Brasil recebe Fórum Mundial da Água e tenta vender modelo que deu errado

O encontro em Brasília será mais um daqueles encontros em que os chefes de estados firmam compromissos e debatem de olho nos negócios.

Mônica Seixas 15 mar 2018, 14:46

Em 2014, eu vivia em Itu e trabalhava em Jundiaí. Cidades do interior de São Paulo separadas por 30 quilômetros de estrada e um abismo no tocante “abastecimento de água”. Itu não tinha uma gota. Jundiaí tinha bastante.

Lembro-me que tomava bronca das colegas de escritório. Tinha perdido o costume de puxar a descarga depois de fazer xixi. Quem é que em sã consciência desperdiça 10 litros de água limpa com xixi? À época,eu tomava banho de canequinha com no máximo 2 litros – que pegava no escritório. E guardava essa água usada para o banho um próximo banho e só depois de dois usos finalmente a descarga do cocô. O xixi, não. O xixi ficava na privada.

Na rodovia entre as duas cidades circulavam muitos carros adaptados com caixas d’água no porta malas que abasteciam o imenso comércio informal de água e causavam trânsito pelas ruas de Itu. Foi um ano comprando água para tudo: todo o serviço doméstico, banho e cozinhar. E a conta de água continuava chegando, muito embora na torneira não houvesse uma gota.

Bom mesmo foi para os donos de disk água. Enquanto salões de cabeleireiro, padarias, restaurantes, lava jatos e escolas fechavam, quem investiu em disk água ficou rico. O galão dobrou de preço. O litro da água engarrafada custava mais caro que o de gasolina.

E quando a crise passou, a tarifa subiu. Recurso raro é recurso caro! E a oportunidade faz o negócio.

E a minha foi apenas uma das 85 cidades que enfrentaram crises graves de abastecimento de água no estado de São Paulo em 2014 e 2015. Em 2017 foram 872 cidades em estado de emergência por falta de água, 1\4 de todo o país que se oruglha de ter 12% de toda água doce do mundo. Em 2018, O Distrito Federal completa um ano de racionamento, a grande São Paulo entra o ano com uma de suas principais represas, a do Cantareira, com cerca de 50% de sua capacidade, o que para os especialistas não é o suficiente para enfrentar o período de estiagem.

É nesse cenário que o país recebe o 8º Fórum Mundial da Àgua. De 18 a 23 de março, em Brasília – que atravessa a mais severa crise de abastecimento de sua história, cerca de 160 chefes de estado do mundo, e algumas das empresas mais interessadas na mercantilização da água para debater o tema.

O Fórum é mais um daqueles encontros em que os chefes de estados firmam compromissos e debatem “tendências” de “gestão”. Super legal, se não houvesse uma grande narrativa dos governos, do brasileiro inclusive, voltada aos negócios. Yes! Mais do que nunca água is money. E quanto mais inacessível (o que vem acontecendo com a poluição e crescimento da demanda), mais ela se torna uma oportunidade de negócio lucrativo. Lembra do preço do litro de água engarrafada em Itu? É a lei do mercado!

A própria organização do Fórum aponta a tratativa da água como commodity (“produtos” de necessidade primária) já que 75% do local reservado para o Fórum será ocupado pelo espaço EXPO. Segundo informações do próprio site oficial do Fórum; a Expo terá 53 estandes, já reservados por empresas como Nestlé – que vende água engarrafada em plástico, Ambev -também, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Confederação Nacional da Indústria (CNI) que utiliza a maior parte da água no país e Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

Durante o 8º Fórum Mundial da Água, estão previstas atividades e discussões sobre o tema em diversas vertentes, tais como água e energia, economia, alimentos, cidades e ecossistemas, debates entre autoridades governamentais e parlamentares. Mas a sociedade civil não tem a entrada facilitada. Muito menos; protagonismo nos debates. Quem precisa de água, não fala.

O discurso da privatização da água também vem muito forte como solução global para a gestão do que se acostumou a chamar de “recursos hídricos” .

Água não é mercadoria

Daí já nasce o maior desacordo entre a narrativa do Fórum e os interesses das pessoas: chamar a água de recurso (o que se utiliza para obter outra coisa), tratar como negócio e criar um ambiente para que se propagandeie que o melhor é entregar à iniciativa privada que tem como único objetivo lucrar com a venda, não é lá a solução mais necessária para um problema global.

Segundos dados publicados em 2016 na revista Science Advances, 4 bilhões de pessoas vivem com falta de água no mundo. Dois terços da população mundial enfrenta falta de água pelo menos um mês por ano. 500 milhões de pessoas enfrentam escassez o ano todo. Vamos vender água para elas? E ponto?

O estudo mostra ainda que dois fatores são os principais causadores da escassez de água: alta densidade populacional e a presença muito forte da agricultura de irrigação. É isso que explica a escassez na Índia e na China, por exemplo. Vai além de considerar apenas questões de clima ou meteorologia. É hora de parar de considerar a seca como um desastre meramente natural e passar a tratá-las como um fenômeno provocado por humanos. Secas severas em ambientes dominados por humanos, como as vivenciadas nos últimos anos no Brasil, Califórnia,China, Espanha e Austrália não podem ser vistas puramente como desastres naturais.

Itu por exemplo, embora esteja em uma região que não sofreu muito com a estiagem de 2014 (nas cidades do entorno havia água), a cidade vinha de 7 anos de serviço de abastecimento 100% privatizado, sem transparência e participação das pessoas e nem manutenção da rede de abastecimento.

Sendo assim, se a falta de acesso a água é o principal problema humanitário relativo ao tema, é sobre isso que deveria se debruçar o Fórum. Água é um bem comum de primeira necessidade humana e que deve ser compartilhada e bem gerida para se manter utilizável e não se pode esperar isso da iniciativa privada.

A Sabesp, maior empresa de saneamento da América Latina ( e que tem capital misto), é outro exemplo. Segundo o Mapa do Saneamento publicado essa semana pelo Estadão, a empresa é maior poluidora da cidade de São Paulo. O mapa mostra que em alguns bairros a Sabesp faz de conta que está cuidando do esgoto e inclusive cobra por isso, mas, na verdade, só está despejando tudo o que é coletado logo ali na frente sem nenhum tratamento, diretamente dentro de córregos que alimentam os rios e reservatórios da cidade.

Não é interesse e responsabilidade das empresas e dos empresários um planejamento global sobre a distribuição e acesso a água. Quando privatizada, a água é o recurso a ser vendido por uma operação de custo mais baixo possível e com o valor de venda mais alto que se puder, como em qualquer negócio. E isso inclui: cortar os custos com tratamento de esgoto se possível.

Por isso, a privatização do serviço de abastecimento e de tratamento de esgoto no mundo vem se mostrando insustentável. Nos últimos quinze anos, mais de 267 cidades do mundo remunicipalizaram seus serviços de tratamento e abastecimento de água. Entre elas, Paris, Buenos Aires, Berlim e Itu.

Por que reestatizar? Porque ÁGUA faz parte dos direitos básicos humanos, por uma questão de controle e de transparência. Porque abastecer todo ser humano com água potável é uma meta acima de qualquer lucro. Porque empresas privadas não investem na solução de vazamentos como deveriam (pois isso impacta o lucro), em estações de tratamento de esgoto, porque empresas privadas não estão comprometidas com a universalização do saneamento (porque isso pede investimento), porque têm tarifas mais caras de operação, porque não apresentam estudos consistentes sobre os riscos de falta de água, relação e projeções de oferta e demanda e planejamento de longo prazo. As prefeituras, o estado e os cidadãos devem ter acesso e controle da água que precisam para viver e prosperar.

Fórum Alternativo Mundial da Água*

Mas nem tudo são más notícias. Por questionar a legitimidade do Fórum Mundial da Água como espaço político para promoção e discussão sobre os problemas relacionados ao tema em escala global e sobretudo pela ausência da participação da sociedade civil, nasceu o Fórum Alternativo Mundial da Àgua. O FAMA 2018 – acontecerá entre os dias 17 e 22 de março também em Brasília – DF. Nos dias 17, 18 e 19 as atividades acontecerão na UnB – Universidade de Brasília – e entre os dias 20 e 22 serão realizadas atividades descentralizadas.

É um evento internacional, democrático e que pretende reunir mundialmente organizações e movimentos sociais que lutam em defesa da água como direito elementar à vida.

Este Fórum pretende unificar a luta contra a tentativa das grandes corporações em transformar a água em uma mercadoria, privatizando as reservas e fontes naturais de água. tentando transformar este direito em um recurso inalcançável para muitas populações, que, com isso, sofrem exclusão social, pobreza e se vêm envolvidas em conflitos e guerras de todo o tipo.

O 8º Fórum Mundial da Água é ilegítimo. É uma feira de negócios que visa promover um mercado que dá acesso às multinacionais do setor de água e do saneamento. A portas fechadas, este evento permite que as grandes empresas tenham acesso privilegiado às decisões dos governos e bloqueiam, a base de corruptelas e subornos, o avanço de políticas públicas globais que resolvam a crise de acesso à água.

Para os organizadores do “Fórum Alternativo – FAMA2018”, as políticas públicas de água devem ser debatidas democraticamente com as populações e, em particular, com as comunidades afetadas.

No FAMA 2018 serão debatidos os temas centrais de defesa pública e controle social das fontes de água, o acesso democrático à água, a luta contra as privatizações dos mananciais, as barragens e em defesa dos povos atingidos, serviços públicos de água e saneamento e as políticas públicas necessárias para o controle social do uso da água e preservação ambiental, que garanta o ciclo natural da água em todo o planeta.


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