Como a crise no Peru pode iniciar um novo marco na luta da América Latina

A votação fracassada de impeachment enfraqueceu o governo PPK e o indulto concedido ao ex-ditador Alberto Fujimori.

Carolina Ucha 27 fev 2018, 12:31

Nos últimos dias de 2017, o mundo voltou seus olhos para o Peru. O presidente Pedro Pablo Kuczynski (PPK) concedeu indulto humanitário ao ex-ditador Alberto Fujimori, famoso mundialmente por crimes de lesa-humanidade. Esse acontecimento evidenciou o quanto o país vive uma forte crise de representatividade política (da qual o indulto a Fujimori é apenas a ponta de um gigantesco iceberg), fazendo com que a esquerda socialista pudesse ver a importância que o Peru tem hoje na luta contra o sistema neoliberal,.

Entender a complexidade da crise peruana é fundamental para compreender que o país está passando por uma autêntica crise de regime, em que não se descarta a queda do atual presidente PPK. Sua vacância poderá abrir um novo marco na história da luta antineoliberal na América Latina, fortalecendo também a resistência em outros países, como o Brasil. Sem dúvida, há muito o que observar e aprender com a atual conjuntura peruana.

No nº 3 da Revista Movimento (outubro/dezembro de 2016), um artigo de nossa companheira Evelin Minowa reconstituiu a trajetória política do Peru desde a ditadura Fujimori, passando pelo governo traidor de Ollanta Humala e chegando às eleições de 2016 nas quais PPK saiu vencedor. Recomendo uma nova visita àquele artigo para que os leitores entendam o quanto a conjuntura política do Peru é resultado de uma Constituição que facilita a corrupção e de um mau governo protagonizado pela esquerda conciliadora (a qual não por acaso contou com enorme auxílio do lulismo para se relacionar de modo espúrio com o capital transnacional sediado no Brasil).

Hoje o Peru sofre as consequências da corrupção, uma das características essenciais dos governos neoliberais a serviço da maximização dos lucros das grandes empresas em detrimento do bem-estar social. Em dezembro de 2017, isso ficou ainda mais claro com todos os acontecimentos que marcaram a política nacional em menos de um mês. O presidente Pedro Pablo Kuczynski teve contra si um pedido de vacância que só não foi aprovado porque resolveu indultar Alberto Fujimori, enfrentando marchas de milhares de opositores nas ruas.

Quando em 21 de dezembro de 2017 colocou-se em votação o pedido de vacância do atual presidente PPK, os principais partidos a apoiarem a iniciativa foram a fujimorista Força Popular (bancada de 61 deputados), liderada por Keiko e Kenji Fujimori (filhos do ex-ditador), e a Frente Ampla (bancada de 10 deputados), organização de esquerda detentora de 18% dos votos nas eleições presidenciais de 2016 quando sua então líder era Veronika Mendoza (hoje referência do partido em construção Movimento Novo Peru, cuja bancada tem 10 deputados). Os pedidos de queda de PPK vieram depois da operação Lava-Jato revelar documentos que indicavam pagamentos da empreiteira Odebrecht a empresas do atual presidente peruano durante os anos em que este era ministro no governo de Alejandro Toledo.

Nestes intermináveis dias de discussão e debates acerca do pedido de vacância, PPK teve a oportunidade de ir à rede nacional, falar ao povo peruano e tentar provar sua inocência. Porém, nenhum argumento de PPK parecia convencer os entrevistadores, uma vez que não foi apresentada nenhuma prova do afastamento da administração de suas empresas durante o governo de Toledo. Segundo PPK, apesar de as empresas estarem registradas em seu nome, ele havia se distanciado delas para se dedicar exclusivamente à vida pública.

Ante a extrema fragilidade da defesa, o Congresso Nacional do Peru aceitou iniciar um processo de vacância de Kuczynski, com 93 votos favoráveis, 17 votos contrários e nenhuma abstenção. Tudo apontava para um desfecho melancólico para PPK, visto que seu próprio partido possuía uma bancada modesta de 15 deputados. Entretanto, em 21 de dezembro de 2017, 14 horas de debates resultaram na absolvição do presidente. Eram necessários 87 votos para confirmar a queda de PPK, ou seja, ⅔ do total do Congresso Nacional; no entanto, o placar da votação apontou 79 congressistas a favor, 19 contra e 21 abstenções.

O mais curioso desta surpresa é que, dentre os parlamentares que salvaram a pele de PPK, estavam 10 representantes fujimoristas da Força Popular, a maior bancada do Congresso que estava prestes a tomar o controle do Executivo por meio do impeachment. Três dias depois da rejeição da “vacância”, o povo peruano e toda a mídia nacional e internacional saberiam o que estava em jogo e qual foi a moeda de troca para que parte da bancada do partido com maior número de cadeiras no congresso votasse contrário à própria orientação política.

Já em novembro de 2017, o atual partido de Verónika Mendoza, o Movimento Novo Peru, mais precisamente através da corrente internacionalista Súmate (organização-irmã do MES no Brasil), denunciara em seu boletim nacional que estava sendo gestado um pacto de impunidade no Congresso Nacional. O principal objetivo deste “acordão” seria estancar as denúncias de corrupção vindas através da Lava-Jato contra os partidos tradicionais peruanos, o que passaria por um possível indulto a Alberto Fujimori, dado o tamanho da bancada de seu partido no Congresso.

A denúncia de um possível pacto de impunidade acabou se revelando certeira com a concretização da liberdade do ex-ditador. Uma ala do partido Força Popular, mais precisamente os aliados de Kenji Fujimori, votou contra a vacância de PPK para dias depois receber em troca a concessão presidencial de um indulto humanitário ao responsável pelos massacres de Barrios Altos, La Cantuta e pela política de esterilização forçada de mulheres campesinas. Com a desculpa de que o ex-presidente Alberto Fujimori estava muito doente e, por isso, deveria ser solto por questões humanitárias, na exata véspera de natal, Kuczinsky mostrou o seu papel no pacto de impunidade. A gravidade dessa anistia é tamanha que seria ilegal – sob o ponto de vista da jurisprudência internacional – conceder indulto a pessoas condenadas por delitos de sequestro e extorsão, acusações que levaram Fujimori a cadeia. Além disso um dos principais motivos para indultar o ex-ditador – um possível estágio terminal de seu quadro clínico – foi todavia desmentido por diversos médicos e especialistas. Dono de um currículo extenso de denúncias de corrupção e enriquecimento ilícito, Fujimori saiu enfim detrás das grades após uma negociação política suja que fere a alma de todos os que sofreram direta e indiretamente com seu governo ditatorial.

Assim que foi anunciado o indulto, a reação popular não tardou. Milhares de pessoas se pronunciaram contra a soltura do ex-ditador e declarações da Comissão Internacional de Direitos Humanos, da ONU, de partidos políticos nacionais e internacionais tomaram conta dos jornais peruanos. Imediatamente, movimentos sociais e familiares dos mortos ocuparam as ruas de todo o país com as consignas “Indulto é Insulto” e “Fora PPK”. A tentativa de Pedro Pablo Kuczynski de estabilizar a crise política e de representatividade peruana saiu pela culatra, aumentando ainda mais os problemas do atual governo.

No primeiro ano de gestão, além de quase perder seu mandato, Kuczynski teve uma grave derrota política quando quis enfrentar uma poderosa greve de professores. Depois de três meses de conflito, a ministra da Educação de seu governo caiu, obrigando PPK a retroceder em sua intransigência e a conceder o aumento pedido pelos professores peruanos. Essa luta foi o pontapé inicial de dois fatos importantíssimos para a história recente do Peru: o primeiro foi que as ruas e as mobilizações sociais voltaram a ter protagonismo, começando com a greve de professores e desencadeando em outras grandes manifestações que levaram 100 mil pessoas às ruas em todo o Peru a marchar contra os políticos corruptos, contra PPK e contra o indulto. A segunda é que abriu os olhos do mundo todo e, principalmente, da esquerda mostrando que há uma grave crise de regime acontecendo no Peru. Os últimos eventos demonstraram que o modelo neoliberal já não pode ser sustentado pela burguesia e pela casta política peruana sem grandes turbulências. A população já não mais acredita na atual forma de fazer política, enquanto as grandes denúncias de corrupção desnudam o sistema apodrecido vigente no Peru e evidenciam a falácia de que é possível manter o bem-estar social junto com o enriquecimento de grandes empresários e banqueiros. Há um descrédito de toda a casta política e as pessoas saem às ruas pedindo que todos os corruptos sejam presos, independente de quem sejam eles, porque já não aguentam mais sofrer com os absurdos de um sistema falido.

O papel da esquerda peruana na atual crise

Assim como em todo o mundo, uma grande polarização atravessa o país. Tanto a esquerda quanto a direita disputam os primeiros lugares nos resultados eleitorais. Em 2016, a direita tradicional foi representada por Keiko Fujimori e a nova esquerda progressista teve Veronika Mendoza como principal liderança. E, na atual conjuntura, isso segue se aprofundando.

O indulto concedido a Alberto Fujimori mostrou o quanto o país encontra-se dividido. Segundo pesquisa realizada em janeiro de 2018 feita por GFk, respeitado instituto de pesquisa peruano, 50% da população do Peru estaria a favor do indulto a Fujimori, e 49% contra. Outros dados importantes da pesquisa são que o presidente Pedro Pablo Kuczynski tem apenas 20% de aprovação popular, ao passo que 88% da população acredita que Fujimori deveria pedir perdão pelos crimes cometidos.

A conclusão a se extrair desta pesquisa é que existe um enorme espaço de construção para nova esquerda radical no Peru, uma esquerda que não tenha medo de dizer seu nome e que não tenha nenhum tipo de ligação com esquemas de corrupção. Depois de crises internas no Partido Frente Ampla, Veronika Mendoza impulsionou, junto com outras organizações, a criação de um novo movimento partidário no país, o Movimento Novo Peru. Seu Congresso Fundacional aconteceu nos dias 9 e 10 de dezembro de 2017, aprovando um programa que representa a esquerda radical peruana, a qual combina a luta por soberania nacional e pelo direito do povo peruano, com princípios socialistas e antineoliberais. Tem uma composição bem ampla, com líderes de províncias, indígenas, trabalhadores rurais, jovens, LGBTs e feministas. Um dos principais eixos do MNP é a luta por uma Assembleia Constituinte, luta que constava no programa que elegeu Ollanta Humala, mas que foi abandonada durante sua traição.

Para representar verdadeiramente o povo peruano, é preciso mudar as regras da atual política nacional. A Constituição atual do Peru data de 1993, época em que foi modelada pelo então presidente Alberto Fujimori a fim de favorecer seus interesses de perpetuação no poder. Anos após a queda de Fujimori, ela permanece completamente inviável do ponto de vista da satisfação das necessidades populares e democráticas, por sustentar um modelo político e econômico que favorece a corrupção e constantemente nega direitos da população, além de tornar quase impossível a emergência de novos partidos políticos nas corridas eleitorais. Hoje para poder legalizar seu partido e ter candidatos com a inscrição do MNP, seus militantes necessitam recolher quase dois milhões de assinaturas, o que é uma velha manobra constitucional das forças da ordem para barrar a aparição e desenvolvimento de novas alternativas políticas – conforme bem sabem os que recolhemos assinaturas para a formalização do PSOL em 2005.

Agora, o Movimento Novo Peru tem como uma de suas tarefas articular junto ao campo popular e progressista uma nova alternativa de governo, liderando a unidade com setores de esquerda que ainda não constroem o MNP, mas que também estão na luta por uma Nova Constituição, pela anulação do indulto e na luta contra a corrupção.

O exemplo da luta anticorrupção

Um dos principais eixos programáticos do Movimento Novo Peru é encabeçar a luta anticorrupção. Nos últimos anos, assim como no Brasil, grande parte dos políticos peruanos teve seus nomes envolvidos em denúncias de assalto aos cofres públicos. Por graves acusações de recebimento de propina e enriquecimento ilícito, o ex-presidente Ollanta Humala foi preso e um de seus antecessores, Alejandro Toledo, está foragido da Justiça. Ambos ajudaram a entregar os recursos naturais do Peru às megacorporações transnacionais. Neste sentido, a luta contra a corrupção é fundamental e inevitável para uma esquerda que diz ser antissistêmica, já que as engrenagens do neoliberalismo tem como graxa o pagamento pornográfico de propinas de empresas para políticos. A luta anticorrupção é intrínseca à luta por uma mudança de regime, e se calar diante dessa batalha é ser cúmplice do maior descontentamento de um povo que carece dos direitos mais básicos quando a casta política enriquece-se com favores aos grandes capitalistas.

Felizmente, a esquerda peruana, representada tanto pelos velhos PC´s quanto as novas confluências políticas como o MNP, não tem demonstrado vergonha de sair às ruas junto com a população para denunciar esquemas de corrupção no país, sem medo de afirmar que a nossa moral é oposta à falta de escrúpulos dos partidos burgueses. A palavra de ordem das ruas e da esquerda é “Que se vayan todos los corruptos”, independente de quem sejam eles. É fundamental e urgente que a esquerda brasileira perca a alergia de marchar contra a corrupção com a falsa desculpa de que essa é uma pauta da direita. Assim como no Peru, somente a verdadeira esquerda no Brasil, de fato, quer a mudança do modelo econômico. Não devemos ter vergonha de dizer que todos os corruptos devem ser presos, nem defender os governos do PT que estão atolados até o pescoço com denúncias de desvio de dinheiro e favorecimento a empresas e empreiteiras, até porque nossas principais figuras públicas não fizeram e nem fazem parte do conluio que saqueou boa parte das riquezas do Estado. Nesse sentido, é importante ter consciência de que a esquerda peruana está muito mais avançada do que nós.

A provável queda de PPK e as mudanças que podem ocorrer em toda a América Latina

A aprovação de Pedro Pablo Kuczynski não para de cair. Os módicos 20% de apoio popular estão estampados todos os dias nos periódicos do Peru, com uma crise de governabilidade imensa, tendo sido concedido o indulto para seguir no poder. Aliás, tal manobra foi o pontapé inicial para que muitos ministros e articuladores políticos abandonassem o governo. Para tentar estancar a crise, PPK anunciou que faria um Governo de Reconciliação Nacional, nomeando fujimoristas “de confiança” em ministérios e em cargos de segundo escalão do governo.

Para seu azar, a tentativa de represar a crise não surtiu muito efeito, já que as lutas só aumentaram. Em um mês, milhares protestaram contra PPK pedindo sua renúncia. A Frente Ampla e o Movimento Novo Peru estão apresentando novos pedidos de vacância do atual presidente. Universidades nacionais foram ocupadas. Os professores anunciaram uma Assembleia Nacional para uma possível retomada da greve. Esses são alguns dos elementos que atestam que PPK segue na corda bamba, e apenas um sopro, que deverá ser dado pela indignação de milhares, poderá antecipar sua ida definitiva para a lata do lixo da História.

Nos últimos dias de janeiro de 2018 e no começo de fevereiro do mesmo ano, uma grande greve de trabalhadores agrários vem apimentando ainda mais a instável conjuntura política. Mais de 10 mil agricultores marcharam até Lima para exigir respostas do governo peruano diante da crise que hoje se encontram os agricultores, em especial os produtores de batatas. Trabalhadores agrários de 8 regiões do país exigem uma abertura de diálogo com os dirigentes da greve, que fecharam estradas no Sul do país, impactando um importante setor da economia peruana. Em resposta, o Ministério da Agricultura exibe uma total incapacidade política e uma falta de compromisso com os grevistas, cujas reivindicações centrais são a defesa da produção nacional, a declaração de situação de emergência do setor agrário, a implementação efetiva de programas de assistência técnica, a revisão e modificação dos Tratados de Livre Comércio. A resposta dada por Pedro Pablo Kuczynski é a clássica negativa ao diálogo e uma forte repressão que já causou a morte de 10 agricultores, segundo porta-vozes dos grevistas.

Uma breve leitura da dinâmica política recente do Peru leva à conclusão de que estamos numa etapa caótica. Jornalistas e analistas políticos pedem diariamente a renúncia do atual presidente como saída menos traumática para a crise de governabilidade, visto que o poder de mando de PPK reduz-se conforme avolumam-se as rupturas de seu campo político. Não é exagero pressentir que a qualquer momento PPK poderá dar adeus a Casa de Gobierno. E se cai Pedro Pablo Kuczynski, ele cairá não só por ser um péssimo político, mas também porque o modelo neoliberal é absolutamente incapaz de assegurar os direitos básicos da população peruana e de resolver às necessidades mais prementes da classe trabalhadora. Sua possível queda fortalecerá e ajudará na luta antissistêmica e anticorrupção em toda a América Latina, que também passa por crises agudas sob a direção de forças políticas tão burguesas quanto PPK.

A esquerda peruana tem em suas mãos as chances de estar lado a lado com a população nas ruas e impulsionar a queda de Kuczynski; se isso acontece, outros países poderão seguir o exemplo dos peruanos.

Este artigo faz parte da edição n. 7-8 da Revista Movimento. Para ler os demais textos desta edição compre a revista aqui!


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