Lênin: relembrando e repetindo

Slavoj Žižek argumenta que a extraordinária coragem e originalidade de Lênin como líder deveu-se à sua determinação em enfrentar a dura realidade do rescaldo da Revolução.

Slavoj Žižek 19 nov 2017, 11:21

No dia 7 de novembro, cumpriu-se o centenário da Revolução de Outubro quando, liderados pelo revolucionário de esquerda Vladimir Lênin, os Bolcheviques depuseram o governo provisório da Rússia. “Lênin 2017: Relembrando, Repetindo e Elaborando”, de Slavoj Žižek, é um novo estudo e coletânea de textos originais dos dois últimos anos da vida política de Lênin. Žižek argumenta que a extraordinária coragem e originalidade de Lênin como líder deveu-se à sua determinação em enfrentar a dura realidade do rescaldo da Revolução. Traçando paralelos entre o capitalismo contemporâneo e a Rússia pós-revolução, Žižek faz uma conjectura de por que o pensamento de Lênin continua importante hoje em dia. Aqui nós compartilhamos um excerto da introdução ao livro.


O título do pequeno texto de Freud de 1914, “Relembrando, Repetindo e Elaborando”, oferece a melhor fórmula sobre o modo como nós devemos nos relacionar – hoje, cem anos depois – ao evento chamado Revolução de Outubro. Os três conceitos mencionados por Freud formam uma tríade dialética: eles designam as três fases do processo analítico e a resistência que intervêm em todas as passagens de uma fase para outra. O primeiro passo consiste em relembrar os eventos traumáticos reprimidos, em trazê-los à tona, o que pode ser realizado pela hipnose. Essa fase imediatamente cai em um impasse: o conteúdo revelado não possui seu próprio contexto simbólico e permanece ineficaz; ele falha em transformar o sujeito e a resistência continua ativa, limitando a quantidade de coisas reveladas. O problema desta abordagem é que ela continua focada no passado e ignora a constelação do presente do sujeito que mantém seu passado vivo, simbolicamente ativo. A resistência manifesta-se na forma da transferência: o que o sujeito não pode lembrar devidamente ela repete transferindo a constelação do passado para o presente (e.g. ele trata o analista como se ele fosse seu pai). Sobre o que o sujeito não pode lembrar devidamente ela atua, reedita, e quando o analista mostra isso a intervenção dela encontra resistência. Elaborar [working through] é trabalhar através [working through] da resistência, transformando-a de em obstáculo em recurso da análise, e essa viragem é auto-reflexiva em um sentido propriamente hegeliano: resistência é uma ligação entre objeto e sujeito, entre passado e futuro, prova de que nós não apenas somos aficionados pelo passado mas como essa fixação é um efeito do impasse do presente na economia libidinal do sujeito.

Em relação a 1917, nós também começamos relembrando a verdadeira história da Revolução de Outubro e, é claro, a sua inversão no estalinismo. O grande problema ético-político dos regimes comunistas pode ser melhor captado pelo título “procurando pais, procurando crimes”. Um regime comunista pode sobreviver ao ato de confrontar abertamente o seu passado violento em que milhões de pessoas foram presas e assassinadas? Se sim, de que forma em que grau? O primeiro caso paradigmático de uma confrontação como essa foi, é claro, o relatório “secreto” sobre os crimes de Stálin, de Nikita Khrushchev, ao vigésimo Congresso do Partido Comunista Soviético em 1956. A primeira coisa que nos atinge nesse relatório é o enfoque na personalidade de Stálin e a concomitante falta de qualquer análise sistemática sobre o que tornou possível esses crimes. A segunda característica é a tentativa extenuante de manter as Origens límpidas: não apenas a condenação a Stálin fica limitada à prisão e assassinato de oficiais militares e membros do alto escalão do Partido na década de 1930 (onde as reconstituições foram muito seletivas: Bukharin, Zinoviev, etc., continuaram a ser pessoas esquecidas, sem falar o Trostsky), ignorando a grande fome do final dos anos 1920; mas o relatório é também apresentado como se anunciasse o retorno do Partido às suas “raízes leninistas”, de modo que Lênin aparece como a Origem pura que foi destruída ou traída por Stálin. Em sua análise atrasada mas eficaz do relatório, escrita em 1970, Sartre observou que:

É verdade que Stálin ordenou massacres, transformando a terra da revolução em um estado policial; ele estava realmente convencido de que URSS não chegaria ao comunismo sem passar pelo socialismo dos campos de concentração. Mas como uma das testemunhas sublinha com toda razão, quando as autoridades acham que é útil falar a verdade é porque não encontraram nenhuma mentira melhor. Imediatamente essa verdade, vinda das bocas oficiais, torna-se uma mentira corroborada pelos fatos. Stálin era um homem perverso? Certo. Mas como a sociedade soviética o levou ao trono e o manteve lá por um quarto de século?

De fato, não seria o destino posterior de Khrushchev (ele foi deposto em 1964) prova do sofisma de Oscar Wilde de que se alguém fala a verdade será cedo ou tarde apanhado? A análise de Sartre, no entanto, falha em um ponto crucial: mesmo de Khrushchev estivesse falando “falando em nome do sistema” – “a máquina era barulho mas seu operador chefe não; esse sabotador havia aliviado o mundo de sua presença e tudo estava correndo suavemente de novo” – esse relatório teve um impacto traumático e sua intervenção pôs em movimento um processo que ao final derrubou o próprio sistema – uma lição que vale a pena ser relembrada hoje. Nesse exato sentido, o discurso de Khrushchev denunciando os crimes de Stálin em 1956 foi um verdadeiro ato político – a partir do qual, como William Taubman afirmou, “a União Soviética nunca se recuperou totalmente, e nem ele próprio.” Embora os motivos oportunistas para este movimento ousado sejam bastante simples, ali havia claramente mais do que simples cálculo desse tipo, um tipo de excesso imprudente que não pode ser explicado por um raciocínio estratégico. Após o discurso, as coisas nunca mais foram como antes, o dogma fundamental da liderança infalível tinha sido fatalmente destruído; não é de admirar que, em reação ao discurso, toda a “nomenklatura” afundasse em paralisia temporária. Durante o próprio discurso, cerca de uma dúzia de delegados sofreram colapsos nervosos e tiveram de ser levados para receber ajuda médica; alguns dias depois, Boleslaw Beirut, o secretário geral de linha dura do Partido Comunista da Polônia, morreu de ataque do coração e o escritor estalinista exemplar Alexander Fadeyev suicidou-se. A questão não é que eles eram “comunistas honestos” – a maioria deles eram manipuladores brutais que não guardavam ilusões subjetivas sobre a natureza do regime soviético. O que entrou em colapso foram as suas ilusões “objetivas”: a figura do “grande Outro” que forneceu o pano de fundo contra o qual eles conseguiram perseguir o seu impulso cruel para o poder. O Outro sobre o qual eles transpuseram sua crença, que, como se acreditava em seu favor, seu sujeito-que-deveria-acreditar, desintegrou-se.

A aposta de Khrushchev era a de que sua confissão (limitada) fortaleceria o movimento comunista – e em estrito senso ele estava certo. Deve-se sempre lembrar que a era Khrushchev foi a última de autêntico entusiasmo comunista, de crença no projeto comunista. Quando, durante a visita aos Estados Unidos em 1959, Khrushchev fez sua famosa declaração de formiga ao público americano de que “seus netos serão comunistas”, ele efetivamente exprimiu a convicção de toda a nomenklatura soviética. Após a sua queda em 1964, um cinismo resignado prevaleceu até a tentativa de Gorbachev de uma confrontação mais radical com o passado (as reconstituições então incluíram Bukharin mas – para Gorbachev pelo menos – Lênin continuou a ser o ponto de referência intocável e Trotsky continuou a ser uma personalidade ignorada.)

Com as “reformas” de Deng Xiaoping, os chineses tomaram um caminho radicalmente diferente, quase oposto. Enquanto no nível da economia (e, até certo ponto, cultura) o que geralmente é entendido como “comunismo” tenha sido abandonado, e os portões tenham sido abertos à “liberalização” ocidental (propriedade privada, lucro privado, individualismo hedonismo, etc.), o Partido, no entanto, manteve sua hegemonia político-ideológica – não no sentido da doutrina ortodoxa (no discurso oficial, a referência confucionista à “Sociedade Harmônica” praticamente substituiu qualquer referência ao comunismo), mas no sentido de manter a hegemonia política incondicional do Partido Comunista como a única garantia da estabilidade e prosperidade chinesa. Isso requereu monitoramento e regulação próximas do discurso ideológico sobre a história chinesa, especialmente a história dos últimos dois séculos: a história infinitamente alterada pelos meios de comunicação e livros do Estado é a da humilhação da China na Guerra do Ópio que só acabou com a vitória comunista em 1949, levando à conclusão de que ser patriótico é apoiar a dominação do Partido. Quando a história ganha esse papel de legitimação, é claro, não pode tolerar qualquer auto-crítica substancial; os chineses aprenderam a lição do fracasso de Gorbachev: reconhecimento completo dos “crimes fundadores” só levariam o sistema todo abaixo. Esses crimes deveriam então permanecer negados: é verdade, alguns “excessos” e “erros” maoístas foram denunciados (o Grande Salto para Frente e a fome devastadora que se seguiu; a Revolução Cultural) e a avaliação de Deng sobre o papel de Mao (70% positiva, 30% negativa) é consagrada como a fórmula oficial. Mas essa avaliação funciona como uma conclusão oficial que torna qualquer elaboração mais profunda supérflua: mesmo que Mao seja 30% ruim, todo o impacto simbólico dessa admissão é neutralizado, de modo que ele pode continuar a ser celebrado como o pai da Nação, seu corpo em um mausoléo e sua imagem em qualquer nota de banco. Nós estamos lidando aqui com um caso claro de negação fetichista: ainda que saibamos muito bem que Mao cometeu erros e causou imenso sofrimento, sua imagem continua intocada por esses fatos. Por esse meio, os comunistas chineses podem pegar seu bolo e comê-lo: as mudanças radicais trazidas pela “liberalização” econômica são combinadas à continuação da dominação do mesmo Partido de antes.

O estudo maciço e meticulosamente documentado de Yang Jisheng, “Lápide: A História Não Contada da Grande Fome de Mao”, oferece um caso exemplar de relembrança: o resultado de quase duas décadas de pesquisa, ele aponta como 36 milhões o número de “mortes prematuras” entre 1958 e 1961. (A versão oficial é de que o desastre foi causado 30% por causas naturais e 70% por falha humana – a exata inversão do julgamento de Deng sobre Mao). Com os privilégios concedidos a um jornalista sênior da Xinhua, Yang pôde consultar arquivos do Estado por todo o país e formar o mais completo quadro da Fome já feito por um pesquisador, local ou estrangeiro. Ele recebeu a ajuda de dados oferecidos por colaboradores de dentro do sistema – demógrafos que trabalharam duro e em segredo por anos nas agências governamentais para compilar os números de baixas humanas; servidores locais que mantiveram registros horrorosos dos eventos em seus distritos; os guardadores de arquivos das províncias que ficaram felizes em abrir suas portas, com um aceno de cabeça e uma piscadela, a um camarada confiável que pretendia pesquisar sobre a história da produção de grãos na China. A reação? Em Wuhan, uma cidade grande na China central, o escritório do Comitê de Gestão Integral da Ordem Social colocou “Lápide” na lista de “livros obscenos, pornográficos, violentos e não saudáveis para crianças” a serem confiscados. Em outro lugar, o Partido matou a “Lápide” em silêncio, banindo qualquer menção a ele na mídia mas abstendo-se de chamar a atenção atacando o próprio livro. Mas Yang ainda vive na China, aposentado, sem ser incomodado, publicando ocasionalmente em jornais científicos. Dentre outras importantes conclusões, Yang argumenta que uma das razões para a fome está na aplicação de ciência ruim: o governo central decretou várias mudanças em técnicas agrícolas com base nas idéias do pseudo cientista ucraniano Trofim Lysenko. Uma dessas ideias foi o plantio próximo, em que a densidade das mudas é primeiro triplicada e então dobrada novamente. Transpondo a solidariedade de classe para a natureza, a teoria era a de que as plantas poderiam não competir entre si mas ajudar umas as outras – na prática, é claro, elas competiram, o que atrofiou o crescimento e resultou em colheitas menores.

É assim que a combinação entre falsa relembrança e repetição operam no que diz respeito ao passado comunista, mas tal falsificação não está restrita apenas aos comunistas que se recusam em acertar contas com seu passado e então condenam-se a si mesmos a repeti-los. O padrão neoliberal ou conservador de demonização da Revolução de Outubro também perde o potencial emancipador que claramente é discernível aí, reduzindo-o a uma brutal tomada do poder do Estado. A tensão entre essas duas dimensões da Revolução não significa que a virada estalinista foi um desvio secundário, visto que pode-se bem argumentar que ela era uma possibilidade inerente ao projeto bolchevique, o que significa que ele estava condenado desde o seu início. Por isso que o projeto era genuinamente trágico: uma visão autenticamente emancipatória condenada à falência por sua própria vitória.

Neste ponto é que a elaboração entra como um novo entendimento radical do comunismo, reatualizando-o para os dias atuais. E é por isso que apenas os fiéis ao comunismo podem implantar uma crítica verdadeiramente radical sobre a triste realidade do estalinismo e seu florescimento. Vamos encarar: hoje em dia Lênin e seu legado são percebidos como irremediavelmente datados, pertencentes a um “paradigma” extinto. Não apenas Lênin era compreensivelmente cego a muitos problemas que agora são centrais para a vida contemporânea (ecologia, lutas por emancipação sexual, etc.), mas também sua brutal prática política está totalmente fora de sintonia com as atuais sensibilidades democráticas, sua visão da nova sociedade como um sistema industrial centralizado guiado por um Estado é simplesmente irrelevante, etc. Em vez de tentar desesperadamente salvar o núcleo autêntico leninista do lodo estalinista, não seria mais aconselhável esquecer de Lênin e retornar a Marx, procurando em seu trabalho as raízes do que saiu errado nos movimentos comunistas do século XX?

No entanto, a situação de Lenin não foi marcada precisamente por uma desesperança semelhante? É verdade que a esquerda atual está vivendo a experiência destruidora do fim de uma era inteira do movimento progressista, uma experiência que a obriga a reinventar as coordenadas mais básicas do projeto. Mas uma experiência exatamente homóloga foi o que deu vida ao leninismo. Lembre do choque de Lênin quando, no outono de 1914, todos os partidos socialdemocratas (com a honrosa exceção dos bolcheviques russos e da socialdemocracia sérvia) optaram pela “linha patriótica”. Quando o jornal diário do Partido Socialdemocrata Alemão, o Vorwärts, noticiou que os socialdemocratas haviam votado a favor dos créditos de guerra no Reichstag, Lênin pensou que isso havia sido forjado pela polícia secreta russa para enganar os trabalhadores russos. Numa era em que um conflito militar dividia o continente europeu pela metade, como era difícil recusar a noção de que deveria-se tomar um dos lados e rejeitar o “fervor patriótico” em seu próprio país! Como grandes mentes (inclusive Freud) sucumbiram à tentação nacionalista, mesmo que apenas por algumas semanas!

O choque de 1914 foi – para colocar nos termos de Alain Badiou – um desastre, uma catástrofe na qual um mundo inteiro desapareceu: não apenas a fé idílica da burguesia no progresso, mas também o movimento socialista que a acompanhava. Mesmo o próprio Lênin perdeu o seu chão – existe, em sua reação desesperada “Que Fazer?”, nenhuma satisfação, nenhum “Eu avisei!” Esse momento de Verzweigung [do alemão, ramificação], essa catástrofe, abriu espaço para o evento leninista, para romper com o historicismo evolucionista da Segunda Internacional – e ele foi o único que esteve a altura desta abertura, o único a articular a Verdade à catástrofe. Nesse momento de desespero nasceu o Lênin que, desviando de uma leitura estreita da Lógica de Hegel, foi capaz de discernir a oportunidade única para a revolução.

Hoje, a esquerda está em uma situação que assemelha-se estranhamente ao leninismo. Isso não significa um retorno a Lênin. Repetir Lênin é aceitar que “Lênin está morto”, que sua solução específica falhou, que até falhou monstruosamente. Repetir Lênin significa deve-se distinguir entre o que Lênin de fato fez do campo de possibilidades que ele abriu, tomar conhecimento da tensão em Lênin entre suas ações e outra dimensão, o que estava “em Lênin para além do próprio Lênin”. Repetir Lênin não é repetir o que Lênin fez, mas o que ele falhou em fazer, suas oportunidades perdidas.

(Artigo publicado originalmente na Verso e traduzido por Gustavo Rego para a Revista Movimento)


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