“Eu queria ver por mim mesma a primeira terra do socialismo”: as mulheres negras americanas e a revolução russa

A promessa de 1917 permitiu que as mulheres afro-americanas se afirmassem como parte integral de um movimento global para acabar com o racismo, o sexismo e o imperialismo.

Shana A. Russel 26 nov 2017, 20:01

Como uma jovem marxista e membra do Manuscrito Coletivo da Science & Society, estou quase envergonhada de dizer que, até recentemente, a Revolução Russa tinha muito pouco, senão algum, significado para mim. Parecia muito longe das experiências dos meus assuntos de pesquisa, mulheres trabalhadoras negras nos Estados Unidos. Era parte da história europeia e, portanto, tangencial à história da diáspora africana. A União Soviética não era mais do que a causa da nostalgia de meus camaradas mais velhos. Agora sei o quão errado era essa percepção. A revolução de 1917 estava inextricavelmente ligada às histórias de descolonização na África e à libertação negra nos Estados Unidos.

Foram os arquivos subexaminados de mulheres negras sindicais ativistas que me mostraram o quão importante a Revolução foi, e é, um século depois. Nos arquivos de Esther Cooper e James Jackson, descobri um documento que daria à União Soviética um significado real para mim, enquanto filha de quatro gerações de trabalhadoras domésticas negras. A dissertação de mestrado de Esther Cooper, “A mulher trabalhadora doméstica negra em relação ao sindicalismo” postulou a Revolução Russa como um momento crucial para as trabalhadoras domésticas na União Soviética e um ideal viável para mulheres negras nos Estados Unidos. Nas duas décadas após 1917, dezenas de mulheres negras fizeram a peregrinação à URSS e retornaram aos Estados Unidos com uma nova visão de liberdade para si mesmas como trabalhadoras, como mulheres e como afro-americanas.

Enquanto a Revolução de 1917 explodiu na Rússia, George P. e Esther Irving Cooper davam as boas-vindas a sua filha Esther no mundo. Os Coopers eram negros progressistas por excelência. Eles abraçaram o tipo de justiça social que se centrou na mobilidade ascendente da classe média, na educação e na elevação racial (Haviland, 2015, 15; McDuffie, 2011, 100). A família Cooper desperta certa curiosidade acadêmica. Nas palavras do historiador Erik McDuffie, o que move “uma jovem mulher criada em uma “décima talentosa” família negra do sul para a esquerda?” (2011, 11). Resposta de Cooper: a União Soviética através dos olhos das trabalhadoras domésticas.

A visão profética de Cooper para as trabalhadoras domésticas veio a ela enquanto ela era uma estudante de pós-graduação na Fisk University, uma instituição historicamente negra em Nashville, Tennessee. Ela se matriculou em 1938, depois de terminar seus estudos de graduação em Oberlin. Enquanto esteve lá, ela foi convidada por um professor para dentro de “um pequeno quarto, “estilo Anne Frank”, na parte de trás de sua casa, onde ele ergueu as cortinas e estava cheio de livros de Marx, Lenin e da Internacional Comunista”. Enquanto fazia sua dissertação, Cooper atuou em um círculo de estudo marxista formado principalmente por professores. Quando completou seus estudos em Fisk apenas dois anos depois, Cooper era oficialmente membra do Partido Comunista Americano (CPUSA) (Kelley, 1990, 205; McDuffie, 2011, 103).

Imagino que Cooper descobriu a Revolução em algum lugar naquela estante escondida em Nashville e que essa descoberta a levou à crença de que a União Soviética representava uma nova visão para as trabalhadoras domésticas nos Estados Unidos. O segundo capítulo de sua dissertação, intitulado “Fronteiras do Sindicalismo Americano”, descreveu brevemente as experiências das trabalhadoras domésticas na Rússia antes e depois de 1917. “A mudança da posição das trabalhadoras domésticas na Rússia é muito impressionante”, começou Cooper. . Ela continuou:

“Antes da Revolução Russa, as trabalhadoras domésticas nas cidades muitas vezes trabalhavam do amanhecer ao escurecer. As condições de vida das trabalhadoras que viviam dentro das casas eram inadequadas: uma cama estreita no corredor, armário ou cozinha eram muitas vezes os únicos lugares onde a serva doméstica tinha para dormir. O alimento que as trabalhadoras preparavam era servido ao patrão, enquanto a trabalhadora comia comida com pouco conteúdo nutritivo. O pagamento era pequeno e as férias eram desconhecidas”.

As condições de trabalho na Rússia antes da Revolução refletiam aquelas das trabalhadoras domésticas negras nos Estados Unidos. Segundo Cooper, depois de 1917, as domésticas soviéticas conseguiram formar sindicatos que levaram a direitos trabalhistas mais abrangentes e melhores condições de trabalho. Mas o que mais importava para Cooper era a ausência do estigma associado ao trabalho doméstico. “A posição social das trabalhadoras domésticas”, afirmou, “é igual a de qualquer outro trabalhador” (Cooper, 1940, 29-30).

A dissertação de Cooper continua sendo uma de suas realizações mais inovadoras e é diferente de qualquer coisa escrita antes ou depois. O historiador Erik McDuffie argumenta que é “o estudo sociológico e histórico mais completo escrito sobre as condições de trabalho e o status das mulheres trabalhadoras domésticas negras e seus esforços para se sindicalizar durante a Depressão” (2008, 203). No entanto, nos Estados Unidos, o estigma associado ao trabalho doméstico era racial. O tratamento das trabalhadoras domésticas negras e sua posição na hierarquia social era uma transição da escravização. Apesar dessa diferença fundamental, Cooper permaneceu esperançosa. Nas suas palavras: “Os sindicatos de trabalhadoras domésticas nos Estados Unidos têm diante deles as experiências dos sindicatos de trabalhadoras domésticas nos países europeus… A perspectiva para os sindicatos de trabalhadoras domésticas não parece tão obscura quando consideramos as lutas que outros sindicatos já tiveram” (Cooper, 1940, 30).

Nas décadas desde a publicação da dissertação de Cooper, a demografia do trabalho doméstico mudou, mas o estigma ainda permanece. As mulheres imigrantes africanas, caribenhas, asiáticas e latino-americanas que fazem trabalho doméstico são o grupo de trabalhadores mais desprotegidos dos Estados Unidos. Elas são excluídas de uma série de proteções trabalhistas básicas concedidas a todos os trabalhadores norte-americanos pelas Normas do Trabalho Justo e Atos de Segurança Social. No entanto, como os temas da dissertação de Cooper, essas mulheres também fazem parte de um movimento de resistência ativo que busca organizar e capacitar as trabalhadoras domésticas para exigir seus direitos. Essas ativistas contemporâneas honram Cooper como a principal mestra do movimento atual. Sua visão, inspirada nas realizações das trabalhadoras domésticas soviéticas, tornou-se a delas.

Seis anos depois que Cooper completou sua dissertação, ela visitou a União Soviética pela primeira vez como parte de uma delegação feminina hospedada pelo Comitê Soviético Anti-Fascista da Juventude (Haviland, 2015, 115). Durante sua estadia de seis semanas, Cooper formou relações duradouras com mulheres líderes comunistas de todo o mundo. Ela ficou fascinada com a transformação da vida das mulheres soviéticas provocada pela Revolução. O comunismo, ela acreditava, poderia “promover a igualdade racial, a descolonização, os direitos das mulheres e a democracia”. A visita de Cooper à URSS reforçou sua crença de que o socialismo era um caminho ideal para a libertação das mulheres negras (McDuffie, 2011, 156; 2012, 14 -15).

A questão da eliminação do estigma racial associado ao trabalho doméstico foi deixada sem resposta na dissertação de Cooper. Mas para outras mulheres ativistas negras que fizeram a viagem para a União Soviética logo após a Revolução, a derrubada do capitalismo nos Estados Unidos não seria possível sem uma análise das hierarquias raciais. Na verdade, mulheres como Williana Burroughs, Dorothy West, Maude White, Louise Thompson Patterson, Hermina Dumont Huiswood e Thyra Edwards fizeram contribuições significativas para a incorporação de análises raciais na ideologia em desenvolvimento do comunismo norte-americano. No quarto congresso da Internacional Comunista (Comintern), formou-se uma “Comissão dos negros”, liderada pelo poeta e ativista americano-jamaicano Claude McKay e pelo co-fundador do CPUSA, nascido no Suriname, Otto Huiswood. Poucos anos depois, no sexto congresso, a Comissão começou a redigir uma resolução sobre o que era conhecido como a “Questão Negra”, a primeira divulgada em 1928, seguida de uma segunda versão em 1930.

A primeira resolução defendia a autodeterminação para os trabalhadores negros na América do Sul, ou o “cinturão negro”. Solicitava o recrutamento agressivo de trabalhadores negros para o Partido Comunista e a eliminação do chauvinismo branco. Das 21 reivindicações separadas feitas pela resolução, apenas uma abordou as experiências únicas das mulheres trabalhadoras negras. Ela indicava:

“As mulheres negras na indústria e nas fazendas constituem uma poderosa força potencial na luta pela emancipação dos negros. Por terem permanecido desorganizadas em uma extensão ainda maior do que os trabalhadores do sexo masculino, elas são a seção mais explorada. A burocracia do A.F. de L. naturalmente exerce em sua direção uma dupla hostilidade, tanto por sua cor quanto pelo sexo. Por isso, torna-se uma tarefa importante do partido trazer as mulheres negras para a luta econômica e política”.

A segunda resolução não fez menção às trabalhadoras negras. Embora elas certamente tenham trabalhado como trabalhadoras de fábricas e meeiras, a maioria das mulheres negras naquela época trabalhava como trabalhadoras domésticas. Ao eliminar as trabalhadoras domésticas desse quadro, declarando-as de alguma forma “fora” da luta econômica e política, as resoluções implicitamente codificaram o proletariado negro como homem.

Para mulheres como Williana Burroughs, uma professora de escola de Nova York e líder da comunidade de Harlem, que esteve presente no sexto congresso em Moscou, a marginalização das mulheres negras na resolução era uma negligência flagrante. Ela era muito vocal sobre suas críticas ao Partido dos Trabalhadores por sua “subestimação do trabalho das mulheres, particularmente das questões das mulheres negras, ilustrando como as mulheres comunistas negras sagazmente levavam suas queixas com as autoridades do Partido Comunista dos Estados Unidos para Moscou para reparação” (McDuffie, 2011, 26). Assim, as mulheres comunistas negras não foram de modo algum dissuadidas pelo chauvinismo branco. Suas experiências em Moscou instilaram a crença de que o “problema da raça” (no Partido e na sociedade) poderia ser eliminado através do comunismo. Além disso, o Comintern reconheceu e respeitou a liderança das mulheres negras, inspirando uma série de ativistas afro-americanos a se mudarem para a Rússia por recomendação de oficiais do Partido. Burroughs fez exatamente isso em 1937 e trabalhou como locutora e editora da transmissão em língua inglesa da Rádio Moscou. Embora possa ser inimaginável para alguns que uma negra norte-americana se tornaria conhecida como a “Voz de Moscou”, para Burroughs a transformação da sociedade soviética também abriu a porta para uma transformação pessoal (Harris, 2009, 24-25, 35).

O mesmo poderia ser dito de Maude White, que foi a primeira mulher afro-americana a matricular-se na Universidade Comunista dos Trabalhadores do Oriente (KUTV). Ela recebeu uma bolsa de estudos do instituto, originalmente fundado para apoiar as organizações comunistas no mundo colonial, e passou três anos no país. De muitas maneiras, a União Soviética era um lugar de encontro para ativistas negros anti-racistas e anti-coloniais norte-americanos. Permitiu que membros da diáspora africana teorizassem sobre as conexões entre os movimentos de resistência negra em todo o mundo. Para mulheres negras como White, viver na URSS promoveu a compreensão de que as mulheres “constituíam a vanguarda para uma mudança transformadora” (McDuffie, 2011, p. 53-55).

Louise Thompson visitou pela primeira vez a União Soviética em 1932. Ela passou três meses viajando dez mil milhas e passando o tempo em seis repúblicas soviéticas. Refletindo sobre sua viagem, Thompson escreveu: “O que eu testemunhei… me convenceu de que só uma nova ordem social poderia remediar as injustiças raciais norte-americanas que eu conhecia tão bem. Eu fui para a União Soviética com inclinações de esquerda; voltei para casa com uma revolucionária comprometida” (McDuffie, 2011, 59). Como Esther Cooper, Thompson acreditava que as mulheres trabalhadoras negras estavam na linha de frente da vanguarda revolucionária negra. As trabalhadoras domésticas estavam no centro de seu ensaio “Rumo a uma amanhecer mais brilhante”, publicado na revista de CPUSA Woman Today, em 1936.

“Aqui estamos”, escreveu ela, “à venda para o dia. Pegue nosso trabalho. Nos dê o que você quiser”. Thompson continuou a argumentar que os mercados de rua de Nova York, onde dezenas de mulheres negras se reuniam todas as manhãs em busca do trabalho doméstico, eram “um monumento gráfico para a seção amarga e explorada da população trabalhadora americana… as mulheres negras”. Ela elogiou o plano do Congresso Nacional Negro para desenvolver sindicatos para trabalhadoras domésticas. Isso levou à formação de sindicatos em cidades como Chicago, Washington e Nova York. Esses primeiros sindicatos se tornariam os sujeitos da dissertação de Esther Cooper. Ao traduzir suas experiências soviéticas no exterior em uma nova visão para as mulheres negras em casa, Thompson, Burroughs, White e Cooper conseguiram combater a marginalização da opressão das mulheres negras na ideologia comunista norte-americana, ao mesmo tempo em que empurraram os movimentos liberatórios negros para a esquerda, ao pedir por abordagens mais radicais para enfrentar o terrorismo racial. Embora os comunistas norte-americanos raramente considerassem as experiências das mulheres negras, a Revolução Russa demonstrou o que era possível e tornou inabalável seu comprometimento para acabar com o capitalismo.

Estas não seriam as últimas mulheres negras a saírem em peregrinação para a Rússia em busca da promessa soviética. No início dos anos 1960, a principal teórica da questão da mulher da CPUSA, Claudia Jones, realizou seu sonho de viajar pelo país. Refletindo sobre sua visita em 1962, ela escreveu: “Eu queria ver por mim mesma a primeira Terra do Socialismo… Eu estava curiosa para ver uma terra que eu já sabia que abominou a discriminação racial na medida em que tornou-a um crime legal e onde a igualdade de todas as pessoas é um axioma reconhecido” (Davies, 2008, 125). Enquanto os acontecimentos de 1917 não revolucionaram imediatamente a vida das mulheres soviéticas, sua promessa permitiu que as mulheres afro-americanas se afirmassem como parte integral de uma movimento global para acabar com o racismo, o sexismo e o imperialismo. Ver a União Soviética significava ver o fim de sua exploração como negros, como mulheres e como trabalhadores, com novos olhos.

Eu conheci Esther Cooper pela primeira vez em 2014 em uma conferência patrocinada pela Aliança Nacional de Trabalhadoras Domésticas (NDWA). Ali, ela estava sendo homenageada por seu compromisso de vida para a equidade, respeito e dignidade das trabalhadoras domésticas. A diretora da NDWA, Ai Jen Poo, citou a dissertação de Cooper como um documento fundacional para o movimento contemporâneo de resistência das trabalhadoras domésticas. As mulheres que se reuniram no Barnard College para a conferência reconheceram que sua difícil condição era o resultado do imperialismo global. Defenderam a organização e a unidade através das fronteiras de raça, idade, língua, cultura e origem nacional. Enquanto a NDWA pode não comemorar o centenário da Revolução Russa da mesma forma que minhas camaradas certamente irão, o próprio fundamento de sua ideologia, a dissertação de Cooper, se tornou possível devido à resistência das trabalhadoras soviéticas. Nesse sentido, a Revolução carrega um certo significado para mim também. Não apenas como uma marxista, mas como filha de quatro gerações de trabalhadoras domésticas negras e ativistas.

Artigo originalmente publicado no site versobooks.com. Tradução de Giovanna Marcelino para a Revista Movimento.


Referências

Boyce Davies, Carole. 2008. Left of Karl Marx: The Political Life of Black Communist Claudia Jones. Durham, North Carolina: Duke University Press.

Harris, Lashawn. 2009. “Running with the Reds: African American Women and the Communist Party During the Great Depression.” Journal of African American History, 94:1, 21–43.

Haviland, Sara Rzeszutek. 2015. James and Esther Cooper Jackson: Love and Courage in the Black Freedom Movement. Lexington, Kentucky: University Press of Kentucky.

Jackson, Esther Cooper. 1940. “The Negro Domestic Worker in Relation to Trade Unionism.” James and Esther Cooper Jackson Papers, Tamiment Library/Robert F. Wagner Labor Archives, Elmer Holmes Bobst Library, New York University.

Kelley, Robin D. G. 1990. Hammer and Hoe: Alabama Communists During the Great Depression. Chapel Hill, North Carolina: University of North Carolina Press.

McDuffie, Erik S. 2011. Sojourning for Freedom: Black Women, American Communism, and the Making of Black Left Feminism. Durham North Carolina: Duke University Press.

McDuffie, Erik S. 2012. “‘For Full Freedom of . . . Colored Women in Africa, Asia, and in These United States . . .’: Black Women Radicals and the Practice of a Black Women’s International.” Palimpsest: A Journal on Women, Gender, and the Black International, 1:1, 1–30.


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