A “onda conservadora” e os impasses de uma alternativa

Uma ilusão está sempre presente naqueles que aderem ao discurso petista e à hipótese de um ascenso conservador.

Bruno Magalhães 2 mar 2018, 11:59

As recentes movimentações na conjuntura brasileira acirram o debate entre a vanguarda revolucionária e mobilizam as organizações de esquerda na explicação da complicada situação política. A condenação de Lula pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, a intervenção federal no Rio de Janeiro, a desistência da aprovação da Reforma da Previdência pelo governo Temer, entre tantos outros fatos, são parte de um cenário contraditório que embaralha a argumentação de muitas organizações. Dentro do PSOL e da esquerda combativa, o último período reforçou análises que aderem ao discurso petista e fazem muitos revolucionários recuarem em formulações históricas, permitindo absurdos como o recente manifesto “Unidade para reconstruir o Brasil”, assinado pelo PT, PCdoB, PDT, PSB e infelizmente também pelo PSOL. Acolhendo posições dos antigos governistas, parte do PSOL e dos movimentos sociais agora aceitam a narrativa que denunciaram por anos, promovendo um discurso de medo e de conformidade entre a militância que causa grandes danos ao partido e as lutas sociais do país.

Uma ilusão está sempre presente na aderência ao discurso petista: a hipótese da “onda conservadora”. Esta posição define que há grande unidade entre os partidos da ordem e o judiciário para a aplicação de uma agenda política conservadora, sendo iniciada em 2013 para alguns e no impeachment de Dilma para outros, o que explicaria os últimos anos como um momento exclusivo de ataques contra a classe trabalhadora no qual construir a “unidade” entre a esquerda seria a principal tarefa do PSOL.

Dessa afirmação equivocada nascem posições repletas de lacunas que demonstram as contradições das organizações que as defendem, revivendo os velhos problemas da narrativa petista e ignorando elementos do cenário político. As explicações da realidade a partir da “onda conservadora” deixam grandes buracos em suas narrativas, e esse texto pretende dialogar justamente com as ausências presentes nessas posições. Nesse cenário difícil onde boa parte do PSOL se dilui naquilo que sempre combateu – o que se evidencia no atual problema dos presidenciáveis – é importante criticar os discursos fáceis e pensar novas possibilidades para nosso partido enquanto alternativa.

O golpe parlamentar brasileiro

Antes de falar sobre a hipótese da “onda conservadora” é preciso recuar um pouco e pensar sobre o impeachment de Dilma, nosso recente golpe parlamentar. É interessante notar que a palavra “golpe” passou por inegável mudança de seu sentido político após o impeachment, o conceito brasileiro de golpe de estado antes de agosto de 2016 dizia respeito exclusivamente a uma tentativa violenta de derrubada de um governo, ao coupd’etát do século XX, e a palavra golpe nos remetia diretamente ao regime militar de 1964. Antes de 2016, a utilização dessa palavra para designar graves manobras antidemocráticas dos congressistas burgueses (como contra as eleições diretas em 1984 ou durante a Constituinte de 1988) não faria sentido, principalmente pela lembrança recente da violência da ditadura militar. Na política as palavras têm força, e a palavra “golpe” nos remetia diretamente a uma disputa física do poder. É incontestável que o golpe parlamentar contra Dilma alterou seu significado.

Antes desse impeachment, a América Latina vivenciou três tentativas recentes de golpes de estado: Venezuela (2002), Honduras (2009) e Paraguai (2012). Na primeira houve o formato do golpe militar clássico, com a tomada forçada do poder e a destituição do regime anterior, prendendo o presidente Hugo Chavez e iniciando grande perseguição política. Esse golpe foi derrotado nas ruas pela mobilização da população e de setores do exército em defesa de Chavez, em uma situação de disputa física do poder.

Honduras e Paraguai foram casos especiais pois tiveram golpes em um formato diferente, os chamados “golpes parlamentares”. Em Honduras, o presidente Zelaya rompeu com o Congresso e o Judiciário na tentativa de convocar uma nova constituinte e foi deposto por Roberto Micheletti, cujo governo não obteve reconhecimento de nenhum país. No Paraguai, um conflito fundiário (o massacre de Curuguaty) serviu de justificativa para o Congresso iniciar um processo de impeachment que durou apenas dois dias e destituiu o presidente Fernando Lugo. Tanto em Honduras como no Paraguai, o golpe parlamentar foi rechaçado pela comunidade internacional e levou esses países a períodos de isolamento.

Apesar de diferença de proporções entre os países, as características dos golpes parlamentares em Honduras e Paraguai são importantes para a análise do golpe brasileiro. Nos dois casos, o congresso e o judiciário utilizaram-se do enviesamento de formalidades jurídicas para ir contra a própria forma jurídica de manifestação da vontade popular (através da eleição de seus líderes segundo a democracia burguesa) e nisso têm semelhança direta com o golpe brasileiro. O argumento das pedaladas para o impeachment de Dilma foi um grande formalismo jurídico utilizado de forma partidária, constituindo uma desculpa para a deposição da presidenta tão medíocre quanto a própria composição do Congresso Nacional e do STF.

O golpe contra Dilma foi um golpe parlamentar desse tipo, com características semelhantes aos golpes hondurenhos e paraguaios no que se refere às movimentações ilegítimas do Legislativo e do Judiciário (onde um pretexto formal esconde o argumento real para o golpe), estando mais próximo destes fenômenos do que da experiência brasileira anterior, o golpe de 1964. Entretanto, ainda sim o golpe parlamentar brasileiro possui grandes diferenças com os outros dois casos, e essas características específicas do caso brasileiro são essenciais para a análise do momento político atual.

A primeira diferença entre o golpe brasileiro e outros golpes parlamentares está em seu operador principal, Michel Temer. De forma inovadora, o conspirador-chefe não era uma liderança da oposição ou um general conservador, mas sim um aliado estratégico. O argumento de que “o Brasil não votou em Temer” é verdadeiro do ponto de vista real, mas falho sob o aspecto jurídico formal, afinal era o vice-presidente eleito, e a chapa Dilma-Temer foi absolvida posteriormente contando inclusive com o apoio do PT. Temer com certeza merece o título de traidor, mas não se pode dizer que o golpista tenha camuflado sua agenda política de seus antigos aliados, ela já era evidente anos antes do golpe. Isso faz dele um presidente ilegítimo, mas contando com reconhecimento jurídico muito maior do que dispunham Michelleti ou Federico Franco, e a pífia repercussão internacional do nosso golpe parlamentar reflete isso.

Daí vem outra diferença do caso brasileiro: o golpe não aconteceu para “tomar o poder”, mas sim para “desfazer uma coalizão”. Diferentemente de Lugo e Zelaya, Dilma foi deposta por sua própria coalizão eleitoral. Isso não dá legitimidade ao impeachment, mas explica as sucessivas tentativas de recomposição do PT com o PMDB, sua ponte para o poder. As alianças realizadas nas últimas eleições municipais e as promessas de uma nova Carta ao Povo Brasileiro deixam isso explícito, assim como o comportamento de Lula perante a política do “Fora Temer”, a inação das centrais sindicais próximas ao PT perante as greves gerais em 2017 ou tantas outras dubiedades da política petista após o impeachment. A postura petista perante a recente intervenção federal no Rio de Janeiro aparece como cereja do bolo desse raciocínio.

A própria permanência no governo estava baseada em uma aliança com o PMDB e outros partidos da burguesia, que lastrearam as gestões petistas e assumiram o papel de fiadores desses governos perante o mercado, ao mesmo tempo em que a direção do PT procurava avidamente realizar reformas liberalizantes e estabelecer suas próprias relações com o setor financeiro e as grandes empresas. O escândalo do mensalão, já no primeiro governo de Lula, derrubou José Dirceu e deu algumas evidências sobre relações históricas da burguesia que então se consolidavam no PT, demonstrando que o tipo de vínculo entre os governos petistas e suas “bases aliadas” reeditaria as práticas do governo FHC aplicadas nos anos 90.

Devido a essas e outras diferenças, o processo legal do impeachment de Dilma foi diferente dos outros golpes parlamentares. Fernando Lugo teve apenas poucas horas para entregar sua defesa e Manuel Zelaya foi obrigado a se refugiar por meses na embaixada brasileira em Tegucigalpa. No Brasil, ao contrário desses processos sumários, o impeachment de Dilma seguiu por longos meses e teve direito a todo tipo de súplicas e sinalizações perante Temer, Renan Calheiros, Eduardo Cunha e tantos outros políticos conservadores. As contínuas promessas de ajuste fiscal feitas por Dilma durante os últimos meses de governo ocuparam o possível lugar de qualquer forma de resistência não-institucional, sempre esperada na ocasião de um golpe.

Apesar das bravatas dos burocratas sindicais que “pegariam em armas”, o golpe parlamentar brasileiro aconteceu de forma lenta e melancólica, mais parecido com o fim de um relacionamento do que com uma disputa pelo poder. Na situação mais crítica, ocupando a presidência e de frente para o abismo, o PT sinalizou que faria qualquer coisa, menos enfrentar a burguesia que facilitou seu acesso ao poder. O fato de ter ocorrido pouca resistência real contra o golpe (nenhuma greve política, nenhuma medida clandestina) é fruto direto desse espírito de continuidade que marcou o golpe parlamentar brasileiro.

Se é certo que vivenciamos um golpe no Brasil em 2016, é certo também que nosso golpe foi diferente. Não foi um golpe militar e nem um golpe parlamentar comum, o golpe contra Dilma teve inúmeras especifícidades e o sentido que damos hoje à própria palavra golpe carrega um significado novo, muito mais próximo de uma “ruptura de coalizão política” do que de uma “ruptura de regime”. Isso faz toda diferença.

Unidade da burguesia?

Caracterizar o golpe é essencial para debater o momento que vivemos, e a disputa de versão sobre o ocorrido em 2016 é parte desse debate. Para a direção petista é importante que o significado do golpe parlamentar esteja mais próximo de “ruptura de regime” do que de “ruptura de coalizão política”, pois ignorando suas continuidades torna-se mais fácil construir a narrativa que imprime o impeachment como centro da luta de classes e nega o golpe parlamentar como fruto de uma disputa entre aliados, de forma a absolver ou pelo menos prescrever as condutas do PT no governo.

Nessa versão, o PT e sua aliança estariam “transformando o Brasil”, tarefa nobre impedida pela “onda conservadora” que se iniciou em 2013 e culminou com o golpe, fruto da unidade da burguesia e do judiciário contra o PT, em busca do poder para aplicar uma agenda de reformas neoliberais. A condenação de Lula seria mais uma etapa desse plano, passo imprescindível para a aprovação de novas reformas como aconteceria no caso da Previdência.

Essa narrativa é sedutora pois facilita os impasses da conjuntura. Se existe uma “onda conservadora” e Dilma foi derrubada por um processo genuíno de luta de classes, este cenário político se divide limpidamente entre os interesses dos trabalhadores contra os interesses da burguesia. Ao promover essa perspectiva, o PT varre para baixo do tapete toda a sujeira política do seu longo período de governo e todos os seus mecanismos de aliança com as elites, e sem nenhum constrangimento se demonstra ora “injustiçado” ora “arrependido” dependendo da necessidade.

O erro proposital da narrativa petista, infelizmente compartilhada por setores do PSOL, está na afirmação da existência dessa conspiração unitária da burguesia contra o PT. Essa afirmação vai desde posições mais extremadas, que vêem no imperialismo norteamericano toda a responsabilidade pela situação política brasileira, até outras que vêem o problema como uma articulação entre o conjunto da burguesia nacional e do judiciário. Certas organizações levantam ainda uma terceira posição que recusa formalmente a unidade da burguesia, mas atuam com uma política defensiva como se tal unidade existisse na prática. A ideia de unidade da burguesia é muito importante para sustentar a hipótese da “onda conservadora”, e cabe aqui levantar alguns problemas pouco lembrados sobre essa hipótese no debate da vanguarda e no sensacionalismo das redes sociais.

O primeiro problema na hipótese de unidade entre a burguesia e o judiciário contra o PT se encontra na análise da relação entre o próprio PMDB e o judiciário. Dizer que há uma aliança entre o PMDB e o judiciário é o tipo de afirmação que tira a credibilidade perante a opinião pública, afinal são de conhecimento geral os problemas que o PMDB enfrenta com as recentes investigações. Também é de conhecimento público que PT e PMDB se alinham em uma posição contrária à própria existência das investigações da Lava Jato, criticando suas conclusões através dos mesmos formalismos jurídicos que os políticos burgueses sempre se utilizaram. A posição histórica de Paulo Maluf, em cuja defesa se alega a inexistência de qualquer documento assinado, hoje faz escola da pior maneira possível.

A percepção de que Moro é um perigo maior do que Gilmar Mendes traduz a falácia dessa posição, que se propaga pela desinformação. Questionamentos simplistas como “por que Moro não prende Aécio?” ou outros do gênero são consequência dessa desinformação planejada que ignora propositalmente Gilmar, o STF e as consequências do foro privilegiado, negando as múltiplas determinações e interesses do jogo político nos partidos e no judiciário. Não se trata de ignorar a atuação de Sérgio Moro ou muito menos defendê-la, não há dúvida de sua instrumentalização política ou da ação de espetacularização dos processos, mas é importante levar em conta a desproporção entre sua agenda e aquela personificada por Gilmar Mendes e os interesses que este representa.

Ou seja, no centro da principal polêmica entre o PT e parte do judiciário, o PMDB (e mesmo boa parte do PSDB) se coloca ao lado do PT. Não se trata aqui de debater essa posição em si, mas de desconstruir a hipótese da conspiração unitária tão fundamental para a defesa da posição petista e do “caso Lula” como centro da luta política atual. Se a condenação de Lula era a antessala da Reforma da Previdência, o que deu errado no plano dessa “burguesia unificada”? Ao invés de responder essa pergunta, setores ávidos pela relação com o petismo preferem esquecer a questão.

A exclusão capciosa na narrativa petista da questão do foro privilegiado, elemento central da seletividade do Judiciário, é notável. Mesmo sendo um processo político, a explicação jurídica para o tratamento desigual dado a Lula (comparativamente a Temer ou Aécio, por exemplo) está no fato dele não possuir foro privilegiado e não ter acesso ao ameno tratamento que o STF dá a políticos com mandato. Essa foi a situação contigente que permitiu a um setor da burguesia aprofundar as investigações contra Lula sem ser afetado pelas mesmas, retirando esse personagem do cenário eleitoral. Se o problema real fosse levado em conta, o caso Lula seria levado ao STF dado que é o mais importante do país do ponto de vista político, mas o fato é que o formalismo jurídico opera na brecha (Lula não ter foro privilegiado) e promove uma ação seletiva. Nesse cenário de cartas marcadas, com certeza Lula deveria ter o direito de disputar as eleições independente de ser culpado ou não, mas se é fato que a situação do ex-presidente estaria bem melhor no STF, encontramos então mais uma evidência da falta de unidade do imaginado “partido do judiciário”.

A questão do STF é importante. A posição da “conspiração unitária” que vê o judiciário como um partido político informal ignora uma profunda divisão neste poder materializada no próprio STF e entre esse tribunal e as instâncias inferiores. A mão leve do STF com inúmeros políticos investigados aprofunda a percepção de seletividade no caso de Lula, e muitas decisões dessa corte suprema vão no mesmo sentido contrário à “judicialização da política” manifestado pelo PT e pela maioria dos partidos burgueses. De outro lado, juízes de primeira instância, em sua maioria representantes do pensamento conservador, promovem uma cruzada ética recheada de hipocrisias e atuam através de duras sanções e penas entre os réus que não possuem foro privilegiado. Não se trata aqui de debater a diferença jurídica em si, nem de tomar parte nessa disputa intraburguesa, mas de evidenciá-la para provar de forma irrefutável que não há unidade de ação no judiciário. Esse elemento é central porque abre novas possibilidades. Mas, ao invés de lutar de forma tenaz contra o foro privilegiado, o enfrentamento contra um hipotético “partido do judiciário” infelizmente faz a maioria da esquerda combativa hoje defender de forma indireta o “foro privilegiado para todos”.

O problema das investigações reforça esse argumento. Outra inusitada mudança recente no vocabulário da esquerda aconteceu no caso da palavra “investigação”, que ganhou um sentido político além do original. Incorporando o espírito da direção petista, muitos camaradas combativos passaram a ver as investigações como sinônimo de perseguição política, e muitas posições contrárias à Lava Jato foram emblemáticas disso. Não há dúvida que nos últimos anos se descortinaram processos reais de corrupção envolvendo os diversos partidos da ordem, gerando uma instabilidade no regime que se mantém após o rearranjo do golpe parlamentar. O estrago feito no PT, realmente potencializado pela ação política de setores da burguesia, não anula a reviravolta ocorrida no cenário nacional nem a materialidade dos diversos esquemas de corrupção que giraram a engrenagem do regime nas últimas décadas e hoje são em parte desvelados.

A derrocada do PMDB carioca, a crise aberta no PSDB com a desmoralização de Aécio, a dificuldade de Temer em aprovar reformas no congresso mais instável da Nova República, entre tantos outros efeitos influenciados pela Lava Jato, não parecem resultado de uma ação combinada entre atores da burguesia, e esse é outro elemento concreto sacrificado para a manutenção da narrativa petista. Nas fake news da órbita petista se ignoram contradições para a criação de narrativas ideais, com os fatos dando lugar ao puro propagandismo, mas é evidente que toda essa confusão política é fruto da fragmentação de interesses da classe dominante brasileira, que disputa entre si os espólios do momento de crise. Não é algo de difícil compreensão para militantes de esquerda já muito experimentados nas dificuldades da unidade política, e apesar da “facilidade” na leitura dessa burguesia como um setor unificado, hoje ela é impossível na medida que todos os fatos a contradizem.

Aceitando-se a possibilidade da disputa intra-burguesa, fica evidente que nesse jogo o PT não representa os interesses dos trabalhadores, mas sim de um setor das frações burguesas que se enfrentam. As seguidas capitulações do PT (que tanto desapontam seus aliados no PSOL) já são parte de sua natureza enquanto força política, e tudo indica que esse partido continuará de joelhos perante a burguesia independentemente dos discursos radicalizados que possam ensaiar. O discurso dúbio de Glesi Hoffman, que muda bastante dependendo do palanque, é um exemplo categórico dessa afirmação.

Duas posições perante as investigações

Demonstrada a fragmentação de interesses na burguesia e no judiciário, é importante refletir sobre as características da operação Lava Jato e criticar as posições da vanguarda socialista sobre o tema. É bom notar que por Lava Jato entende-se aqui também todas as suas investigações derivadas, que estão umbilicalmente ligadas a ela, e qualquer posição que reivindique os efeitos de operações como a Zelotes ao mesmo tempo que defenda o encerramento da Lava Jato carece de fundamento básico. Posições híbridas, como a defesa da punição à Eduardo Cunha e do fim das investigações ao mesmo tempo, de largada já não tem como sustentar sua argumentação.

Outras posições que não se sustentam são aquelas que não vão contra as investigações por princípio, mas defendem “novas investigações”. São posições falhas porque se iludem com uma possibilidade de investigações ideais feitas pelo Estado burguês, como se os problemas da Lava Jato fossem de seus operadores e não do Estado que regula seus cargos. São também impraticáveis, pois princípios jurídicos básicos como a jurisdição e o juiz natural atuam justamente contra a insegurança jurídica que seria gerada pelas tais novas investigações. Sem propor nem ao menos quem operaria essas investigações, trata-se de uma bela “escapada” para não lidar com as contradições do judiciário, servindo apenas para a construção de um discurso aderente à média da vanguarda.

Escapada ainda maior está na posição maximalista, que exige “o julgamento dos corruptos pelos trabalhadores”. Nesse caso, ou a palavra julgamento possui um sentido figurado não declarado ou está se colocando o problema das investigações para um futuro hipotético, e é interessante como os dois significados da frase se confundem oportunamente entre os defensores dessa posição. Essa posição propagandista não possui nenhum sentido prático e é utilizada principalmente para a própria coesão interna das organizações que a proclamam, pelo menos até a questão do poder popular estar posta na realidade.

Sobram então duas posições: o fim expresso da Lava Jato, defendido pela direção petista, ou a continuidade das investigações. O problema da primeira posição é evidente, afinal é a posição do “acordo nacional” de Romero Jucá para “estancar a sangria”, “com o Supremo, com tudo” (novamente o STF). Nem é preciso argumentar sobre a popularidade dessa posição, e muitas figuras públicas que hoje defendem o fim da Lava Jato dentro do PSOL felizmente passam longe disso nas suas declarações para fora. Note-se que essa posição de Jucá é mais um indício de cisão na burguesia, é disso que ele trata com sua proposta de acordo nacional.

Defender que as investigações acabem e seus efeitos seja suspensos pois são parte de uma conspiração burguesa é um argumento já vencido acima. A hipótese de ação coordenada entre a burguesia, a casta política e o judiciário vai contra todos fatos, apesar da sensação de segurança que trás às organizações e suas militâncias, e as saídas pela tangente também demonstram que não resolvem o problema. Resta então encarar de frente a questão das investigações, nos marcos da complexa defesa de sua continuidade.

O discurso filopetista feito por algumas organizações afirma que, como as investigações são produto do poder judiciário e como este poder é evidentemente de natureza burguesa (tal como todo o Estado), as próprias investigações são de caráter burguês e estão comprometidas em sua raiz, não podendo ser apoiadas por princípio. E as investigações realmente estão comprometidas, não há ilusões sobre isso.

Mas o problema começa quando investigações realizadas pelo próprio estado burguês encontram grandes esquemas de corrupção durante a cruzada por sua manutenção. O crime de lavagem de dinheiro, tão inerente ao próprio sistema, precisa ser combatido por um Estado que vive de tributos, sob pena de seu próprio colapso, e para isso existem agentes públicos que operam ações nesse sentido. De forma alguma são socialistas ou revolucionários, pelo contrário atendem a uma função necessária no Estado burguês, apesar de contraditória com sua natureza.

Essas investigações são parte de uma disputa política geral. Como não há perspectiva de um setor combativo se desenvolvendo entre seus agentes, elas são orientadas e instrumentalizadas de acordo com a política de seus diversos operadores e isso as faz um elemento da realidade alheio à vontade dos revolucionários. Mas a questão central é outra, e está relacionada à postura da esquerda perante informações concretas trazidas por essas investigações, principalmente quando essas novas informações são evidências de desvios de dinheiro público operados por possíveis aliados na luta contra a tal “burguesia unificada”.

A relativização da corrupção torna-se então obrigatória pois é impossível explicar ao povo como se combate uma máfia aliando-se a outra, e o argumento da corrupção como “mal menor” torna-se o centro, como se fosse possível isolar a corrupção do própria sistema onde existe. Nesse processo de relativização comum na esquerda florescem argumentos descabidos que declaram a antiguidade dos esquemas de corrupção, que comparam os valores desviados, que defendem um acusado através da crítica a falta de punição à outro, entre outras alegações que trocam a análise concreta por formalismos jurídicos ou políticos.

Contra essa postura, uma posição independente de defesa das investigações e de luta pela revelação do máximo de esquemas do balcão de negócios da burguesia deve o caminho da esquerda combativa, seja por opção imediata ou pela eliminação de outras possibilidades bem piores. Essa luta, que se materializa com o combate cotidiano contra a corrupção, deve ser flexível e fazer frente aos discursos conservadores que crescem no vazio da narrativa de esquerda sobre esse tema. Não significa adesão a nenhuma manobra de setores da burguesia nem a movimentos que não expressem uma pauta mais ampla, mas sim uma postura de combate contra qualquer esquema corrupto legal ou ilegal, buscando dialogar com a indignação da população espoliada diariamente.

A perseguição aos movimentos sociais é outro argumento que surge contra as investigações, ainda que a ligação entre as investigações de lavagem de dinheiro e os movimentos sociais seja hipotética. A perseguição aos que lutam, cujos marcos legais atualmente residem na Lei Antiterrorismo de 2016 e na Lei das Organizações Criminosas de 2013, é uma constante do regime e de fato tende a se acirrar com o crescimento das lutas sociais nesse momento de crise, e seria irresponsabilidade não se atentar a isso. Mas o argumento de que a perseguição ao PT acirraria por si só esse processo carece de fundamento porque as definições legais para a repressão aos movimentos foram atualizadas justamente pelo PT, e as datas de aprovação dessas leis – uma logo depois de Junho e outra logo antes do impeachment – dizem bastante sobre a hipocrisia retórica desse argumento. Beltold Brecht, cujo poema foi tão distorcido no contexto recente, se enfrentava com a ascensão do fascismo e não com acusações de lavagem de dinheiro contra lobistas.

O impasse da alternativa

A construção de uma alternativa política é o dilema atual. Entre a crise da estratégia petista e as tentativas de recomposição do campo da burguesia, surge espaço para uma política independente que se coloque contra o regime falido e em defesa dos interesses do povo. Mas para esse espaço ser ocupado é necessária uma alternativa de fato independente, recusando qualquer tipo de aderência ou compromisso com o PT enquanto força política. A nova política se construirá pelo conflito contra projetos ultrapassados, apostando em novas dinâmicas sociais e não em recomposições com velhas burocracias de esquerda.

Aqueles que amenizam esse movimento de conflito e celebram a unidade com o PT em certas circunstâncias (seja no vergonhoso manifesto pela unidade citado no início do texto ou nas marchas em defesa da inocência de Lula) o fazem pelo mesmo motivo aparente. Utilizam-se de forma instrumental da fraca ideia de uma burguesia unitária e reivindicam a necessidade da unidade política como forma de autoconstrução em um momento difícil da conjuntura. Nessa leitura, os ataques contra o PT são automaticamente ataques contra os trabalhadores, o que torna necessária a organização de frentes políticas (ou mesmo eleitorais) com a direção petista e a defesa desse setor sempre que ameaçado, abrindo possibilidades de crescimento residual a partir dessa relação.

O impressionismo que leva a essa posição é consoante com a ideia da “onda conservadora”. Ao negar certas ferramentas de luta em prol de uma aproximação com os petistas, aqueles que o fazem trocam política por espaço político, se afastando da luta independente contra o regime e a partidocracia brasileira. Ao estabeleceram a “unidade da esquerda”, dão as costas a imensos setores da população que buscam uma alternativa radical de saída dessa crise, e abrem espaço para os conservadores ocuparem posições pela mudança radical na sociedade.

O exemplo de Bolsonaro é emblemático disso. Seu fortalecimento no último período, assim como a reorganização recente de um conservadorismo militante, foram vistos por muitas organizações como a prova de ouro que confirmaria a hipótese da “onda conservadora” ou até mesmo do perigo do fascismo, no caso dos mais impressionados. Ora, se há décadas não havia uma posição conservadora proeminente no discurso público e agora ela existe, a lógica formal obriga quem a aplica a declarar que o conservadorismo avança linearmente. Os reacionários que hoje se assumem publicamente são utilizados então como prova cabal dessa situação adversa que obrigaria o PSOL a sinalizar uma aliança política com representantes do “progressismo” ligado à Odebrecht.

O problema dessa análise é ignorar todo o resto de fenômenos existentes no contexto de Bolsonaro. Nos parece mais provável a hipótese de que inegáveis avanços sociais, como nas pautas feministas e LGBTs, tenha sido dialeticamente o motor dessa reação conservadora do que a hipótese contrária na qual Bolsonaro é parte de uma onda impulsionada por uma burguesia unificada. A base política dos conservadores, majoritariamente masculina, branca, heterossexual e ressentida com certo deslocamento de suas posições de poder, provavelmente reagiria dessa forma em qualquer contexto. Grupos sociais dominantes que perdem protagonismo tendem a reagir de forma raivosa, e é justamente nessa luta entre contrários que se forja o futuro. Seriam exemplos da “onda conservadora” os ataques racistas contra o crescente movimento de diretos civis nos EUA da década de 1960? Seriam exemplos da “onda conservadora” os ataques do Exército Branco contra os revolucionários bolcheviques? Para muitos militantes dessas épocas a resposta seria sim, afinal eram duras reações conservadoras que poderiam sugerir o desejo de retorno a um passado mais seguro. Entretanto, esses e tantos outros momentos críticos da luta de classe eram frutos de seus próprios contextos de disputa, onde felizmente as perspectivas de um novo futuro prevaleceram sobre a vontade de repetição do passado já conhecido.

Ainda pensando sobre Bolsonaro, encontramos um ótimo exemplo sobre os problemas decorrentes da posição de “onda conservadora”. O deputado reacionário cresce em popularidade com um discurso anti-regime, recusando o establishment da partidocracia com uma proposta aparentemente radical de mudança, que é bem compreendida por uma população cada vez mais explorada pelos mecanismos do Estado burguês. É evidente que trata-se de uma falácia, mas na medida que Bolsonaro é o único ator do jogo político a se colocar claramente contra esse regime, ele catalisa boa parte da indignação popular. Enquanto isso, o PSOL é dirigido através do medo da “onda conservadora” e relativiza a corrupção, sinalizando a unidade justamente com aqueles que prometiam dignidade ao povo enquanto governavam para os bancos e empreiteiras, cumprindo uma profecia autorrealizável na qual Bolsonaro cresce devido à falta de outra alternativa cuja responsabilidade de construção seria do próprio PSOL.

Esse fenômeno ocorreu recentemente na eleição norte-americana com a disputa democrata entre Hillary Clinton e Bernie Sanders. Enquanto a candidata do establishment defendia uma face “progressista” do sistema partidário americano, o senador de Vermont combatia a partidocracia daquele país de forma contundente. Como a máquina do Partido Democrata se colocou em prol de Hillary, ela foi escolhida candidata para ser derrotada pelo outsider dos conservadores, eleito por uma população que não confiaria em nenhum dos representantes tradicionais da partidocracia americana. Se fosse Sanders o candidato democrata, a disputa contra Trump seria muito mais complexa, e exemplos desse tipo são comuns.

Outra política é possível

A memória de Junho de 2013 se mantém viva no imaginário popular, ainda que atacada por todos os lados. Se setores da burguesia tiveram reflexos rápidos nas conclusões sobre o que se passava naquele ano, não se pode dizer o mesmo da esquerda combativa. Impactada pelo novo momento que se abria, se dividiu entre aqueles que procuraram refúgio em modelos passados e foram contra o processo e aqueles que tentaram encaixar seus modelos nas multidões e foram combatidos pelas mesmas. O turbilhão de fatos novos complicou as análises de conjuntura, e o posterior avanço dos conservadores perante uma esquerda imobilizada foi visto com certo alívio por quem sofreu na caracterização daquele momento histórico, principalmente aqueles que se incomodavam com as críticas ao PT.

Antes de 2013, os mesmos que hoje defendem a aderência ao petismo diziam que não haveriam processos de massa no Brasil. No debate os sobre movimentos de juventude que ocupavam as praças de todo o mundo em 2011, esse setor criticava os fenômenos como espontaneísmo e previa seu esvaziamento, sem nunca intervir pela construção de alternativas políticas enquanto não houvesse algum sinal de possibilidade institucional. A declaração de que “não existem atalhos na luta de classes” era exemplar desse pensamento incapaz de aceitar o novo, e simboliza até hoje uma concepção etapista da luta de classes como um caminho sólido e pavimentado, totalmente diferente das confusões e das possibilidades típicas de uma guerra.

A força demonstrada pela classe trabalhadora na Greve Geral de 2017 demonstrou que a população apoia a luta e que é possível vencer, pois deixou o governo em uma situação delicada para a aprovação de reformas mais profundas. Na greve, o povo retomou o protagonismo que teve em 2013 e isso foi fator determinante para o enxugamento da Reforma Trabalhista e o cancelamento da Reforma da Previdência, resultados bem abaixo do que o mercado esperava de Temer. Obviamente existem inúmeros ataques em pauta contra os trabalhadores, mas esses ataques geram reações que devem ser levadas em conta no contexto das lutas, refletindo seus diversos sentidos. A “ideia da onda conservadora” aceita somente o sentido defensivo, amarrando novas possibilidade de ação.

Todo processo de avanço carrega consigo novos conflitos em um patamar superior, e a política generalizada do medo que se estabeleceu na esquerda após 2013 a leva a fazer política pelo retrovisor, negando sistematicamene as possibilidades abertas desde então. Justamente por não ser linear, o processo de lutas de classes brasileiro tem idas e vindas nas quais o PSOL tem grande responsabilidade enquanto alternativa política, e corre o risco de perder o patrimônio que acumulou até aqui por causa das vacilações e adaptações de certas organizações que o compõe.

O ano de 2018 dirá bastante sobre as condições futuras do PSOL se postular enquanto direção da luta contra os diversos campos da burguesia brasileira, e o risco dessa incrível ferramenta tornar-se só mais um partido infelizmente é grande. Mas 2013 demonstrou que a luta de classes continua se movimentando e materializando nossas esperanças na construção da tão necessária alternativa independente. Essa disputa ainda está em aberto.


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Revista Movimento nº 48
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