Os desafios da esquerda radical em tempos de crise política
Documento de edição especial da Revista Movimento em que apresentamos nossas contribuições para as discussões do VI Congresso do PSOL.
O ano de 2017 encerra-se com a tentativa do governo de recuperar a iniciativa aprovando sua nova proposta de reforma da previdência. O governo quer passar à ofensiva, equilibrando-se para escapar dos novos escândalos de corrupção, nos quais o PMDB do Rio, parte fundamental da coalizão de poder, está sendo diretamente envolvido.
Uma visão mais ampla sobre último período foi publicada em nossa tese para o VI Congresso, apresentada ao conjunto da militância nas plenárias e reuniões. Aqui, pode-se ler a versão na íntegra da tese Para fazer do PSOL uma alternativa. Aqui queremos socializar breves notas de atualização da situação política e dos desafios.
Com esta edição especial da Revista Movimento, pretendemos apresentar nossas contribuições para as discussões do VI Congresso do PSOL.
1) Um longo interregno
O ciclo anterior de acumulação política do movimento de massas dirigido pelo PT esgotou-se. Há tempos, afirmamos: estamos vivendo o esgotamento completo do modelo que organizou o espaço político e social no Brasil nas últimas décadas. As determinações mais gerais da situação políticas estão marcadas por esta condição: está se exaurindo um ciclo político, que organizou o sentido geral da luta política do país após a queda da ditadura sem que, no entanto, ainda tenhamos um novo vetor organizado para superar o impasse e abrir um novo ciclo consolidado.
Referimo-nos, aqui, à célebre citação de Gramsci, dos Cadernos do Cárcere, quando trata do colapso de um “sistema de poder” sem que existam condições de se consolidar um sucessor: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno se verificam os fenômenos mórbidos mais variados”.
Utilizamos o conceito de “interregno” associando-o ao “fim de ciclo”. No Brasil e na América Latina, o ciclo anterior de governos – embora diferentes entre si –, oriundos em partidos de esquerda e com base na classe trabalhadora e setores populares, encerrou-se sem que ainda tenhamos um novo ciclo ordenado. Por isso, a tarefa da esquerda socialista é construir o debate – no âmbito da representação, do enraizamento e do programa – para disputar o sentido do novo ciclo de reorganização profunda da esquerda. No Peru e no Chile, tanto no terreno eleitoral como no terreno das lutas, aparecem alternativas por fora da “velha esquerda”, como o Movimento Novo Peru e a Frente Ampla. Estas experiências latino-americanas podem iluminar, com seu exemplo, a luta política em curso no Brasil e, por isso, devem ser acompanhadas e debatidas pela vanguarda socialista brasileira.
2) Temer, a ponte da burguesia para a austeridade
A continuidade de Michel Temer à frente do governo – mesmo com escândalos superiores aos enfrentados por Dilma, com a indignação das ruas e com uma impopularidade recorde – está na definição do caráter do governo. É um tipo de governo reacionário, fruto de um golpe parlamentar, menos vinculado a uma base de apoio de massas, apesar da ampla maioria parlamentar no Congresso. Um governo diretamente pró-imperialista, que tem seu núcleo fundamental nos atores mais arcaicos do regime, com o PMDB sendo seu principal motor e alicerce.
Trata-se de um governo que busca uma “fuga pra frente” depois da grave crise econômica que o país viveu. Sem necessidade de obter respaldo popular, Temer precisa cumprir seu programa: estabelecer novas medidas para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro, por meio de sua “ponte para o futuro”, aproveitando-se da instabilidade generalizada até iniciar-se um novo governo capaz de organizar nova hegemonia. Em linhas gerais, seus objetivos são a precarização das relações de trabalho, diminuindo o chamado “custo Brasil”; o entreguismo e a privatização do patrimônio público e nacional; a contenção dos gastos públicos e a diminuição da cobertura previdenciária; e, por fim, frear e “estancar” as medidas da Operação Lava Jato, buscando uma anistia que resgate o regime político de sua bancarrota.
Apesar da pressão da opinião pública, o governo conduziu, com sua base de apoio parlamentar, uma reforma política que não resolve em nada as contradições do atual regime. O governo não pôde impor uma derrota completa ao movimento democrático de pressão popular e também da opinião pública ao não poder aprovar as medidas de anistia. Entretanto, a chamada “casta” terminou bastante resguardada com a reforma. A cláusula de barreira, num formato “suave”, manteve seu caráter proscritivo e respondeu a um setor que pede um número menor de partidos. Por outro lado, o fundo bilionário eleitoral é um escárnio e foi um gesto de resiliência da própria casta. A votação do Senado a favor de Aécio foi parte disso. Outro exemplo deste senso de autopreservação foi o da ALERJ, quando reviu a decisão do TRF, revogando a prisão dos três líderes do PMDB fluminense. Apesar de, na sequência, decisão judicial ter corretamente cassado a decisão escandalosa da ALERJ, o cerco à Operação Lava Jato segue. O duelo de Temer contra o ex-Procurador Geral da República Rodrigo Janot foi também parte desse processo.
Tivemos um primeiro semestre “quente”, no qual, a partir da manifestação das mulheres de 08 de março, a organização da resistência deu um salto, tendo como ápice a greve geral de 28 de abril. A revelação dos escândalos da JBS – seguida por uma divisão da burguesia, em que se abriu a possibilidade da queda de Temer – e a marcha dos cem mil a Brasília colocaram a necessidade de uma nova greve geral, que poderia ser superior à de abril. O grande acordo nacional costurado por Gilmar Mendes na absolvição da chapa Dilma/Temer, combinado com o desmonte da greve de 30 de junho pelas centrais sindicais majoritárias, esvaziou o movimento, dando estabilidade para Temer prosseguir seu plano de reformas, compactando com os setores da burguesia para “ir em frente”, terminando o ano com medidas amargas, como a reforma da previdência, no horizonte.
A questão sucessória ainda é a maior interrogante da situação. Com diversos balões de ensaio, como Doria e depois Huck, a burguesia ainda segue procurando definições. Os tucanos se alinharam com Alckmin e parecem se preparar para unir-se em torno de seu nome. E a carta na manga de todo um setor é sempre Henrique Meirelles, nome prioritário das finanças e de uma forte parcela da burguesia.
3) O PSOL não pode seguir perdendo oportunidades: é preciso afirmar uma alternativa!
O PSOL cresceu em todo o país porque foi fundado na hora certa, antes do escândalo do mensalão, quando o PT no governo federal deixou claro que aceitara ser gerente dos interesses capitalistas, conversão expressa programaticamente na “Carta ao povo brasileiro” escrita por Palocci e Lula, e na prática demonstrada pela continuidade do plano de FHC/FMI e na primeira reforma da previdência aprovada em 2003. Ter fundado o PSOL naquele momento afirmou, desde então, que outra esquerda era necessária. A eleição de 2006, por sua vez, mostrou que o PSOL não havia nascido para ser linha auxiliar do PT.
Ainda que nosso partido tenha crescido e hoje seja uma referência para setores de massas, no último período nosso partido está perdendo espaço, o que é bastante visível na disputa nacional. Nas pesquisas de intenção de voto para a presidência, o PSOL não aparece. O fato de que o partido não tenha decidido um nome para a disputa dá a impressão para muitos de que o PSOL está no campo de Lula, de que o partido está esperando se o ex-presidente poderá ou não ser candidato para manifestar-se. Assim, o partido está diluindo seu perfil e deixando de ser um polo. Ao não se apresentar um polo claramente de esquerda, fica mais livre o caminho para a extrema direita crescer com Bolsonaro. Não poderia ser diferente, já que há uma parte massiva de nosso povo indignada com todo o sistema político e apenas Bolsonaro, embora seja parte do mesmo, vocaliza uma orientação que aparenta ser contestatória. Nem todos no PSOL percebem que o partido está perdendo espaço porque nosso crescimento – que poderia ser bem maior – é real, na esteira da falência do PT e como resultado de nosso trabalho.
O caso do Rio de Janeiro é excepcional. Afinal, além de termos uma militância ativa, como temos em muitos estados, no Rio o PT foi liquidado há muitos anos, desde 1998, quando Lula e José Dirceu fizeram a intervenção contra Vladimir Palmeira e o PMDB foi agora liquidado pela profunda crise no Estado e pela Operação Lava Jato.
Em estados como São Paulo, onde o PT existe e tem força de aparelho, a situação do PSOL é muito mais difícil para ser reconhecido como um polo alternativo. A eleição da prefeitura da capital paulista mostrou isto no terreno eleitoral, quando Haddad do PT teve 13% e Erundina, embora tenha sido até prefeita da cidade nos anos 80, terminou com 3%. Uma situação intermediária está em Porto Alegre, onde o PT sempre foi forte, mais forte até do que na capital paulista, já que foi o partido do orçamento participativo e com a regional mais reconhecida à esquerda e preservada de escândalos de corrupção. Mesmo assim, o PSOL tem conseguido disputar quase que de igual para igual: nas eleições para a prefeitura de Porto Alegre, o PSOL e o PT disputaram duramente até o final, com Raul Pont do PT tendo terminado com 16% e Luciana Genro do PSOL com 12%.
No plano nacional, na disputa presidencial, o PSOL tem deixado todo espaço para o PT. O PSOL está sumido, nem sequer apresenta candidatura. Se isto não parece grave no Rio de Janeiro – porque o partido está muito forte no Rio e não tem o PT para disputar – no país isto trará repercussão negativa no terreno eleitoral.
A ausência do PSOL, entretanto, não é casual. Isto é resultado da linha política de uma parte importante da direção do partido. Correntes como a US até hoje defendem o programa democrático-popular que foi o programa/estratégia do PT durante os anos 90. Dirigentes desta corrente romperam com o PT quando apareceu o escândalo do mensalão e temeram por um desgaste irreversível do PT junto a seu eleitorado. Como eram da esquerda do PT, viram o PSOL como alternativa e se incorporam ao PSOL, ajudando com este passo o partido a ganhar densidade e a crescer. Mas vieram para o PSOL defendendo o programa democrático e popular, um programa cuja essência é considerar que a estratégia é ganhar espaços institucionais para reformar o Estado.
Não é o caso, aqui, de se fazer um debate sobre o significado deste programa nem de debater pormenorizadamente neste espaço os motivos pelos quais a falência do PT tem tudo a ver com a aplicação deste programa. Essa formulação começa a trazer prejuízos também para o PSOL. A ideologia petista ganhou força em nosso partido. Por isso até hoje não temos candidatura presidencial. Também é uma das razões que explica por que o partido vacilou na luta contra a corrupção. Se os discursos dados por muitos dirigentes da US nos diretórios e congressos regionais fossem dados nas ruas, o partido seria conhecido como anti-Lava Jato. Felizmente isto não ocorreu. Os parlamentares nacionais, sobretudo o companheiro Chico Alencar, não reproduziram no Congresso o discurso que dirigentes da US reproduziram internamente.
4) O VI Congresso do PSOL e batalha pelo programa
Uma das polêmicas centrais do congresso do PSOL é o debate do programa. Isto é um ponto importante de unidade de toda a esquerda partidária, agrupada no manifesto “É tempo de partido”. Consideramos fundamental também fazer este debate com o conjunto do ativismo no país.
A visão da estratégia democrática e popular sustentada até os anos 90 pelo PT coloca a importância de ganhar espaços na “institucionalidade”, com a construção de um programa “possível”, de melhorias a partir de mandatos parlamentares e administrações locais. Isso gerou acomodação e pactos que resultaram na conciliação de classes, tão nefasta para os interesses da maioria da população quanto para o terreno da consciência e da organização de classe.
A edição de alianças sem base programática, apenas para reproduzir espaços de poder, gera perigosos desvios como o da participação do PSOL na prefeitura de Macapá, onde o partido é parte de uma administração que vai da Rede ao DEM, descaracterizando por completo o lugar do PSOL como projeto alternativo e de esquerda. Ainda pior, a adesão à prefeitura de Macapá e a mobilização de filiados em massa por meio de seu aparato são parte fundamental da distorção da correlação de forças nos processos congressuais do partido.
O Partido necessita de mais democracia interna para melhor se organizar, dando espaço e direito para os militantes decidirem de fato os rumos da vida partidária.
Acreditamos que, dentro do PSOL, devemos nos vincular a novas ferramentas de comunicação, interagindo com um novo tipo de ativismo, buscando integrar numa noção de totalidade as demandas por democracia real, de forma a ir à raiz das contradições da sociedade brasileira.
Necessitamos de um programa de caráter transicional, de separação absoluta da casta política governante, que seja capaz de atuar em quatro grandes eixos:
I) Um novo programa econômico, que taxe as grandes fortunas, lucros e dividendos, reposicionando o orçamento público em relação às dívidas e isenções fiscais das grandes empresas e bancos, como forma de impor uma nova agenda econômica, fiscal e tributária no Brasil. Assim, seremos capazes de anular as reformas de Temer como a nefasta PEC do “teto” de gastos;
II) A defesa dos direitos sociais fundamentais, como emprego, salário, moradia e terra, enfrentando os planos da burguesia de ampliação da produtividade por meio do achatamento salarial, flexibilização de direitos trabalhistas e aumento do exército de reserva. É necessário terminar com a reforma trabalhista de Temer e aplicar um programa de emergência para combater o desemprego e a miséria que ameaçam milhões de brasileiras e brasileiros;
III) Uma democracia real verdadeira, com novas instituições, a partir da luta de massas e sem tréguas contra a corrupção – seja dos agentes corruptos ou das corporações corruptas – com a expropriação das empresas envolvidas nestes delitos. Defendemos um novo modelo participativo e vivo de política, com a convocação de um processo popular constituinte para organizar uma nova institucionalidade e uma nova representação política contra a velha casta; e
IV) A defesa radical dos direitos civis e democráticos. É preciso apoiar-se na unidade na diversidade das lutas das mulheres, de LGBTS, das negras e negros e dos povos originários para defender claramente, em nosso programa, suas formulações. Esta é a melhor forma de enfrentar o obscurantismo e o reacionarismo instrumentalizado pela direita brasileira e pelo protofascismo de Bolsonaro.
Evidentemente, estes são apenas quatro eixos que devem se desdobrar em posições e reivindicações específicas. Também é preciso tratar de muitas outras questões, como a propriedade dos meios de comunicação, a necessidade de uma profunda reforma judicial e penitenciária, a desmilitarização das polícias e a legalização das drogas, um modelo libertário e democrático de cultura… Para não ser extenso neste documento, remetemos também aos diversos apontamentos programáticos que também em nossa tese para o VI Congresso.
5) Um desafio para a esquerda radical: ampliar o PSOL e fortalecer sua ala anticapitalista
Nosso desafio é construir o PSOL pela base, ganhando os melhores ativistas para seu projeto. Para isto, temos o Rio de Janeiro como um espelho e somos otimistas com a construção de um polo democrático no país, capaz de representar no terreno político e eleitoral as demandas mais sentidas pelo povo. O papel dos parlamentares do PSOL, na Câmara dos Deputados, nas assembleias legislativas e nas câmaras municipais tem sido de tribunos populares e da defesa da luta por direitos.
Queremos e devemos levar o partido aos bairros pobres da periferia, aos artistas da cultura popular como o hip-hop, às categorias organizadas em sindicatos de trabalhadores, às escolas, universidades, ocupações e assentamentos rurais e urbanos. A tarefa do enraizamento segue sendo a mais importante para que o PSOL se torne uma alternativa. Apenas um PSOL militante pode estar à altura dos enfrentamentos cotidianos que a classe trabalhadora realiza. Necessitamos de um Partido com um programa de ação, para ser um Partido inserido na luta de classes.
Entretanto, como parte dos projetos amplos de esquerda, o PSOL também precisa ter reforçada sua ala esquerda e anticapitalista. O debate mais sólido sobre a estratégia e sobre a necessidade de uma ruptura deve começar com a “batalha pelo programa”. Acreditamos que cabe às organizações que se reivindicam como parte da esquerda revolucionária maior troca e possibilidade de avanços com um debate programático aberto. Nenhuma corrente ou direção política pode, na atual etapa, dar conta sozinha das dificuldades e responsabilidades que a esquerda socialista enfrenta no país.
Na vitalidade da base militante do PSOL depositamos as expectativas do avanço de uma maior conformação que supere a fragmentação de um período de reorganização que apenas começa. E, como parte dele, estamos jogados na construção de uma alternativa de massas, inspirados nos que há cem anos se atreveram a tanto na grande Revolução de Outubro.
29 de novembro de 2017.