâmica e comprar artefatos locais.

Retomando a sequência dos planos não-animados, os cartunistas, todos vestindo trajes de negócio, embarcam num avião enquanto uma procissão de cholas descalços atravessam a Puna com seus filhos amarrados nas costas. O quadro seguinte mostra imagens aéreas – ponto de vista que não deixa de simbolizar a superioridade cultural – que nos fornecem um apanhado dos mais incríveis atributos da região. Dorfman e Mattelart explicam a força política representada pela América Latina nos termos de um mosaico de culturas:

“Tais produções, ao selecionarem os traços mais superficiais e singulares de cada povo no intuito de diferenciá-los, lançando mão do folclore como um meio de “dividir para conquistar” nações, que em comum ocupam a mesma posição de dependência, (…) transformam os países da América Latina em lixeiras, sendo estas constantemente repintadas para atender os prazeres voyerísticos e orgiásticos das nações metropolitanas”

Vindo do Chile – representado por “Pedrito, o Pequeno Avião” – o desenho transporta observadores pela Cordilheira dos Andes até Buenos Aires. Uma série de cartões-postais apresenta a “bela e moderna” capital da Argentina: vemos a Praça de Maio, o Teatro Colón, o edifício “Kavanagh” – o maior do tipo na América do Sul – emblemas da “terceira grande cidade das Américas”.

Antes o olhar dos turistas norte-americanos se fixava sobre o exotismo andino; agora esse “olhar imperial” se torna mercantilista. Foca-se nas carnes grelhadas e bons vinhos da Argentina, selando o status de exportador de comida na divisão internacional do trabalho. Conforme afirmou o expresidente da Argentina, o grande Domingo Faustino Sarmiento, as infinitas extensões de terra da nação se tornaram, no final das contas, sua maior maldição, pois a abriu para dois séculos de exploração nas mãos de uma elite fundiária criolla, antes de ser transformada num de ponto turístico, o que só faz alimentar sua desvalorização.

Os cartunistas assistem a uma dança folclórica que os remete aos caubóis norte-americanos, propiciando o pano de fundo para um “vôo fantástico” aos EUA, onde Pateta se prepara para atuar em seu papel de destaque.

A animação começa com um giro no guarda-roupas – como que fazendo às vezes de uma conversão monetária, ou de uma tradução – no qual Pateta troca suas roupas ocidentais por trajes de gaúcho, virando desse modo o “centauro dos Pampas”, montando seu corcel de inspiração arturiana, “Bucephalus”. Assim como no último plano não-animado, os interesses econômicos e culturais norte-americanos giram em torno da cena da carne argentina, “a mais deliciosa do mundo”. O narrador disserta sobre sua serventia, usada como a base de uma “dieta saudável e rica em vitaminas”, a qual atribui a seus consumidores um físico robusto. Que melhor candidato a parceiro de guerra – especialmente contra os nazistas e sua conhecida obsessão por compleições atléticas – que esses sul-americanos fortes?

Contudo, a cena da última sequência sugere que não haverá um amor duradouro entre os dois países: à medida que a noite cai nos Pampas, o gaúcho é abandonado, deixado sozinho cantando uma “vidalita” tradicional ao som do violão – que, num close revelador, é na verdade uma fita gravada.

A transição dos Pampas para o Brasil marca uma reorientação nítida. O avião aterriza no Rio de Janeiro, lar dos cariocas e do Carnaval, cidade que “supera todas as expectativas em relação a sua beleza exuberante”. Aparece então, pela primeira vez, José Carioca, “aberto em relação aos avanços dos cartunistas”.

Apesar de a ave se vestir de acordo com o que se espera de um “Grande Senhor” – um chapéu panamá, um guarda-chuva utilizado como bengala e um charuto – ele não se gaba das riquezas locais. Em vez disso expressa a incrível beleza natural do Brasil. “Aquarela do Brasil” alardeia a exuberância das paisagens do país, suas cachoeiras, flores, pássaros; a tela se enche de bananas.

Já antecipando “Você já foi à Bahia?” de 1944, Zé Carioca e Pato Donald se conhecem e trocam cartões de negócio. Donald aceita a oferta graciosa do novo amigo para ver os pontos turísticos, e eles terminam o passeio num bar, tomando cachaça, a aguardente local. Somente sob influência da bebida o Pato Donald consegue dançar, acompanhando o ritmo tropical que emana de um salão de festas de Copacabana, onde há uma projeção da silhueta da Carmem Miranda numa janela.

Você já foi à Bahia?

Este filme estreou um pouco antes do final da Segunda Guerra Mundial. Por aqueles tempos, os instáveis argentinos haviam manifestado simpatia pelas forças do Eixo, o que fez com que os EUA redobrassem a investidura em seus outros alvos. Nesse filme, a Disney celebra a boa vizinhança com o Sul, ao passo que fortalece seu protagonismo como líder regional.

Novamente ao Pato Donald é atribuído o papel principal. Na verdade, ele tipicamente serve de procurador da Disney em assuntos políticos, como se pode ver em “A face do Füher” [“Der Füher’s face”, de 1942], curta do período da guerra. (ainda que, à luz do antissemitismo bem documentado da Disney, a imagem do Pato Donald usando uma braçadeira com a suástica cause incômodo).

Dorfman e Mattelart observam que Donald se tornou um emissário melhor que o Mickey, que cada vez mais desempenhou um papel de homem sensato em face do amigo aventureiro. Aliás, a Disney limitou as aparições do rato no contexto europeu de conflitos ao necessário para a manutenção de sua consagração. Mickey, por sua vez, já havia se tornado um ícone do conservadorismo americano, uma figura contrária ao tipo de representações irônicas do totalitarismo militar que o errático Pato Donald poderia mais facilmente encarnar.

“Você já foi à Bahia?” começa com Donald recebendo presentes de aniversário “de seus amigos da América do Sul”. O primeiro presente, um filme exaltando os pássaros nativos da América do Sul, por um instante reverte o fluxo de poder do Norte para o Sul. Conforme o documentário prossegue em direção ao Polo Sul, o narrador permite que Donald inverta o mapa a fim de não precisar ficar de cabeça para baixo: apenas para assegurar o conforto do espectador norte-americano o filme inverterá a ortodoxia Norte-Sul.

A primeira história é sobre um jovem pinguim que sonha em se mudar para climas mais quentes, mas Donald logo o corta, apressado para abrir o segundo presente, o qual contém seu velho amigo, Zé Carioca, em pessoa.

Zé Carioca leva seu amigo para o Brasil, onde podem observar todas as “rarae aves” que a selva tem a oferecer. O narrador passa a empregar uma série de floreios verbais – “observem a pompa do pássaro, pomposo pompadour” – que rememora as construções poéticas do grande poeta modernista da América Latina, Rubén Darío.

Enquanto os dois amigos passeiam, acabam quase que imperceptivelmente caindo de volta nos Pampas. Se em “Alô, amigos” a Disney dedicou um curta inteiro à Argentina, já em “Você já foi à Bahia?” as nações próximas do Eixo receberam um tratamento mais superficial. Das reminiscências da sequência sobre os Andes do primeiro filme, o Pato Donald e Zé Carioca se atêm às culturas indígenas: um grupo de gaúchos joga “Sapo” e recita frases típicas de sua “linguagem gauchesca”.

Quando os amigos assistem a um garoto domar seu burrinho (“doma gaúcha”), o animal parece desconfiado, tal como o burrinho em “Pinóquio” (1940). Esse reconhecimento superficial reflete o interesse minguante dos EUA pelos Pampas. O Brasil, por outro lado, declara guerra à Alemanha em 1942. Embora o presidente Getúlio Vargas tenha inicialmente se inclinado a apoiar as forças do Eixo, em 1944 seu país acompanha os Aliados, assim como Zé Carioca faz companhia ao amigo Donald na viagem de aniversário deste.

O Brasil, claro, oferece muitos encantos aos turistas. Por um lado, conta com as imensas maravilhas naturais da Amazônia e seus ilimitados recursos – daí a Fordlandia, a planta amazônica da borracha, imaginada por Henry Ford como a base do centro nervoso de um verdadeiro império da fabricação de pneus. Por outro lado, visitantes encontrariam danças tradicionais, frutas tropicais, e todos os outros símbolos que acabaram conquistando a imaginação de Hollywood. Assim, nos vemos em Salvador, Bahia – “terra do romance”, acrescenta Zé Carioca – onde o Pato Donald é seduzido pela figura de Aurora Miranda, irmã da célebre cantora.

Relembrando “Fantasia” (1940), a trilha sonora ganha vida à medida que uma série de instrumentos se assoma e dança junto com a canção de Miranda, desenhando um quadro que prenuncia o exagerado “realismo fantástico”, que se tornaria o mais famoso produto artístico de exportação do continente nos anos de 1960. Não obstante, os EUA mantêm seu status de líder; numa cena, Carioca se multiplica, convertendo-se em uma série de reproduções de linhas de montagem, imagem que contrasta com a iconicidade singular do Pato Donald.

O terceiro presente de aniversário nos leva ao México, onde o galo Panchito preenche a vacância notavelmente deixada pela Argentina. O que podemos presumir como um nativo Jalisco pelos trajes, sobrero e esporão vai logo tratar de paramentar Donald e Carioca a fim de os transformar nos “três cavalheiros” [o título em espanhol do filme é “Los tres caballeros].

Tão logo Panchito começa a cantar, observa: “Ninguém é como a gente” – isto é, os Aliados nas Américas – e acrescenta “onde um lidera, os outros devem seguir”. A cena então irrompe num tiroteio que deve ter lembrado a terra onde outro Pancho, Pancho Villa, tratou igualmente de atrair a simpatia de alguns norte-americanos. Alianças, entretanto, que não criam uma identidade comum: ao passo que Carioca e Panchito dedilham seus violões, Donald se mantém à parte com seu baixo vertical.

Panchito se voluntaria para contar como “a história do México está representada na sua bandeira” e passa à elucidação do significado da águia e da serpente antes de oferecer carona num tradicional sarape, possuidor de certa semelhança com o tapete voador oriental.

De costas para a imagem aérea da Cidade do México, os três seguem para Chihuahua onde se deparam com traços da violência revolucionária que levou Pancho Villa ao poder no Estado. Quando chegam em Veracruz, não há qualquer sinal da recente ordem de ocupação norte-americana, emitida por Woodrow Wilson. Assim que o sarape voador adentra um estado mexicano, um após o outro, as paisagens urbanas se revelam imagens estáticas, tais quais cartões-postais.

Mais uma vez Dorfman e Mattelart identificam a manobra ideológica por trás da familiar redução da geografia a cartão-postal: “A geografia se torna uma foto de postal, e é vendida enquanto tal… as férias de um cidadão metropolitano são transformadas em veículo moderno de supremacia”. Essa supremacia cultural também aparece na sequência de Acapulco, quando Dora Luz reinterpreta um “bolero” de Agustín Lara – arquétipo da sensibilidade moderna mexicana, segundo diz Carlos Monsiváis – em inglês, para benefício do Pato Donald.

A presença norte-americana que se deu tacitamente no decorrer do filme é transmitida por luzes quando termina. Os três amigos olham para o céu, onde aparece em letras vermelhas, brancas e azuis “The End”. Nada de serpentes e águias, nem de “Ordem e Progresso”: as personagens estão unidas sob estrelas e listras.

Depois de um certo tempo, tais letras formariam “OEA”. Ainda depois, “NAFTA” e em algum momento futuro, teremos novas letras nomeado uma cartunesca unidade Panamericana.

(Tradução para o português feita por Flávia Brancalion para a Revista Movimento a partir da tradução em inglês disponível na Jacobin Magazine)


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