Para onde Vamos?

À avassaladora ofensiva do capital contra o trabalho, as diretrizes da plataforma Vamos respondem com uma versão recauchutada do “melhorismo” lulista.

Plínio de Arruda Sampaio Jr. 30 jan 2018, 23:36

Após inúmeros debates presenciais e milhares de interações virtuais, a Plataforma Vamos, organizada pela Frente Povo Sem Medo, submete ao crivo da crítica os resultados preliminares de sua proposta para a construção de um programa de esquerda para enfrentar a crise nacional. É uma iniciativa auspiciosa. No ambiente claustrofóbico em que estamos vivendo, toda contribuição ao debate público é bem-vinda.

Para os militantes do PSOL o conhecimento das propostas da Vamos e de suas consequências práticas é particularmente importante, uma vez que elas foram aprovadas pelo VI Congresso Nacional, às escuras, sem nenhuma discussão com a militância, como base do programa do partido nas eleições presidenciais de 2018.

Logo em sua apresentação, a Vamos anuncia a intenção de não esperar nenhuma solução caída do céu e fazer a história com as próprias mãos – uma ideia que conclama todos ao exercício cívico da política. Sem nenhuma preocupação em apresentar uma contextualização do momento histórico, o documento apresenta os seis eixos que compõem suas propostas para resolver os problemas do povo brasileiro — Economia; Poder; Comunicações e Cultura; Territórios e Meio Ambiente; Saúde e Educação; Negro, Feminista e LGBT.

As medidas são justapostas umas às outras. Não há o cuidado de definir a relação de causa e efeito entre diagnóstico e receituário, especificar os sujeitos coletivos das ações, qualificar os vínculos entre intenções, ações e mediações e estabelecer os nexos entre as partes e o todo. A Vamos simplesmente diz o que tem de ser feito e não perde tempo com o que considera picuinhas.

Negação da história

O principal problema das diretrizes da Vamos é ignorar a célebre advertência de Marx na introdução de “O 18 de Brumário”, segundo a qual os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem, arbitrariamente, mas em condições que são historicamente determinadas. Sem a definição das bases objetivas e subjetivas que determinam a luta de classes, o campo de oportunidades vislumbrável pelo pensamento e alcançável pela ação torna-se indeterminado. Se o sentido do movimento histórico é ignorado e as tendências efetivas da luta de classes permanecem indefinidas, então, bem à moda pós-moderna, tudo é possível e tudo é impossível.

Na concepção abstrata e aleatória de temporalidade contida no programa Vamos, a humanidade marcha como cabra-cega. Não há contradições que condicionem as necessidades históricas e que delimitem as possibilidades de sua solução. A única referência histórica concreta mencionada no programa Vamos é a descontinuidade econômica e política provocada pela ascensão do governo golpista de Michel Temer —um verdadeiro divisor de águas entre um período de desenvolvimento, combate às desigualdades e democracia e outro de crise econômica, aumento das desigualdades sociais e regressão política. A utopia do projeto Vamos é reconstruir o passado, destituído de suas insuficiências, a partir da somatória da vontade de indivíduos decididos a enfrentar a crise a partir de “consensos pactuados”.

A ausência de uma perspectiva de classe impede a caracterização do padrão de luta de classes como uma guerra sem trégua entre o capital e o trabalho. O desconhecimento da especificidade histórica do Brasil, uma formação histórica presa nas teias do capitalismo dependente, bloqueia a possibilidade de definir as estruturas responsáveis pelas mazelas do povo.

A falta de uma interpretação sobre a natureza do capitalismo contemporâneo e seus impactos sobre as regiões periféricas inviabiliza a percepção do sentido das transformações históricas que condicionam a luta de classes no Brasil — uma formação social em irreversível processo de reversão neocolonial que combina de maneira inusitada riqueza e pobreza, negócio e barbárie, desenvolvimento das forças produtivas e depredação do meio ambiente.

A inexistência de qualquer consideração sobre a crise econômica mundial — o elemento determinante da conjuntura — implica abstração da extrema violência da destruição criadora que caracteriza as transformações provocadas pela crise capitalista. A carência de uma interpretação das novas tendências da divisão internacional do trabalho e seus efeitos devastadores sobre a economia brasileira oblitera qualquer possibilidade de compreender as forças tectônicas que condicionam o processo de reversão neocolonial que rebaixa progressivamente o patamar mínimo de civilidade alcançado a duras penas pela sociedade brasileira. Na ausência de uma visão sobre os determinantes estruturais da crise terminal da industrialização, as dificuldades que geraram a maior crise de desemprego da história brasileira ficam reduzidas a problemas conjunturais provocados pela adoção de uma política econômica ortodoxa.

Abordada muito lateralmente, a crise política é reduzida a um problema de caráter institucional, provocado pela presença de um governo ilegítimo. Não há uma palavra sobre os motivos que levaram a juventude a tomar as ruas nas Jornadas de Junho de 2013. Não há um senão em relação à desastrosa passagem de Lula e Dilma pelo governo federal, cuja principal evidência é sua calamitosa herança — uma crise econômica e política sem precedentes e a ascensão da República dos Delinquentes. Não há um posicionamento sobre os condicionantes sistêmicos do mar de lama da política nacional. A crise terminal da Nova República e suas consequências práticas não são objetos da reflexão da Vamos.

A inexistência de uma avaliação das profundas contradições que determinam a luta de classes impede o reconhecimento de que o acirramento das contradições entre o capital e o trabalho leva a burguesia a organizar sua dominação como uma contrarrevolução permanente. No Brasil, uma sociedade cindida entre ricos e pobres, a ofensiva reacionária assume a forma de uma verdadeira guerra civil contra os trabalhadores, cuja manifestação mais gritante é a sistemática criminalização da luta política, o cerco militar que coloca as periferias sob verdadeiro toque de recolher e, sua consequência inevitável, o genocídio indiscriminado da juventude pobre.

Negação da crítica

Embora a Plataforma Vamos reivindique um protagonismo de esquerda, não há nela nenhuma remissão às tradições do materialismo histórico nem à rica tradição do pensamento crítico latino-americano. Exploração, luta de classes, proletariado, burguesia, aparelhos ideológicos do Estado, dominação, colonialismo, imperialismo, subdesenvolvimento, dependência, segregação social, Estado de Exceção, Estado penal, reforma e revolução são conceitos alheios ao documento da Vamos. Não é que eles não sejam mencionados tais e quais, o que poderia ser uma estratégia retórica. O problema é que tais noções não fazem parte da filosofia que organiza as propostas apresentadas. Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Gramsci, José Martí, Mariátegui, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e tantos outros não foram convocados para compor o arsenal teórico e ideológico da Vamos.

Diga-me com quem andas e te direi quem és. O método e o discurso da Vamos têm outras inspirações. As propostas econômicas alinham-se claramente com as ilusões neokeynesianas de um capitalismo domesticado e a convicção neo-schumpeteriana da força da concorrência intercapitalista como dínamo do desenvolvimento capitalista. As políticas sociais combinam programas assistencialistas idealizados pelo Banco Mundial com propostas de economia solidária de inspiração no socialismo utópico. As diretrizes que dizem respeito às pautas de opressões, questões institucionais e meio ambiente seguem os princípios de um pós-modernismo temperado pelo resgate de fórmulas dos programas compensatórios dos governos de Lula e Dilma. Modelo de desenvolvimento, inovação, regulação dos mercados, sustentabilidade, governabilidade, elites, diversidade, orçamento participativo, economia solidária, bolsa família, minha casa minha vida são noções que alinhavam as propostas do Vamos. O que se ganha quando negamos nossas origens e incorporamos em nossos discursos a linguagem de nossos inimigos de classe?

A negação da transformação social

A ausência de uma perspectiva crítica não permite nenhuma proposta que vá além do senso comum. A incapacidade de conceber as mudanças qualitativas inscritas no movimento histórico limita as mudanças propostas aos parâmetros do status quo. Sem a pretensão de mudar o Estado, o novo viria através de um lento processo de evolução institucional. A política fica, assim, condenada ao horizonte do cretinismo parlamentar.

A preocupação em apresentar medidas tangíveis, que sejam palpáveis dentro da correlação de forças, implica necessariamente encontrar saídas por dentro da ordem. A possibilidade de que a ordem não tenha solução para os problemas do povo — como de fato não tem — não é nem remotamente cogitada.

Sem colocar no horizonte a necessidade e a possibilidade de transformações de grande envergadura não há por que fazer aliança com os partidos políticos contra a ordem. Não surpreende que o chamado à unidade da esquerda não incorpore os acúmulos programáticos realizados pelas setoriais do PSOL e ignore olimpicamente as importantes contribuições do PCB e do PSTU. A unidade proposta é a unidade das forças que representam a esquerda da ordem. O Vamos mira em direção ao PT.

O programa apresentado pela Frente Povo Sem Medo está a léguas de um plano de lutas que oriente a práxis dos trabalhadores em busca de uma saída civilizada para o impasse civilizatório em que se encontra a sociedade brasileira. Circunscrita à miséria do possível, passa ao largo dos problemas reais dos trabalhadores brasileiros — o avanço da barbárie em todas as dimensões da vida. As questões que provocam uma reação mais virulenta do status quo permanecem na penumbra.

Como conquistar a autonomia nacional sem romper com o imperialismo? Como melhorar o nível tradicional de vida dos trabalhadores sem dar empregos bem remunerados à grande massa da força de trabalho que permanece no subemprego? Como superar a pobreza sem eliminar a riqueza? Como combater a desigualdade social sem questionar o padrão de acumulação baseado na cópia dos estilos de vida e padrões de consumo das economias centrais? Como interromper a catástrofe ambiental sem colocar em questão o automóvel, a mineração, o agronegócio? Como modificar a orientação da política econômica sem colocar em questão o papel estratégico da Dívida Pública como centro nervoso da política econômica? A lista das omissões seria interminável. A Vamos fica na superfície da realidade. Ao ocultar os determinantes estruturais da miséria brasileira, a Vamos se atém a administrar a barbárie.

O resultado prático das diretrizes apresentadas é desastroso. O desejo de resolver as mazelas do povo sem enfrentar suas causas é uma quadratura do círculo. Ao negar as contradições como móvel da luta de classes e a crítica como base para a constituição da classe trabalhadora como sujeito político, a Vamos renuncia a qualquer possibilidade de transformação da ordem econômica e social. Os problemas que tornam infernal a vida dos trabalhadores são atribuídos a fatores alheios às estruturas da sociedade que poderiam ser corrigidos com mudanças institucionais e políticas econômicas e sociais.

a) No que toca à Economia, as medidas propostas para recuperar o crescimento e voltar a economia para o mercado interno são insuficientes para romper o bloqueio institucional que submete a política econômica à lógica do grande capital — internacional e nacional. A intenção de formular um “projeto econômico” compatível com o combate às desigualdades esbarra na falta de qualquer medida para combater as causas do subdesenvolvimento e da dependência — a segregação social, o controle do capital internacional sobre a economia brasileira, a modernização baseada na cópia dos estilos de vida das economias centrais;

b) Em relação às questões agrupadas em Poder, a Vamos ignora a questão central – a crise terminal da Nova República e a necessidade de organizar a resposta dos trabalhadores à ofensiva da contrarrevolução burguesa;

c) Em Comunicações e Cultura, as propostas não questionam o colonialismo cultural e os mecanismos perversos de controle da opinião pública pelas grandes corporações que controlam os meios de comunicação e a indústria cultural;

d) No tópico sobre Territórios e Meio Ambiente, o “novo modelo de desenvolvimento” não passa de um baú de velhas novidades, pois a falta de política para combater o agronegócio, a especulação imobiliária e a catástrofe ambiental bloqueia qualquer possibilidade de uma efetiva reforma agrária e urbana, bem como a interrupção da catástrofe ambiental;

e) As medidas propostas em Educação e Saúde pecam pela inexistência de qualquer crítica à crônica penúria de recursos para as políticas sociais, a segregação social, o colonialismo cultural, a indústria da educação e o grande negócio em que se transformou a saúde no Brasil; e, por fim,

f) As propostas que defendem a diversidade cultural contidas em Negros, Feministas e LGBT destacam-se pelo absoluto desconhecimento da relação umbilical entre opressões e exploração.

Ao longo das próximas semanas teremos a oportunidade de fundamentar mais detalhadamente cada uma das críticas aqui esboçadas.

Numa conjuntura histórica em que não existe a menor possibilidade de melhorar as condições de vida dos trabalhadores sem transformações de grande envergadura que apontem para o socialismo, a ilusão de soluções dentro da ordem só alimenta a frustração com a democracia e o desalento dos trabalhadores com a política.

Com pânico de despertar a fúria da contrarrevolução (que já está nas ruas), acaba-se na mais completa e desmoralizante capitulação ideológica e política. À avassaladora ofensiva do capital contra o trabalho, a Vamos responde com uma versão recauchutada do “melhorismo” lulista. O que ontem resultou numa tragédia, hoje começa com farsa. Desse jeito, vamos de mal a pior. É preciso olhar para o futuro e organizar a esperança de uma sociedade baseada na igualdade substantiva.

Publicado originalmente no site de Plínio Jr.


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