A luta pela sobrevivência: o desafio de ser mulher negra no Brasil

Neste artigo, a autora oferece uma leitura estrutural do racismo brasileiro buscando oferecer caminhos para o combate da exploração da mulher negra.

Caroline Coelho Vilar 26 jan 2018, 13:07

Onde estão as mulheres negras?

Num país onde 23 mil jovens negros são mortos por ano segundo o Mapa da Violência, esse é um questionamento fundamental para se entender os recentes dados divulgados no Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência (IVJ) 2017, lançado no Dia Internacional dos Direitos Humanos pela UNESCO. O relatório, que pela primeira vez abordou questões de gênero, revela uma realidade brutal sobre o espaço ocupado pelas mulheres negras na sociedade brasileira ao evidenciar que uma mulher jovem e negra tem mais que o dobro de possibilidade de ser vítima de homicídio em relação a uma jovem mulher branca. No Rio Grande do Norte essa diferença chega a ser oito vezes superior as chances de jovens brancas serem assassinadas.

Tais dados demonstram ser impossível dissociar a realidade vivida por jovens negras hoje – e consequentemente a perversa vulnerabilidade social a qual estão submetidas no Brasil – do fato deste ter sido o último país do mundo a abolir oficialmente a escravidão, instituição específica de raça, classe e gênero, como define a socióloga feminista estadunidense Patricia Hill Collins, que fundamentou a natureza das relações de dominação e subordinação que operavam na escravidão e que refletem até hoje os índices de assassinato das mulheres negras.

Nesse breve período de 129 anos de “liberdade”, pouco se avançou em políticas públicas para uma ampla conscientização antirracista – como defende Angela Davis enquanto fundamental para acabar com o racismo – e tal omissão é conveniente com a continuidade da exploração da classe trabalhadora, que é em sua maioria preta, periférica e “não abastada”. Os dados recentes do IBGE em 2016 demonstram que, de forma não acidental, negros estão muito aquém de uma equiparidade salarial no mercado de trabalho, ganhando somente 59% em média do rendimento de pessoas brancas. Já as experiências violentas a qual a juventude negra é exposta devido ao racismo estrutural enraizado política, econômica e institucionalmente na sociedade, se acentuam devido ao processo de retirada de direitos e abandono total do Estado, que ignora as condições precárias da educação pública, do sistema de saúde público e os índices de encarceramento e extermínio das juventudes nas periferias.

Nesse cenário, são as mulheres negras que de forma acentuada sentem o impacto dessas políticas, interseccionando em si as estruturas racistas, patriarcais, sexistas e heteronormativas, pois há uma questão de gênero fundamental nessa equação – a qual coloca as mulheres numa condição subalterna e passível de objetificação. Como o próprio levantamento do IVJ 2017 aponta, os índices evidenciam a brutal desigualdade que atinge negros e negras até na hora da morte. E essa desigualdade é sentida de forma substancial pelas mulheres negras, uma vez que políticas reacionárias de criminalização do aborto, como a PEC 181 e o estatuto do nascituro, somadas ao descaso com as políticas já implementadas contra a violência doméstica, por exemplo, resultam numa conta cara e inacessível, que as mulheres negras infelizmente pagam com a vida.

Caminhos para o combate da exploração da mulher negra

“O ponto de partida de qualquer exploração na vida das mulheres negras na escravidão seria uma avaliação de seu papel enquanto trabalhadora” Angela Davis – Mulheres, raça e classe.

As políticas de precarização e de retirada de direitos da classe trabalhadora escancaram a face real da “modernização” das relações de trabalho, que na verdade são reflexos escravagistas nas decisões tomadas pela casta política branca, corrupta e elitista contra a população negra. De forma cruel, medidas como a Reforma Trabalhista e a Lei da Terceirização, aprovadas em 2017 pelo ilegítimo Michel Temer, validam o direcionamento das mulheres negras aos postos mais precarizados de trabalho, como os serviços gerais e o trabalho doméstico.

Essa orientação é comprovado estatisticamente: de acordo com o instituto IPEA, em 2011 a taxa de escolarização de mulheres brancas foi de 23,8%, enquanto de mulheres negras somente 9%, comprovando a escassez de acesso dessas mulheres negras à educação. A Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) de 2013, aponta que 70,6% das mulheres negras que trabalham nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador, São Paulo e Distrito Federal estão majoritariamente nos setores de serviços terceirizados, assim como os dados da pesquisa do Sindicato das Empresas de Asseio e Conservação do Estado do Rio de Janeiro (SEAC- RJ) apontam que 92% dos trabalhadores nos serviços de limpeza terceirizados são mulheres e 62% são negros.

Essa cruel exploração, que transfere a renda já insuficiente da trabalhadora para o empresário, diminui os custos do trabalho e aumenta o lucro da burguesia tirando sua responsabilidade com outros encargos trabalhistas, encontra nas mulheres negras um alvo certeiro. Entender essas políticas enquanto racistas e classistas é essencial, pois a própria sociedade burguesa brasileira se fundamentou no racismo e no escravagismo; suas estratégias perduram e se atualizam, ainda de forma velada, como um ataque sorrateiro à negritude e às mulheres negras. Se o capitalismo se alimenta da exploração crescente da força de trabalho, também encontra nas estruturas do racismo e o machismo a mão de obra barata que sustenta seus pilares, condicionando as mulheres negras a uma realidade de marginalização, retirando qualquer perspectiva de futuro possível.

Se é importante refletir sobre onde estão as mulheres negras hoje, mais importante ainda é refletir onde estiveram em toda a sua construção enquanto mulheres. As experiências acumuladas pelas mulheres negras, segundo Angela Davis, historicamente se basearam em seu papel enquanto trabalhadoras intermitentes, que labutaram sob o chicote de seus senhores, sendo estupradas, criando filhos que não eram seus e vendo os seus próprios serem vendidos como mercadorias. Essa força de sobrevivência, transmitida por gerações, carregam um legado duro de perseverança, autossuficiência tenacidade e resistência, um legado que Davis define como os parâmetros para uma nova condição da mulher. Ser mulher negra no Brasil, ainda segundo Davis, já é em si resistência. E já traz, por si, mesmo que não de maneira organizada, um sentimento anticapitalista.

Por um feminismo classista que se compromena com as mulheres negras

“Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?” Sojourner Truth, abolicionista americana que nasceu escravizada, em uma convenção de mulheres onde era a única mulher negra, em Akron, Ohio em 1851.

Guardada as devidas diferenças temporais e geográficas, o discurso de Sojourner Truth, que salvou a conferência de Akron, uma vez que ela era a única mulher negra presente, nos dá lições sobre as separações históricas entre as mulheres negras das mulheres brancas.

Embora culturalmente divergente em determinados aspectos, o histórico de construção social das mulheres negras americanas e das brasileiras partem de uma localização comum enquanto escravizadas e sem nenhum direito. À medida que as mulheres brancas eram envolvidas pela ideologia da feminilidade, o sistema escravista definia o povo negro enquanto propriedade, unidades de trabalho lucrativas. Logo, as mulheres poderiam ser desprovidas de gênero e estavam muito distantes da suposta “fragilidade” feminina propagada no século XIX, ideologia essa que enfatizava o papel das mulheres enquanto mães protetoras, donas de casa, amáveis para seus maridos.

As mulheres negras, enviadas para o trabalho escravo desde a infância e separada de sua família como uma verdadeira mercadoria, não possuíam direito nenhum a exaltação à maternidade, estavam vulneráveis a todas as formas de coerção sexual e dificilmente eram “mulheres”, como eram definidas as brancas. As negras não eram “femininas” demais para o trabalho pesado em minas de carvão, na lavoura ou na construção. Segundo Angela Davis, o emprego de escravas como substitutas de animais nas minas dos Estados Unidos se assemelha ao modo terrível como o trabalho das mulheres brancas foi utilizado na Inglaterra, de acordo com Karl Marx, em O Capital:

“Na Inglaterra, ocasionalmente ainda se utilizam, em vez de cavalos, mulheres para puxar etc. os barcos nos canais, porque o trabalho exigido para a produção de cavalos e máquinas é uma quantidade matematicamente dada, ao passo que o exigido para a manutenção das mulheres da população excedente está abaixo de qualquer cálculo.”

Uma vez que o custo de exploração e manutenção da força de trabalho das mulheres negras era menor do que dos homens no auge da força, não é de se estranhar que tal exploração tenha se dado de forma violenta e inescrupulosa no período escravagista, caracterizando o abismo existente entre a construção social das mulheres brancas enquanto frágeis e femininas (belas, recatadas e do lar) e a desumanização constante e diária da escravidão. Até mesmo a recusa das brancas à vida doméstica não era rejeitada pelas negras escravas, uma vez que era naquele espaço doméstico que tais mulheres tinham condições de enfrentar essa desumanização e se sentirem seres humanos – diferente das brancas, nesse ambiente eram reduzidas a “donas de casa”.

Essa construção divergente em muitos aspectos foi responsável pela incompreensão de parte do movimento feminista em relação as pautas mais urgentes para as mulheres negras. O que se sucedeu a partir do fim da escravatura foi a destinação das mulheres negras para as “senzalas modernas”, as cozinhas das patroas brancas “abastadas”. Nos programas das feministas de classe média do passado e do presente, uma conveniente (e constrangedora) omissão desses elementos na análise propiciou a criação de um feminismo excludente, branco e elitista, que não se preocupa em enxergar com autocrítica as discrepâncias raciais que perpassam o movimento de mulheres, e justificavam a contínua exploração das mulheres trabalhadoras domésticas de forma velada e silenciosa.

Recentemente, o mundo conheceu novamente a força unificada das mulheres que foram para as ruas e protagonizaram a Primavera Feminista. Com uma pauta afinada contra mais uma política deliberada contra as mulheres negras em especial, a luta contra o PL 5069 (que proibia o uso da pílula e dificultava o aborto em caso de estupro) resultou na queda de Eduardo Cunha, marcando um novo momento histórico no Brasil. No resto do mundo, mulheres se levantaram contra o feminicídio, por Nem Uma a Menos, ocuparam as redes sociais e montaram o palco para o que explodiria em 2017 na Greve Internacional das Mulheres, onde no Brasil foi dado o primeiro grito contra as reformas de Temer neste ano, e com a luta contra a PEC 181.

Definitivamente, um novo momento para o feminismo insurgiu no século XXI, porém, ainda há muito o que compreender e avançar no que tange a realidade das mulheres negras. Segundo o Mapa da Violência, o homicídio de mulheres negras cresceu em 54% em dez anos no Brasil, enquanto no mesmo período, o número de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%. Assim como os índices de encarceramento das mulheres, em sua maioria negras (68%), foi de 5.601 em 2010 para 44.721 no final de 2016. Segundo o IBGE, o índice de aborto provocado no país por mulheres negras é o dobro daquele verificado entre as brancas. Esses dados são indicativos de que pautas como o encarceramento feminino, a legalização do aborto e o feminicídio precisam ser prioridades do movimento feminista, que infelizmente não tem conseguido consonância em todas as suas esferas.

A luta das mulheres precisa se amparar na construção de um movimento antirracista, pois a sociedade escravocrata, patriarcal e burguesa foi fundada no racismo. E um feminismo comprometido de fato com a luta das mulheres precisa entender que, como Davis indica, classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a classe é vivida. E, para isso, o movimento feminista precisa assumir uma postura autocrítica em suas fileiras, assimilando que lutar pelas mulheres em sua totalidade é especialmente lutar pelas mulheres negras e trabalhadoras, pois elas não são somente as principais vítimas das violências do patriarcado e do racismo, mas também tem a sua opressão e exploração utilizadas na manutenção do sistema capitalista.

A busca pela emancipação das mulheres precisa beber na fonte do que se pode reunir sobre o histórico de exploração da condição das negras enquanto escravizadas e enquanto não pertencentes a ideologia feminina que oprimiu as brancas. As escravizadas de ontem são as periféricas e ocupantes dos cargos de trabalho mais explorados de hoje. E a essas mulheres, ao invés da fragilidade, restou somente a hipersexualização ou a desvalorização do seu papel enquanto mulher. É urgente que o movimento de mulheres assuma um caráter classista e combativo, interseccionando a luta das mulheres brancas com a luta das mulheres negras no que tange o inimigo comum, o qual é sustentado pelo patriarcado e pelo racismo.

Entendendo esse trajeto, torna-se evidente e necessário a afirmação de Angela Davis acerca de um feminismo classista: um feminismo com viés de classe é necessariamente um feminismo antirracista.

Classe, raça e gênero em conexão

“Precisamos achar um modo de dar conta e saber como vamos interligar nossas lutas e visões e chegar a algumas conclusões sobre como desenvolver novos valores revolucionários e, principalmente, como desatrelar valores capitalistas de valores democráticos.” Angela Davis

Frente a dificuldade que a ofensiva do capital implica na unificação das lutas em torno de um programa unitário, o fortalecimento mútuo das lutas democráticas transversais a classe trabalhadora precisa seguir e dar respostas às contradições econômicas do capitalismo. Se 1968 foi determinante enquanto uma nova página da história mundial com lutas antirracistas nos EUA, contra a ditadura militar no Brasil e contra a ditadura stalinista na antiga URSS, o que se sucedeu a partir daí foi um abraço estratégico do capitalismo à essas pautas, enquanto o imperialismo dos EUA ganhava força, mantendo a essência da exploração do trabalho e o lucro do capital intocáveis.

O enfraquecimento da classe trabalhadora, paralelo a crescente investida neoliberal, afastou da juventude e dos trabalhadores a urgência de construir um programa que conseguisse unificar as lutas numa premissa revolucionária, internacional e anticapitalista. Enquanto isso, o capitalismo se apoiou na utilização das opressões a fim de ampliar a exploração da classe trabalhadora, passando a se apropriar das estruturas racistas e machistas e condicionando mulheres, negras e negros e LGBTs a uma vida marginal, com trabalhos instáveis, violência, insegurança e superexploração.

Nesse sentido, as intersecções entre classe, raça e gênero possuem relações mútuas e cruzadas e, segundo Davis, ninguém pode assumir a primazia de uma categoria pela outra. O processo de manutenção da sociedade capitalista perpassa pela compreensão de sua nova roupagem, adaptada às lutas identitárias, que cede migalhas quando há lucro – na grande mídia em especial – mas se silencia frente às reivindicações dos movimentos sociais, especialmente quando tais movimentações cruzam a realidade da classe trabalhadora.

Se gênero e raça são as maneiras como a classe é vivida, a complexidade do indivíduo hoje justifica a necessidade de tais recortes. Por exemplo, a Reforma da Previdência, política reacionária do governo ilegítimo de Temer, que retira o futuro da juventude e condena a classe trabalhadora ao fim da aposentadoria, ignora completamente a dupla jornada de trabalho da mulher – novamente, em maioria negra, igualando seu tempo de contribuição ao tempo de trabalhadores homens. Ignorando também o fato que, em média, as mulheres ganham 40% a menos que os homens, índice certamente mais amplo se tratando de mulheres negras.

Portanto, a esquerda não pode se omitir em assumir que o racismo é um reflexo incondicional da ideologia burguesa e consequentemente tomar para si essa luta transversalmente à luta de classes. Ao sectarizar as lutas, ignora-se que a classe trabalhadora não é uniforme e não sofre apenas a pressão econômica, porém estão fundamentalmente unidas pela exploração da classe. O comportamento racista, machista e de qualquer cunho preconceituoso precisa ser combatido veemente entre os companheiros, mas entendendo que o inimigo real de ambos é o mesmo: o patrão, capitalista ou segundo Davis, quem quer que fosse responsável pelos salários miseráveis, pelas insuportáveis condições de trabalho e pela discriminação racista e sexista no trabalho.

Nem um a menos: em defesa da vida das mulheres

“Você pode me atirar as suas palavras.
Você pode me cortar com seu olhar.
Você pode me matar com o seu ódio.
Mas, ainda assim, como o ar, eu me levanto.” Maya Angelou, poeta americana – I Rise

Se as demandas das mulheres negras são particulares, qual é a tarefa de um movimento essencialmente classista na superação das assimetrias do movimento feminista brasileiro? A resposta é a luta pela criação de condições materiais que viabilizem a mudança real na condição de vida das mulheres negras. Fomentar estratégias efetivas e que dialoguem com as necessidades urgentes dessas mulheres, como o acesso a educação, cultura e saúde, é uma maneira de intervir na base da pirâmide de opressão que sustentou o racismo e, em troca, extirpou os direitos básicos da população negra.

A luta contra a cultura do estupro, por exemplo, também é uma luta pela sobrevivência das mulheres negras, uma vez que os reflexos da coerção e exploração sexual do período escravagista ainda legitimam o assédio e a hipersexualização da mulher negra. Defender a legalização do aborto, ou a permanência dos direitos já conquistados que agora estão em risco com a PEC 181, é defender que as mulheres negras e pobres não abortem em condições precárias e paguem com suas vidas a busca pelo direito ao próprio corpo, enquanto mulheres ricas – e em sua maioria brancas – sigam capazes de pagar fortunas em abortos seguros sem colocar no eixo da questão o viés racial e classista que envolve o aborto clandestino.

Lutar por condições materiais é assumir, consequentemente, o fracasso da guerra às drogas e como seu sustento hoje só é possível a partir do lucro de uma minoria sobre o genocídio de todo um povo. 68% das mulheres encarceradas são negras, a grande maioria por envolvimento no tráfico de drogas, enquadradas principalmente no crime de associação ao tráfico. Em muitos casos a venda de drogas é a única alternativa de sobrevivência oferecida a elas, frente a uma realidade de falta de oportunidades, racismo e um modelo de educação inacessível. Uma vez que 80% das mulheres presas são mães e em sua maioria as únicas responsáveis pelos filhos, compreende-se o ciclo geracional estratégico da política de encarceramento da negritude – que por fim, após tirar a vida de filhos, maridos e familiares através do extermínio da juventude negra nas periferias, relegam as mulheres negras à solidão de uma vida emocional e economicamente fragilizada.

A violência doméstica é outro ponto fundamental no qual se precisa avançar. No cotidiano das mulheres negras e periféricas, a violência é naturalizada e a dependência financeira somada a falta de recursos para lidar com a dependência psicológica resulta no silenciamento e no medo da denúncia. A Lei Maria da Penha, implementada em 2007, infelizmente não é eficaz para a segurança dessas mulheres, que temem serem mortas por seus parceiros e, sem encontrar alternativas, seguem em situações de risco e abuso crescente no Brasil. Embora seja um quadro gritante e com índices alarmantes, os últimos governos Dilma/Temer não sinalizaram de nenhuma forma quaisquer perspectivas de reverter esse quadro através de políticas públicas.

Ser consequente de fato com a luta das mulheres negras diz respeito a falar sobre o indesejado, sobre o inconveniente, sobre o que padece na intimidade das casas nas periferias e que raramente ganha espaço nos noticiários. É perceber que na ponta do precipício estão as mulheres negras, sendo atingidas de forma substancial pelas doenças de uma sociedade que quando não assassina, mata simbolicamente essas mulheres, violenta seus corpos, prende e extermina seus filhos e companheiros ou retira todos os seus direitos.

Lutar pela vida das mulheres negras é reconhecer que para o Estado, há vidas que valem menos – e não aceitar jamais essa sentença. É lutar pela garantia de direitos, pelo acesso irrestrito aos serviços públicos de qualidade, pelo fim do extermínio nas periferias, é combater a guerra às drogas. É ocupar a política, em todos os seus campos, não permitindo que essa casta elitista, branca, heterossexual e machista siga negociando nossas vidas em troca de seus interesses pessoais. É, por decreto, não aceitar Nem Uma a Menos e não deixar nenhuma mulher para trás e, com autocrítica, aliar-se independente de gênero ou cor, responsabilizando-se e tomando para si enquanto classe a construção de futuro possível, anticapitalista, feminista e antirracista, onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres*.


Referências

* Rosa Luxemburgo

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. S.Paulo: Boitempo, 2016 [1981]

COLLINS, Patricia Hill. EM DIREÇÃO A UMA NOVA VISÃO: raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão; Race, Sex & Class , Vol. 1, No. 1 (Fall 1993), pp. 25-45; disponível em: ttps://br.boell.org/sites/default/files/reflexoesepraticasdetransformacaofeminista-1.pdf

DAVIS, Angela. As mulheres negras na construção de uma nova utopia; disponível em: https://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis/ <acesso em 14.12.2017>

Eu me levanto – Maya Angelou – disponível em: https://www.poets.org/poetsorg/poem/still-i-rise <acesso em 14.12.2017>

http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/indice_de_vulnerabilidade_juvenil_a_violencia_2017_desig/ <acesso em 14.12.2017>

https://nacoesunidas.org/jovem-negra-tem-2-vezes-mais-chance-de-ser-assassinada-no-brasil-revela-unesco/ <acesso em 14.12.2017>

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2014/07/26/interna_diversao_arte,439125/se-voce-acha-o-sistema-justo-vai-odiar-as-cotas-diz-patricia-collins.shtml <acesso em 14.12.2017>

Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha: / dossiê acerca do impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos / Secretaria Nacional de Relações de Trabalho e Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. – São Paulo:. 56 p. ; ISBN 978-85-89210-50-8

http://justificando.cartacapital.com.br/2016/07/25/a-terceirizacao-e-a-desumanizacao-do-trabalhador/ <acesso em 14.12.2017>

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/04/13/terceirizacao-esta-ligada-a-condicoes-analogas-a-escravidao-diz-representante-do-dieese <acesso em 14.12.2017>

https://juntos.org.br/2017/08/%E2%81%A0%E2%81%A0%E2%81%A0%E2%81%A0%E2%81%A0mulheres-negras-sao-a-ponta-de-lanca-na-luta-contra-a-reforma-trabalhista/ <acesso em 14.12.2017>

https://juntos.org.br/2017/12/precisamos-falar-sobre-as-mulheres-encarceradas-no-nosso-pais/ <acesso em 14.12.2017>

 https://juntos.org.br/2015/06/anti-capitalismo-e-as-lutas-democraticas-em-busca-da-totalidade/<acesso em 14.12.2017>

http://justificando.cartacapital.com.br/2017/04/26/terceirizacao-a-precarizacao-da-protecao-a-mulher-e-a-crianca/ <acesso em 14.12.2017>

http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-11/homicidios-contra-mulheres-negras-aumenta-54-em-10-anos-aponta-estudo <acesso em 14.12.2017>

http://www.huffpostbrasil.com/2015/08/21/veja-onde-se-faz-mais-aborto-no-brasil-de-acordo-com-o-ibge_a_21694557/ <acesso em 14.12.2017>


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Pedro Micussi