Manoel de Barros (1916-2014)

Para relembrar e celebrar a notoriedade da obra desta importante figura da literatura brasileira, fizemos uma lista com alguns de seus principais poemas.

Giovanna Marcelino 13 nov 2017, 10:09

Nascido em Mato Grosso, Manoel de Barros foi um dos principais poetas da chamada Geração 45, que contou com escritores como João Cabral de Melo Neto e Mário Quintana. Autor de livros como “Gramática expositiva do chão”, “O livro das ignorãças” e “Tratado geral das grandezas do ínfimo”, sua escrita mistura prosa e poesia, além de ser intensamente marcada pelo interesse de captar e revelar a importância das pequenas coisas. Quando jovem, foi membro da Juventude Comunista, experiência que conferiu à sua obra um caráter político, notável em sua linguagem própria e inventiva, que resgata e valoriza justamente a valiosidade do simples, daquilo que a lógica capitalista do “tudo que é sólido desmancha no ar” transforma em ínfimo e desnecessário.

A seguir, selecionamos alguns poemas escritos pelo autor ao longo de sua vida:

Manoel por Manoel

Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.

Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.

Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.

Arte de infantilizar formigas

1.
As coisas tinham para nós uma desutilidade poética.
Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber.
A gente inventou um truque pra fabricar brinquedos com palavras.
O truque era só virar bocó.
Como dizer: Eu pendurei um bentevi no sol…
O que disse Bugrinha: Por dentro de nossa casa passava um rio inventado.
O que nosso avô falou: O olho do gafanhoto é sem princípios.
Mano Preto perguntava: Será que fizeram o beija-flor diminuído só para ele voar parado?
As distâncias somavam a gente para menos. O pai campeava campeava.
A mãe fazia velas.
Meu irmão cangava sapos.
Bugrinha batia com uma vara no corpo do sapo e ele virava uma pedra.
Fazia de conta?
Ela era acrescentada de garças concluídas.

9.
A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um
sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força
existem
nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação perde o condão de
adivinhar: divinare.
Os sabiás divinam.

Retrato do artista quando coisa

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.

Comparamento

Os rios recebem, no seu percurso, pedaços de pau,
folhas secas, penas de urubu
E demais trombolhos.
Seria como o percurso de uma palavra
antes de chegar ao poema.
As palavras, na viagem para o poema, recebem
nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades.
E demais escorralhas.
As palavras se sujam de nós na viagem.
Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas.
E livres das tripas do nosso espírito.

Uma didática da invenção

I.
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso
saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas
vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência
num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega
mais ternura que um rio que flui entre 2
lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.

Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

Sobre importâncias

Um fotógrafo-artista me disse uma vez: veja que o pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro no corpo do mar. Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balança nem com barômetro etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.

Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes. Que um osso é mais importante para o cachorro do que uma pedra de diamante. E um dente de macaco da era terciária é mais importante para os arqueólogos do que a Torre Eiffel. (Veja que só um dente de macaco!) Que uma boneca de trapos que abre e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que o Empire State Building. Que o cu de uma formiga é mais importante para o poeta do que uma Usina Nuclear. Sem precisar medir o ânus da formiga. Que o canto das águas e das rãs nas pedras é mais importante para os músicos do que os ruídos dos motores da Fórmula 1. Há um desagero em mim de aceitar essas medidas. Porém não sei se isso é um defeito do olho ou da razão. Se é defeito da alma ou do corpo. Se fizerem algum exame mental em mim por tais julgamentos, vão encontrar que eu gosto mais de conversar sobre restos de comida com as moscas do que com homens doutos.

Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada

III.
Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.
Baratas passeiam nas formas de bolo…
A casa tem um dono em letras.
Agora ele está pensando –
no silêncio líquido
com que as águas escurecem as pedras…
Um tordo avisou que é março.

VI.
No que o homem se torne coisal – corrompem-se nele
os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que
empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um
inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.

Abandono

A gente morava na última casa de uma rua. Depois o mato começava. Dois trilheiros entravam pelo mato. Um trilheiro dava no rancho de Nhá Velina Cuê que comia feijão com arara, quati com abóbora e cobra com mandioca. O outro trilheiro esbarrava no rio. Os meninos brincavam nus no rio entre pássaros. Tinha um Bolivianinho, boliviano pé de pano entre os guris. E um Gonçalo pé de galo orelha de meu cavalo. Acho que o pé de pano do boliviano era só para trovar. Assim como o pé de galo do Gonçalo. Descobri nesse tempo que os apelidos pregam mais quando trovam. Depois descobri naquele lugar a palavra abandono. A palavra funcionava dentro e fora das pessoas. Eu não sabia se era o lugar que transmitia o abandono às pessoas ou se eram elas que transmitiam o abandono ao lugar. Eu conhecia a palavra só de nome. Mas não conhecia o lugar que pegava abandono. Por antes a força da palavra é que me dava a noção. Mas em vista do que vi o olhar reforça a palavra. O olhar segura a palavra na gente. O cheiro e o amor do lugar também participam. Todos os seres daquele lugar me pareciam perdidos na terra, bem esquecidos como um lápis numa península. Mas Nhá Velina Cuê me falou: este abandono me protege. Acho que esse paradoxo reforça mais a poesia do que a verdade.

Um olhar

Eu tive uma namorada que via errado. O que ela via não era uma garça na beira do rio. O que ela via era um rio na beira de uma garça. Ela despraticava as normas. Dizia que seu avesso era mais visível do que um poste. Com ela as coisas tinham que mudar de comportamento. Aliás, a moça me contou uma vez que tinha encontros diários com as suas contradições. Acho que essa freqüência nos desencontros ajudava o seu ver oblíquo. Falou por acréscimo que ela não contemplava as paisagens. Que eram as paisagens que a contemplavam. Chegou de ir no oculista. Não era um defeito físico falou o diagnóstico. Induziu que poderia ser uma disfunção da alma. Mas ela falou que a ciência não tem lógica. Porque viver não tem lógica – como diria a nossa Lispector. Veja isto: Rimbaud botou a Beleza nos joelhos e viu que a Beleza é amarga. Tem lógica? Também ela quis trocar por duas andorinhas os urubus que avoavam no Ocaso de seu avô. O Ocaso de seu avô tinha virado uma praga de urubu. Ela queria trocar porque as andorinhas eram amoráveis e os urubus eram carniceiros. Ela não tinha certeza se essa troca podia ser feita. O pai falou que verbalmente podia. Que era só despraticar as normas. Achei certo.

Tempo

Eu não amava que botassem data na minha existência. A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio. Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou: tem hora que eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra eu posso conviver com os lagartos e os musgos. Assim: tem hora eu sou quando um rio. E as garças me beijam e me abençoam. Essa era uma teoria que a gente inventava nas tardes. Hoje eu estou quando infante. Eu resolvi voltar quando infante por um gosto de voltar. Como quem aprecia de ir às origens de uma coisa ou de um ser. Então agora eu estou quando infante. Agora nossos irmãos, nosso pai, nossa mãe e todos moramos no rancho de palha perto de uma aguada. O rancho não tinha frente nem fundo. O mato chegava perto, quase roçava nas palhas. A mãe cozinhava, lavava e costurava para nós. O pai passava o seu dia passando arame nos postes de cerca. A gente brincava no terreiro de cangar sapo, capar gafanhoto e fazer morrinhos de areia. Às vezes aparecia na beira do mato com a sua língua fininha um lagarto. E ali ficava nos cubando. Por barulho de nossa fala o lagarto sumia no mato, folhava. A mãe jogava lenha nos quatis e nos bugios que queriam roubar nossa comida. Nesse tempo a gente era quando crianças. Quem é quando criança a natureza nos mistura com as suas árvores, com as suas águas, com o olho azul do céu. Por tudo isso que eu não gostasse de botar data na existência. Por que o tempo não anda pra trás. Ele só andasse pra trás botando a palavra quando de suporte.

Auto-retrato falado

Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da
Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do
chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de
estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível e ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10 livros de poesia: ao publicá-los me
sinto como que desonrado e fujo para o
Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo
que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de
gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.


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