A Teoria da Dependência: balanços e perspectivas

Em homenagem ao grande intelectual brasileiro morto hoje, publicamos o segundo capítulo deste seu livro.

Theotônio dos Santos 27 fev 2018, 20:04

Capítulo II – A teoria da dependência: um balanço

A TEORIA DA DEPENDÊNCIA, que surgiu na América Latina nos anos 60, tentava explicar as novas característica do desenvolvimento socioeconômico da região, iniciado de fato em 1930-45. Desde os anos 30, as economias latino-americanas, sob o impacto da crise econômica mundial iniciada em 1929, haviam se orientado na direção da industrialização, caracterizada pela substituição de produtos industriais importados das potências econômicas centrais por uma produção nacional. Em seguida, terminado o longo ciclo depressivo (caracterizado por 2 guerras mundiais, uma crise global em 1929 e à exacerbação do protecionismo e do nacionalismo), restabelecia-se depois da II Guerra Mundial, através da hegemonia norte-americana, a integração da economia mundial. O capital, concentrado então nos EUA, expandiu-se para o resto do mundo, na busca de oportunidades de investimento que se orientavam para o setor industrial.

Nestes anos de crise, a economia americana incorporou o fordismo como regime de produção e circulação ao mesmo tempo em que a revolução científico-tecnológica se iniciava nos anos de 1940. A oportunidade de um novo ciclo expansivo da economia mundial exigia a extensão destas características econômicas ao nível planetário. Era esta a tarefa que o capital internacional assumia tendo como base de operação a enorme economia norte-americana e seu poderoso Estado Nacional, além de um sistema de instituições internacionais e multilaterais estabelecido em Bretton Woods.

Implantada elementarmente nos anos 30 e 40, a indústria nos principais países dependentes e coloniais serviu de base para o novo desenvolvimento industrial do pós-guerra e terminou se articulando com o movimento de expansão do capital internacional, cujo núcleo eram as empresas multinacionais criadas nas décadas de 40 a 60. Esta nova realidade contestava a noção de que o subdesenvolvimento significava a falta de desenvolvimento. Abria-se o caminho para compreender o desenvolvimento e o subdesenvolvimento como o resultado histórico do desenvolvimento do capitalismo, como um sistema mundial que produzia ao mesmo tempo desenvolvimento e subdesenvolvimento.

Se a teoria do desenvolvimento e do subdesenvolvimento eram o resultado da superação do domínio colonial e do aparecimento de burguesias locais desejosas de encontrar o seu caminho de participação na expansão do capitalismo mundial; a teoria da dependência, surgida na segunda metade da década de 1960, representou um esforço crítico para compreender a limitações de um desenvolvimento iniciado num período histórico em que a economia mundial estava já constituída sob a hegemonia de enormes grupos econômicos e poderosas forças imperialistas, mesmo quando uma parte delas entrava em crise e abria oportunidade para o processo de descolonização.

Os economistas suecos Magnus Blomstrom e Bjorn Hettne se tornaram abalizados historiadores da teoria da dependência. Seu livro mais completo sobre o tema (Blomstrom e Hettne, 1984, pp.15) afirma que há “um conflito de paradigmas” entre o paradigma modernizante e o enfoque da dependência. Eles identificam dois antecedentes imediatos para o enfoque da dependência:

“a) Criação de tradição crítica ao euro-centrismo implícito na teoria do desenvolvimento. Deve-se incluir neste caso as críticas nacionalistas ao imperialismo euro-norte-americano e a crítica à economia neo-clássica de Raul Prebisch e da CEPAL.

b) O debate latino-americano sobre o subdesenvolvimento, que tem como primeiro antecedente o debate entre o marxismo clássico e o neomarxismo, no qual se ressaltam as figuras de Paul Baran e Paul Sweezy.

Eles resumem em quatro pontos as idéias centrais que os vários componentes da escola da dependência defendem:

i) O subdesenvolvimento está conectado de maneira estreita com a expansão dos países industrializados;

ii) O desenvolvimento e o subdesenvolvimento são aspectos diferentes do mesmo processo universal;

iii) O subdesenvolvimento não pode ser considerado como a condição primeira para um processo evolucionista;

iv) A dependência, não é só um fenômeno externo mas ela se manifesta também sob diferentes formas na estrutura interna (social, ideológica e política)”.

Daí que Blonstrom e Heltne possam distinguir três ou quatro correntes na escola da dependência:

“a) A crítica ou autocrítica estruturalista dos cientistas sociais ligados à CEPAL que descobrem os limites de um projeto de desenvolvimento nacional autônomo. Neste grupo eles colocam inquestionavelmente Oswaldo Sunkel e uma grande parte dos trabalhos maduros de Celso Furtado e inclusive a obra final de Raul Prebisch reunida no seu livro O Capitalismo Periférico. Fernando Henrique Cardoso às vezes aparece como membro deste corrente e outras vezes se identifica com a seguinte (tese que os membros desta corrente claramente rechaçam e com boa razão).

b) A corrente neo-marxista que se baseia fundamentalmente nos trabalhos de Theotônio dos Santos, Rui Mauro Marini e Vânia Bambirra, assim como os demais pesquisadores do Centro de Estudos Sócio-Econômicos da Universidade do Chile (CESO). André Gunder Frank aparece às vezes como membro do mesmo grupo, mas sua clara posição de negar seu vínculo teórico estreito com o marxismo e sua proposição de um esquema de expropriação internacional mais ou menos estático o separam do enfoque dialético dos outros neo-marxistas.

c) Cardoso e Faletto se colocariam numa corrente marxista mais ortodoxa pela sua aceitação do papel positivo do desenvolvimento capitalista e da impossibilidade ou não necessidade do socialismo para alcançar o desenvolvimento.

d) Neste caso, Frank representaria a cristalização da teoria de dependência fora das tradições marxista ortodoxa ou neo-marxista”.

Apesar do brilhantismo e do esforço de fidelidade expresso no seu esquema histórico, Blonstron e Hettne podem ser contestados no que respeita à sua apresentação do debate entre o pensamento ortodoxo marxista e a corrente que ele chama de neo-marxista. Na realidade, esta última corrente tem muitos matizes que eles não parecem reconhecer. Mas esta discussão nos levaria demasiado longe para os fins deste trabalho. Podemos dizer que esta é, entre várias propostas, a que mais se aproxima de uma descrição correta das tendências teóricas principais que conformaram a teoria da dependência.

Insatisfeito com esta proposta, André Gunder Frank (1991) realizou uma análise das correntes da teoria da dependência baseando-se em cinco livros publicados no começo da década de 90 sobre esta teoria. Frank constatou uma grande dispersão na classificação dos “dependentistas” entre as várias escolas de pensamento, segundo estes livros. A lista que ele teve o cuidado de estabelecer serve como uma tentativa de apresentação, de uma maneira mais neutra, dos principais pensadores relacionados de acordo com suas origens teóricas. Dentre os estruturalistas encontramos Prebisch, Furtado, Sunkel, Paz, Pinto, Tavares, Jaguaribe, Ferrer, Cardoso e Faletto. No que diz respeito à TEORIA DA DEPENDÊNCIA, além de Cardoso e Faletto, que aparecem ligados a ambas as escolas, os demais pensadores mencionados são: Baran, Frank, Marini, Dos Santos, Bambirra, Quijano, Hinkelammert, Braun, Emmanuel, Amin e Warren. Frank diferencia ainda, no debate sobre a TEORIA DA DEPENDÊNCIA, entre os reformistas não-marxistas, os marxistas e os neomarxistas.

O quadro abaixo, elaborado por André Gunder Frank (1991), traz os autores mais citados no debate sobre a TEORIA DA DEPENDÊNCIA, de acordo com os cinco livros publicados sobre o assunto entre 1989-90: Hettne, Development Theory and the Three Worlds, 1990; Hunt, Economic Theories of Development, 1989; Kay, Latin American Theories of Development and Underdevelopment, 1989; Larrain, Theories of Development, 1989; Lehman, Democracy and Development in Latin America, 1990. Estes autores teriam distinguido, além das teorias da Modernização e do Estruturalismo, quatro correntes da teoria da dependência: os reformistas (Refor), os não-marxistas (Não-Mx) , os marxistas (Mx) e os neo-marxistas (NeoMx):

QUADRO I – Escolas da Teoria do desenvolvimento na América Latina

Podemos compreender melhor o sentido destas opções teóricas quando revisamos a reordenação da temática das ciências sociais latino-americanas provocada pela teoria da dependência. Esta reordenação refletia não somente novas preocupações sociais que emergiam para a análise social e econômica mas também novas opções metodológicas inspiradas nas origens teóricas dos pesquisadores.

No seu conjunto, o debate científico latino-americano revela sua integração numa forte perspectiva transdisciplinar. Não foi sem razão que a América Latina (que já revelara ao mundo um autor marxista tão original como Mariátegui, nos anos 20) produziu, nas décadas de 30, 40 e 50, pensadores sociais tão originais como Gilberto Freire (que praticava uma sociologia de forte conteúdo antropológico, ecológico, psicanalítico e histórico que encantou grande parte do pensamento europeu), como Josué de Castro (que aliava uma excelente formação nas ciências da vida, na medicina, na ecologia e na geografia humana com um enfoque econômico, sociológico e antropológico extremamente moderno – inspirador de grande parte do debate mundial não só sobre a fome e sua geopolítica, mas sobre o subdesenvolvimento como fenômeno planetário e da relação entre ecologia e desenvolvimento), como Caio Prado Júnior (cujo marxismo – às vezes estreito metodologicamente – não o impediu de desenvolver uma obra histórica de grande profundidade sobre as raízes da sociedade colonial e sobre o caráter da revolução brasileira), como Guerreiro Ramos (cujas raízes existencialistas o permitiram pensar de maneira pioneira o nascimento do movimento negro contemporâneo além de iluminar o conteúdo civilizatório da luta do Terceiro Mundo), como Raul Prebisch (cuja visão econômica transcendia o economicismo tradicional e revelava fortes implicações sociais e políticas – iluminadas pelos brilhantes “insights” do sociólogo hispano-latinoamericano Medina Echevarría); como um Sergio Bagú (que descobre o caráter capitalista do projeto colonial ibérico, através de uma metodologia de análise marxista modernizada pelos avanços recentes das ciências históricas e sociais), como Florestan Fernandes (cujo esforço metodológico de integrar o funcionalismo de origem durkheimniano, o tipo-ideal weberiano e a dialética materialista marxista talvez não tenha tido os resultados esperados, mas impulsionou um projeto filosófico-metodológico que vai se desdobrar na evolução do pensamento latinoamericano como contribuição específica às Ciências Sociais Contemporâneas); ou como um Gino Germani (que logrou sistematizar o enfoque metodológico das ciências sociais norte-americanas com o seu liberalismo exacerbado na criação de um modelo de análise do desenvolvimento como processo de modernização).

A acumulação destas e outras propostas metodológicas na região refletiam a crescente densidade de seu pensamento social que superava a simples aplicação de reflexões, metodologias ou propostas científicas importadas dos países centrais para abrir um campo teórico próprio, com sua metodologia própria, sua identidade temática e seu caminho para uma práxis mais realista.

A teoria da dependência tentou ser uma síntese deste movimento intelectual e histórico. A crítica de Bagú, Vitale e Caio Prado Júnior ao conceito de feudalismo aplicado à América Latina, foi um dos pontos iniciais das batalhas conceituais que indicavam as profundas implicações teóricas do debate que se avizinhava. André Gunder Frank recolheu esta problemática para dar-lhe uma dimensão regional e internacional. A definição do caráter das economias coloniais como feudais serviam de base às propostas políticas que apontavam para a necessidade de uma revolução burguesa na região. Inspirado no exemplo da Revolução Cubana que se declarou socialista em 1962, Frank abriu fogo contra as tentativas de limitar a revolução latino-americana ao contexto da revolução burguesa. Radical em seus enfoques ele vai declarar o caráter capitalista da América Latina desde seu berço. Produto da expansão do capitalismo comercial europeu no século XVI, a América Latina surgiu para atender as demandas da Europa e se insere no mundo do mercado mundial capitalista.

Não é aqui o lugar para revisar em detalhe o extenso debate que se seguiu a estes ataques e à proposta de Frank de analisar o mundo colonial como um sistema de expropriação de excedentes econômicos gerados nos mais recônditos recantos deste mundo. Eu mesmo censurei o caráter estático do modelo de Frank e o seu desprezo pelas relações de produção assalariadas como fundamento mais importante do capitalismo industrial, única forma de produção que pode assegurar uma reprodução capitalista, a partir da qual este sistema se transforma num modo de produção novo e radicalmente revolucionário. Ver Dos Santos (1972).

Era contudo evidente que Frank acertava na essência de sua crítica. A América Latina surge como economia mercantil, voltada para o comércio mundial e não pode ser, de nenhuma forma, identificada com modo de produção feudal. As relações servis e escravistas desenvolvidas na região foram parte pois de um projeto colonial e da ação das forças sociais e econômicas comandadas pelo capital mercantil financeiro em pleno processo de acumulação – que Marx considera primária ou primitiva essencial para explicar a origem do moderno modo de produção capitalista. Estas formações sociais de transição são de difícil caracterização. Já lançamos, na época deste debate, a tese de que há uma semelhança entre as formações sociais de transição ao socialismo e estas formações socioeconômicas que serviram de transição ao capitalismo.

Não se podia esperar que a revolução democrático-burguesa fosse assim o fator mobilizador da região. Mas os erros de Frank abriam também um flanco muito sério. Eles faziam subestimar o obstáculo representado pela hegemonia do latifúndio exportador e pela sobrevivência das relações servis ou semi-servis na formação de uma sociedade civil capaz de conduzir uma luta revolucionária. Não se deve esquecer o avanço das relações assalariadas na agro-indústria açucareira cubana e a importância de suas classes médias e do seu proletariado urbano cuja greve geral contribuiu amplamente para a vitória de dezembro de 1958, para explorar o radicalismo e os êxitos da revolução cubana, (veja-se o livro de Vania Bambirra, 1974).

O debate sobre o feudalismo se desdobrou imediatamente no debate sobre a burguesia nacional. Tratava-se de saber até que ponto o capitalismo da região havia criado uma burguesia nacional capaz de propor uma revolução nacional democrática. Outra vez Frank polarizou a discussão com sua negação rotunda do caráter nacional das burguesias latino-americanas. Formadas nos interesses do comércio internacional, elas se identificavam com os interesses do capital imperialista e abdicavam completamente de qualquer aspiração nacional e democrática. Vários estudos mostravam os limites do empresariado da região: pouco conhecimento da realidade política do país, pouca presença junto ao sistema de poder, pouco conhecimento técnico e econômico, falta de uma postura inovadora e de uma vontade de opor-se aos interesses do capital internacional que pudessem prejudicar o empresariado nacional.

Eu e outros sociólogos nos lançamos contra estas concepções simplistas. Nos anos 30, figuras como Roberto Simonsen, Euvaldo Lodi e vários outros mostravam uma ampla consciência política e econômica do empresariado nacional. Suas entidades de classe como a Federação Nacional da Indústria, formulavam um projeto de desenvolvimento com alto conteúdo nacionalista e apoiavam o projeto de Estado Nacional Democrático dirigido por Getúlio Vargas.

Contudo, eu procurava mostrar os limites estruturais deste projeto diante de uma expansão das empresas multinacionais para o setor industrial. Elas possuíam vantagens tecnológicas definitivas e só poderiam ser detidas na sua expansão por Estados Nacionais muito fortes que necessitavam de um amplo apoio na população operária e na classe média, sobretudo entre os estudantes que aspiravam o desenvolvimento econômico como única possibilidade de incorporá-los ao mercado de trabalho. Não se tratava pois de uma questão de ausência de conhecimento ou disposição de luta, ou determinação. Havia sérios limites de classe no projeto nacional democrático que chegou a ser desenvolvido intelectualmente através do IBESP e posteriormente pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), na década de 50, que tinha uma base material na Federação Nacional das Indústrias e em vários órgãos da administração pública que apoiaram o 2º governo Vargas, quando este projeto alcançou o seu auge. Tais forças demonstraram-se contudo hesitantes quando puderam avaliar a força e a profundidade da oposição dos centros de poder mundial a este projeto. A avassaladora campanha pelo “impeachment” de Vargas, foi detida pelo seu suicídio, e a sua carta testamento provocou uma arrasadora mobilização popular que fez a direita recuar e levou a uma fórmula de compromisso no governo de Juscelino Kubistchek: o Brasil abria suas portas ao capital internacional garantindo, contudo, suas pretensões estratégicas exigindo um alto grau de integração do seu parque industrial que deveria expandir-se até a montagem de uma indústria de base.

O enorme crescimento industrial logrado de 1955 a 1960 aumentou as contradições socio-econômicas e ideológicas no país. O caso brasileiro era o mais avançado no continente e não assegurou um caminho pacífico. A burguesia brasileira descobriu que o caminho do aprofundamento da industrialização exigia a reforma agrária e outras mudanças em direção à criação de um amplo mercado interno e à geração de uma capacidade intelectual, científica e técnica capaz de sustentar um projeto alternativo. Tais mudanças implicavam no preço de aceitar uma ampla agitação política e ideológica no país que ameaçava o seu poder.

O golpe de Estado de 1964 cerrou a porta ao avanço nacional-democrático e colocou o país no caminho do desenvolvimento dependente, apoiado no capital internacional e num ajuste estratégico com o sistema de poder mundial. “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. A fórmula do General Juracy Magalhães, ministro de relações exteriores do regime militar consolidava esta direção. Por mais que os anos posteriores tenham demonstrado o conflito existente entre os interesses norte-americanos e os interesses do desenvolvimento nacional brasileiro, não foi mais possível romper esta parceria selada com ferro e fogo no assalto ao poder de 1964.

Não era possível, portanto, desprezar a luta interna gerada pelo avanço da industrialização nos anos 30. E a constatação da capitulação final da burguesia nacional não anulava totalmente seu esforço anterior. Camadas da tecnocracia civil e militar, setores de trabalhadores e da própria burguesia nunca abondonaram totalmente o projeto nacional democrático. Mas ele perdeu seu caráter hegemônico apesar de ter alguns momentos de irrupção no poder central durante a ditadura. Nos anos de transição à democracia, na década de 80, este projeto reapareceu no Movimento pelas “Diretas Já”, voltou a influenciar as eleições locais e marcou político e ideológico com a formação do chamado 28 “centrão” durante a fase final da Constituinte e, sobretudo a constituinte de 1988. Contudo, a reorganização dos setores hegemônicos da classe dominante permitiu-lhes à retomada do controle em 1989, com a vitória eleitoral de Fernando Collor, e encontrou um caminho ainda mais sólido com a aliança de centro-direita que venceu as eleições de 1994, com Fernando Henrique Cardoso na presidência.

Fernando Henrique Cardoso fora um dos que demonstraram em 1960 a debilidade da burguesia nacional e sua disposição em converter-se em uma associada menor do capital internacional. Ele foi também um dos que observou o limite histórico do projeto nacional-democrático e do populismo que o conduzia.

Desde de 1974, como o mostramos no nosso artigo sobre sua evolução intelectual e política, (ver Dos Santos, 1996) Cardoso aceitou a irreversibilidade do desenvolvimento dependente e a possibilidade de compatibilizá-lo com a democracia representativa. A partir daí, segundo Cardoso a tarefa democrática se convertia em objetivo central da luta contra um Estado autoritário, apoiado sobretudo numa “burguesia de Estado” que sustentava o caráter corporativo e autoritário do mesmo. Segundo ele, os inimigos da democracia não seriam portanto o capital internacional e sua política monopolista, captadora e expropriadora dos recursos gerados nos nossos países. Os seus verdadeiros inimigos são o corporativismo e uma burguesia burocrática e conservadora que, entre outras coisas, limitou a capacidade de negociação internacional do país dentro do novo patamar de dependência gerado pelo avanço tecnológico e pela nova divisão internacional do trabalho que se esboçou nos anos 70, como resultado da realocação da indústria mundial.

Estas teses ganharam força internacional e criaram o ambiente ideológico da aliança de centro-direita que veio a se realizar nos anos 80, no México, na Argentina, no Peru, na Venezuela, na Bolívia, e no Brasil. Uma importante ala da esquerda populista ou liberal aderiu ao programa de ajuste econômico imposto 29 pelo Consenso de Washington em 1989, e assegurou a estabilidade monetária e o precaríssimo equilíbrio macroeconômico dela derivado.

Em troca desta adesão, estes governos garantiam um amplo período no poder através do apoio internacional que desfrutaram sobretudo sob a forma de vastos movimentos de capital financeiro e a sua articulação incondicional com a imprensa internacional. A América Latina entrou assim num novo patamar de relacionamento internacional caracterizado por moedas fortes (princípio quebrado no México no final de 1994), pela estabilidade monetária e a estabilidade fiscal obtida com a privatização das empresas públicas e o corte de gastos estatais. Governos reeleitos sucessivamente com forte apoio internacional assumiram discretamente a perspectiva de uma integração comercial das Américas sob a hegemonia norte-americana ( ver Dos Santos, 1996-b).

Este caminho de submissão estratégica crescente, seguido pelas burguesias latino-americanas, parece confirmar as previsões mais radicais sobre seu caráter “entreguista” e “comprador”. A crise da dívida externa na década de 80, a crise sócio-econômica que significou a política de “ajuste” para permitir o pagamento da dívida externa, parecem confirmar o caráter dependente de nossas economias. Mas as resistências continentais a estas situações foi bem maior do que muitos esperavam. De repente, viu-se um realinhamento de forças desenhando-se no subcontinente. Aparecem resistências ao projeto neo-liberal entre os militares, a igreja, setores da burocracia estatal e sobretudo técnicos, engenheiros e cientistas. Todos eles estão ligados à existência de um Estado nacional forte e um desenvolvimento econômico de base nacional significativa. Os trabalhadores industriais e de serviço se colocaram contudo no centro da resistência. Todos estes setores têm um papel ínfimo no projeto neoliberal e alguns deles chegam mesmo a tornar-se inúteis.

As dificuldades de eliminar totalmente estas resistências manteve o projeto neo-liberal nos marcos de um regime liberal democrático e parece dar razão à tese de que o desenvolvimento dependente é compatível com os regimes políticos liberais democráticos.

No entanto, é necessário ressaltar que houve situações de exceção, como no caso do Peru onde Fujimori implantou um regime de exceção que foi tolerado pelas nascentes democráticas da região. Houve também, tentativas de rebelião dentro das forças armadas argentinas e venezuelanas, em 1990-93, cujos desdobramentos ainda estão em curso. Houve ainda o aparecimento de novos movimentos guerrilheiros, ou mesmo desta nova forma de política insurrecional que é o Exército Zapatista no México. É importante considerar também a sobrevivência e o fortalecimento recente das forças insurrecionais na Colômbia, onde a crise do Estado se faz cada vez mais aguda. Ninguém pode assegurar que a atual onda democrático-liberal resistirá indefinidamente a esta combinação de políticas econômicas recessivas, abertura externa, especulação financeira, desemprego e exclusão social crescente. Mesmo que, neste contexto, um setor importante da população possa melhorar seus padrões de consumo, isto dificilmente substituirá o desgarramento do tecido social, da identidade cultural e das expectativas de trabalho e de competitividade produtiva de grande parte da população. (ver nosso livro sobre este tema, Dos Santos, 1991).

Esta evolução dos acontecimentos parece confirmar outra temática posta em evidência pela teoria da dependência: a tendência à exclusão social crescente, como resultado do aumento da concentração econômica e da desigualdade social. “Dependente, concentrador e excludente” estas eram as características básicas do desenvolvimento dependente, associado ao capital internacional destacadas pela teoria. Estas características se exacerbaram na década de 80, sob o impacto da globalização comandada pelo capital financeiro internacional para o pagamento da dívida externa e a nov fase das moedas fortes e privatizações da década de 90, sob o marco do Consenso de Washington.

A evolução da revolução científico-técnica parece confirmar as análises do final dos anos 60. Como mostrávamos, no final da década de 60, precedendo em pelo menos uma década a literatura sobre a “reconversão industrial”, ela favoreceu o crescimento da exportação industrial nos países dependentes de desenvolvimento médio, enquanto os países centrais se especializavam na tecnologia de ponta, geradora de novos setores de serviço voltados para o conhecimento, a informação, o lazer e a cultura.

Contudo, como previmos, a expansão industrial da América Latina não resultou na sua passagem para o campo dos países industriais desenvolvidos. Ao contrário, tem aumentado a distância com os países centrais colocados na ponta da revolução pós-industrial, enquanto as indústrias obsoletas e poluentes se concentram nos países de desenvolvimento médio. O mais grave contudo começou a ocorrer na década de 80 pois, conforme havíamos previsto, a adoção crescente da automação diminuiu drasticamente o emprego industrial. Cada vez mais afastados dos centros de produção científica, tecnológica, e cultural, os países em desenvolvimento se inserem na armadilha do crescimento econômico sem emprego, não vendo expandir por outro lado o emprego em educação, saúde, cultura, lazer e outras atividades típicas da revolução científico-técnica.

A desvalorização das camadas médias de profissionais resultantes desta falta de investimentos em pesquisa e desenvolvimento só é compensada em parte pela emigração de grande parte deles para os países centrais. Aprofunda-se assim a captação de recursos humanos, o “brain-drain” dos anos 60, agora atraindo cérebros dos países de desenvolvimento médio, cuja estrutura educacional superior se torna inútil diante da baixa demanda de serviços resultante de um desenvolvimento dependente, subordinado, concentrador e excludente. Os quadros formados por suas universidades sem meios para a pesquisa e sem contacto com as verdadeiras fontes de demanda da pesquisa e 32 desenvolvimento vão ser recrutados nos países centrais. (ver Dos Santos, 1993, 95, etc…).

Ao lado dessas tendências, prossegue a penetração do capitalismo nas zonas rurais, expulsando mais e mais população para os centros urbanos. A urbanização se torna cada vez mais metropolização e “favelização”, isto é, marginalidade e exclusão social, que assume muitas vezes o caráter de um corte étnico, o que explica a força das reivindicações étnicas nos centros urbanos da região. De fato, o renascimento da questão indígena e dos movimentos negros sob novas formas cada vez mais radicais, são uma expressão desta situação.

O abandono do esforço científico e tecnológico regional, levou também ao abandono do setor de bens de capital, onde se concentra a chave do processo de revolução científico-técnica e a possibilidade de um desenvolvimento autossustentado. A complexidade da indústria de base e de sua modernização com a robotização, começa a retirá-la mesmo dos países, como o Brasil, que já haviam alcançado um importante desenvolvimento da mesma.

O Estado nacional vê-se avassalado por estas mudanças. Voltado para o pagamento dos juros da dívida externa na década de 80, criou uma imensa dívida interna com altíssimos juros e alta rotação. Na década de 90, quando os juros internacionais caem, os países dependentes vêm-se estimulados e até forçados a empreender políticas econômicas de valorização de suas moedas nacionais. Estas políticas os levam a criar importantes déficits comerciais, os quais buscam cobrir com a atração de capital especulativo de curto prazo, pagando-lhes altos juros, internamente.

É assim que, ao escaparmos dos juros altos internacionais (hoje extremamente baixos) caímos na trampa dos juros altos internos. O Estado se converte em prisioneiro do capital financeiro, afogado por uma dívida pública em 33 crescimento exponencial, cujo serviço não deixa mais nenhum espaço para o investimento estatal, e também, cada vez menos para as políticas sociais e mesmo para a manutenção do modesto funcionalismo público da região.

O conteúdo de classe do Estado faz-se pois, mais evidente ainda. Ele se põe completamente a serviço do grande capital financeiro subordinando cada vez mais os outros setores da burguesia. Ele se vê obrigado a abandonar o clientelismo e o patrimonialismo das antigas oligarquias através do qual o Estado atendia às suas famílias e a uma vasta população de classe média. Ele corta também as aberturas realizadas pelo populismo aos dirigentes sindicais e outras entidades corporativas. Não há dinheiro para ninguém mais – a fome do capital financeiro é insaciável.

As políticas de bem-estar voltadas para os setores de baixa renda e para a previdência social também se vêem definitivamente ameaçadas. A onda neoliberal estimula medidas que giram em torno de uma retomada do dinamismo do mercado que não funcionou em nenhuma parte do mundo. Os governos Reagan e Thatcher não abandonaram o gasto público, apesar de liderarem o movimento neo-liberal. Pelo contrário, Reagan aumentou mais de 5 vezes o déficit público estadunidense, criando uma enorme dívida pública que serviu de ponto de arranque do movimento financeiro da década de 80. Os alemães e japoneses foram os principais beneficiários desta política. Aumentaram seu superávit comercial com os Estados Unidos e investiram seus ganhos em títulos da dívida pública a altas taxas de juros. Ao mesmo tempo, converteram suas moedas em poderosos instrumentos de política econômica (ver nosso artigo de 1992).

O que mais surpreendeu aos teóricos não dependentistas foi o crescimento dos países do sudeste asiático. Muitos autores apresentaram a consolidação do crescimento desses países como evidência do fracasso da teoria da dependência. São vários os estudos sobre estes processos e são unânimes em reivindicar as especificidades da situação regional. As economias da região não 34 fizeram uma grande dívida externa na década de 70, como os latino-americanos e os países do leste europeu. Elas passaram por reformas agrárias radicais nos anos 40 e 50, para o que tiveram especial apoio norte-americano, devido sua proximidade com os inimigos da guerra fria. Elas contaram com a acumulação de capitais japonesa e a política do MITI de exportar as indústrias de tecnologia em processo de obsolescência para os seus países vizinhos. Elas tiveram condições especiais de penetração no mercado norte-americano pelas razões geopolíticas já mencionadas. Mas, sobretudo, elas praticaram uma forte intervenção estatal e protecionismo que lhes permitiu sustentar suas políticas econômicas e desenvolver, ao mesmo tempo, uma base tecnológica própria, apesar de modesta.

Nada disto as impediu contudo de sofrer com rigor a crise financeira internacional quando a valorização do yen em 1992 começou a limitar suas exportações para o mercado norte-americano. O yen forte permitiu ao Japão substituir em parte o mercado norte-americano, enquanto a China ocupava o espaço deixado pelo Japão, os “tigres” e os “gatos” asiáticos. A desvalorização do yen no final de 1996 criou uma conjuntura nova. O Japão voltou ao mercado norte-americano e as demais economias exportadoras asiáticas viram-se na necessidade de desvalorizar suas moedas para recuperar seu espaço no mercado norte-americano. Sob o ataque dos especuladores, sua crise se tornou mais dramática e mostrou os limites desses países.

Esta evolução mostra que a agenda colocada na ordem do dia pela teoria da dependência continua a ser de grande atualidade apesar das mudanças fundamentais que ocorreram no período. Estas mudanças seguiram contudo as tendências apontadas no final dos anos sessenta. Com nossos estudos sobre a nova dependência, o surgimento do subimperialismo, o papel da marginalização e da exclusão social antecipamo-nos claramente à evolução dos acontecimentos.

Mas o que ressalta sobretudo é a questão metodológica. Mais do que nunca a problemática do subdesenvolvimento e do desenvolvimento tem de ser analisada no processo de evolução do sistema econômico mundial. Nele, persiste a divisão entre um centro econômico, tecnológico e cultural, uma periferia subordinada e dependente e formas de semi-periferia que ganharam grande dinamismo durante a fase depressiva do ciclo Kondratiev (de 1967 a 1993). Tudo indica que se retomou o crescimento econômico a partir de 1994 e novos alinhamentos devem se produzir com a entrada da economia mundial num novo ciclo longo de Kondratiev (ver Dos Santos, 1991, 92, 93, 94, 95, 98).

A queda do socialismo estatizante de forte influência stalinista, o socialismo numa só região do mundo, provocou uma onda de euforia neo-liberal que prejudicou muito gravemente a evolução destes países. Tudo indica, contudo, que a população destes países deverá retificar esta aventura altamente custosa em vidas humanas e em bem estar social.

As contradições entre EE.UU, Europa, e Japão encontraram o canal do grupo dos Sete para encaminhá-las. A Rússia (liberada dos seus aliados ou “satélites” europeus e da periferia da antiga União Soviética) foi precariamente integrada neste grupo. Mas a China em pleno crescimento, a Índia e o Brasil, entre outras 18 potências médias, não encontraram ainda seu lugar no sistema mundial pós-guerra fria. A não resolução desta questão crucial terá um alto custo para a paz mundial.

A separação do mundo em blocos regionais parece ser a forma intermediária que o processo de globalização vem assumindo para resistir ao livre movimento de capitais financeiros ou das empresas transnacionais ou globais. Isto se enquadra também nas previsões da teoria da dependência, inclusive a importância das integrações regionais na América Latina como um caminho mais sólido para a integração regional de todo o continente. O próprio EE.UU se vê obrigado a buscar um caminho de maior aproximação hemisférica.

O NAFTA mostra as dificuldades dessa integração de estruturas tão assimétricas e tão desiguais. A proposta da ALCA encontra resistências em todos os lados. A integração exitosa do MERCOSUL reafirma o princípio de que é mais fácil integrar mercados de níveis semelhantes, particularmente de significativo desenvolvimento industrial. Contudo, o ASEAN mostra a possibilidade de uma complementaridade entre um país central que ocupa a função de um pólo de acumulação como o Japão e outros periféricos, onde o primeiro organize seu mercado como um consumidor dos produtos dos mercados próximos, com transferência de tecnologia para garantir a qualidade de seus abastecedores. Os EE.UU. estariam dispostos a gerar uma nova política de boa vizinhança que integrasse as Américas sob sua égide. Se não o fizer a médio prazo talvez encontre já um Brasil consolidado como líder do desenvolvimento regional na América do Sul.

Como vemos, as mudanças teóricas e metodológicas iniciadas na década de 60, como cristalização de um amplo esforço teórico e político anterior, têm um alcance muito maior do que originalmente se pensava. Elas indicaram a necessidade de repensar a questão do desenvolvimento dentro de um contexto teórico muito mais amplo que colocava em questão o paradígma dominante nas ciências sociais. É necessário pois que discutamos o impacto internacional dos estudos sobre a dependência para compreender suas possibilidades e seus limites teóricos.


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Balanço e perspectivas da esquerda após as eleições de 2024

A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco debate o balanço e as perspectivas da esquerda após as eleições municipais, com a presidente da FLCMF, Luciana Genro, o professor de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, e o professor de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni

O Impasse Venezuelano

Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 12 nov 2024

A burguesia pressiona, o governo vacila. É hora de lutar!

Governo atrasa anúncio dos novos cortes enquanto cresce mobilização contra o ajuste fiscal e pelo fim da escala 6x1
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Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional
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Autores

Pedro Micussi