Outubro: Uma odisseia extraordinária

Outubro: História da Revolução Russa de China Miéville é um brilhante registro dos acontecimentos que se sucederam na Rússia de 1917.

Israel Dutra 19 mar 2018, 16:55

Em 2017, no centenário da Revolução Russa, não foram poucos os que quiseram atribuir aos insurretos de 1917 a pecha de “golpistas” e outorga-lhes a responsabilidade sobre o regime despótico da URSS depois de Stalin. Buscando desativar o potencial explosivo da memória, Putin desfigurou as comemorações oficiais, proibindo cortejos alusivos à tomada do Palácio de Inverno. Também um setor da burguesia em seus editorais se utilizou de uma dupla tática: ora fazia vistas grossas ao tamanho do acontecimento, ora inventava versões que alimentavam a ignorância como a Rede Globo, o Fantástico e a Folha de São Paulo no auge do centenário de outubro. Neste cenário de combate acirrado, algumas publicações visaram polarizar a data. Dentro da esquerda revolucionária brasileira, é conhecido o nosso esforço editorial, ao lado da Esquerda Marxista, para publicar uma versão em português do livro Stalin de Leon Trotsky. Além disso, os companheiros do MAIS reeditaram o ensaio biográfico do criador do Exército Vermelho, Minha Vida (1929).

Em âmbito global, um brilhante registro veio à luz: Outubro- História da Revolução Russa de China Miéville. Originalmente editado pela Verso Books e publicado no Brasil pela Boitempo Editoral com 324 páginas, alcançou uma repercussão desagradável para os detratores da revolução. As qualidades de Outubro são tão inegáveis que a obra não pôde ser retirada da lista dos melhores de 2017 da insuspeita Revista Forbes. A narrativa nos coloca diante dos olhares simultâneos de um escritor, de um militante e de um artista. Formado em Antropologia Social, o autor se destaca como uma referência da New Weird. Seus textos ficcionais, bem como seu trabalho na revista Salvage, invariavelmente têm recebido uma série de honrarias literárias no universo anglofalante. Ademais, Miéville também se notabiliza por ser um engajado ativista que não renega a bandeira do socialismo.

Para além dos atributos políticos, históricos e literários, há algo de fantástico em seu livro que nos leva longe. Recordo de assistir à reprise de uma série no final do século passado. O começo tinha mais ou menos o seguinte enunciado: “Espaço: a fronteira final. Estas são as viagens da nave estelar Enterprise. Em sua missão de cinco anos… para explorar novos mundos… para pesquisar novas vidas… novas civilizações… audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve.”

Talvez apenas a ficção de Jornada nas Estrelas possa reconstruir o alcance de uma das maiores utopias que determinaram as cabeças e os corações do século XX. Os homens e mulheres de 1917 também buscaram uma “fronteira final” da sociedade de classes e se atreveram a embarcar numa missão que jamais outros haviam conseguido. Essa história, da busca de uma utopia superior, moral e historicamente, em meio ao desespero de uma Rússia marcada pela Grande Guerra é a história do ano de 1917 e de sua revolução, que Miéville nos conta com rara habilidade.

Mas Outubro de Miéville também se faz digno de um paralelo com o Dez dias que abalaram o Mundo de John Reed, a obra que mais disseminou para o mundo os impactos da Revolução Russa. Publicado em 1919, o relato jornalístico de Reed teve um caráter visionário, alternando uma narrativa histórica com uma ênfase bastante moderna para a época. Nos cem anos que nos distanciam dos eventos de Petrogrado, gerações e gerações conheceram como se moveu o turbilhão revolucionário a partir da pena aguda de Reed. Guardando as devidas comparações- e nisso China Miéville é justo porque não coloca notas de rodapé e sim uma rica bibliografia indicativa com lugar de destaque para Reed-, os dois escritos primam por uma beleza inquietante na reconstituição do acontecimento outubrino. Apesar de separados no tempo, no estilo e na estatura, podemos tranquilamente colocá-los na mesma estante.

O Universal e o particular na revolução que mudou o mundo

Já na epígrafe de Outubro, somos remetidos à ideia de busca por algo ainda impossível ou não existente. Uma série de reticências parecem pouco dizer, mas são uma citação de “O que fazer” – não do imortal “Que fazer” (1902) de Lenin, mas do seu ancestral de 1862, o romance escrito por Nikolai Tchernyshevsky, que muito apetecia o líder bolchevique. A Rússia, escolhida como um ponto de atraso e ao mesmo tempo altamente desenvolvido, transitaria de um calendário a outro, de um mundo a outro, em poucos meses. E China Miéville faz a escolha – também aqui como Reed – em conectar-se com a história a partir de Fevereiro a Outubro, com as marcações do calendário juliano. A partir de uma breve introdução sobre os elementos pré-1917, sua real história começa com o acidentado fevereiro que seria também o último mês em que um Romanov reinou soberano sobre o decadente império russo.

A tirania dos Romanov encontrou na guerra a decadência e seu último suspiro. O autor apresenta os elementos anteriores à 1917 como chave de decifração sem perder-se em descrições por demais prolixas. O livro existe e atua apenas na gravidade dos acontecimentos de 1917. E seu vínculo com o passado é justamente na perda de legitimidade do Czar, seu clã, e sua fortaleza militar. O ensaio geral de 1905 preparou condições para forjar correntes políticas- que depois de anos de luta subterrânea- vieram à luz no momento de falência do antigo regime. Essa “brecha” pode ser profetizada no escândalo da morte do personagem mais importante do círculo dos Romanov, Rasputin, o bruxo e conselheiro, confidente da Czarina, que tem na cena de sua morte, tão bem pintada no livro de Outubro, a alegoria do final do antigo regime e da irrupção de um novo tempo: começava 1917.

Na noite de 25 para 26 do maior de todos os Outubros da história – embora posteriormente a mudança de calendário, transformá-lo-ia em Novembro -, toda tensão se concentrava ao redor do Instituto Smolni, nas cercanias da avenida Nievski. Esta apreensão só seria interrompida pela irrupção de um novo tempo histórico. Quase como uma coincidência, o encouraçado Aurora anunciava essa nova era. Algumas horas mais tarde, Antonov-Ovesnko renderia os ministros do governo provisório, consagrando o momento determinado de uma noite longa como um dos mais paradigmáticos da história da humanidade.

China Miéville também vai buscar sentido dessa amálgama única do acontecimento Outubro. Entre o geral e o particular, seu estudo nos fornece um mapa detalhado das condições históricas e políticas da Rússia e de sua localização na Europa. Acerta bastante ao utilizar como ponto de partida a contradição entre o enorme atraso do conjunto do Império Russo e a veloz penetração do capital estrangeiro, capaz de forjar contingentes fabris que moldaram um proletariado jovem, concentrado, ativo e combativo. Quando trata do que chama de “russianidade”, Miéville aborda o romantismo literário, presente nas figuras e nos personagens da fértil literatura russa. De igual maneira, trata da argila política que forjaria os principais atores em pugna de 1917, conferindo um peso necessário para a vertente do radicalismo romântico nos “Narodniks”, importantes tanto na consolidação do Partido SR quando na influência sobre a corrente marxista que desembocaria no Bolchevismo.

Os traços essenciais dos protagonistas da revolução, aliás, só podem ser explicados com a compreensão das profundezas das condições (implacáveis) de luta política no solo russo. E China Miéville mais uma vez é bem-sucedido. A descrição dos semblantes dos revolucionários e dos personagens envolvidos é um dos pontos fortes do livro. Nas “leituras recomendadas”, ao final do livro, Miéville cita a obra de Lunachartski, “Sillhuetas revolucionárias”, como uma fonte certeira para aproximar-se dos homens e mulheres que fizeram Outubro. Os líderes do partido bolchevique merecem atenção especial. Seu trato, seu rito, sua gramática. Trotsky e sua pequena organização, “Mejraiontsi”, outrora traduzida ao português como “Interdistrital”, para a revolução por sua capacidade de leitura da realidade e presença nos sovietes, integrada ao Partido Bolchevique no decorrer dos eventos; os “gêmeos celestiais”, Kamenev e Zinoviev, sempre hesitantes, confusos, mas também necessários e incorporados ao eixo de direção partidária, mesmo depois de furiosas lutas políticas; e o “gênio” de Lenin, apoiado na ala esquerda bolchevique, com seus bons parceiros como Kollontai e o revolucionário profissional Latsis, sendo a estrela brilhante da constelação de líderes e conspiradores dessa História. Miéville mostra o quanto Lenin tinha plasticidade para mudar de posição e se mover com firmeza e tenacidade na areia movediça de uma situação política bastante imprevisível. O Lenin de “Outubro” é por si só motivo de interesse para a leitura. Um Lenin sem medo de ficar em ampla minoria no seu próprio ninho, disposto a combater a morte por suas ideias, com uma antena voraz para conhecer a fundo a realidade em suas mínimas mudanças e máximas contradições. Uma inteligência rara a serviço da mudança da própria realidade concreta.

Por outro lado, China Miéville consegue tracejar com acuidade a entrada em cena das massas que subverte a antiga organização da sociedade. Em meio ao caos, à guerra, à fome e à violência urbana, reaparece uma forma organizativa inovadora: os conselhos de operários e soldados, de nome “soviete”. Presente nas jornadas de 1905, a memória da geração de 1917 ainda conserva a esperança de um embrião para um novo regime voltado para a maioria. E o ambiente propício para tal. Durante todos os capítulos de “Outubro”, palavras como “assembleia”, “Conselhos”, “reunião”, “Congressos”, se multiplicam, se chocam, se entrelaçam. Apesar do esgotamento das forças sociais, tensionadas e massacradas pela guerra e seus efeitos, o viço da participação popular marca um caminho por toda grande Rússia. São centenas de eventos, sovietes, debates entre forças políticas, discussões sobre o rumo da sociedade e do governo. A forma superior de organização, consagrada pela história como efetivamente democrática, dos Sovietes, só foi possível pela vontade de mudança e consciência de amplas massas populares, que, de forma não linear, por vezes acidentada, buscava criar um mecanismo mais universal de tomada das decisões públicas.

A presença das mulheres como protagonistas de todo o processo revolucionário é notável. Tanto no que diz respeitos aos levantes de massas quanto às líderes políticas. Nos dias 22 e 23 de fevereiro, a irrupção que terminaria com o governo do Czar, conhecida como a “Revolução de fevereiro”, tem seu ponto de partida protestos multitudinários de mulheres – o que vai ao encontro da data alusiva ao dia internacional das mulheres no 8 de março. Revolucionárias como Kollontai, Krupskaya e mesmo a líder da esquerda SR, Maria Spiridinova são mulheres de uma força e capacidade à altura do desafio histórico em questão. São centenas e centenas de quadros dirigentes mulheres envolvidas na maré da revolução.

A cidade como teatro de operações da insurreição

Mestre do “surrealismo urbano” (a Boitempo traduziu em 2014 sua A cidade e a Cidade), China Miéville permanece coerente a seu estilo ao iluminar o ambiente citadino como ponto fulcral da revolução. Persegue, com arte e objetividade, a relevância da cidade na construção do processo político revolucionário de Outubro. É na cidade que se disputam os futuros inclusive das trincheiras e dos campos. Embora a Rússia de então fosse um país onde a esmagadora maioria da população vivia em circunscrições rurais, a Revolução Russa é uma revolução urbana e popular. A derrubada do Czar e as pulsões que vão dominar a cena política durante o período do governo provisório [de fevereiro a outubro] são urbanas. Cada rua, sede política, ponte, fábrica, instituto, escola, entre tantos elementos da vida contemporânea na cidade, é um território de disputa.

Fiel à centralidade do urbano, China Miéville nos fornece, na abertura do livro, dois mapas. Um da Rússia europeia em 1917 e um segundo, detalhado e completo, da área central de Petrogrado. Ali, se pode conferir, visualmente, o território dos combates políticos. As “barricadas”; os encontros no Instituto Smolni, as pontes que levavam ao centro do poder. O Rio Neva que cortava Petrogrado. O Palácio de Inverno. A famosa Estação Finlândia, terreno das viragens políticas de Lenin. E a potência operária do distrito de Vyborg.

Chama atenção, contudo, que Miéville não cai na armadilha de uma descrição exaustiva de toda a Rússia, escolhendo Petrogado como seu foco. Esse acerto narrativo poupa o leitor de uma abrangência indeterminada, abrindo o caminho para uma exegese da própria alma de Petrogrado. Janela pra Europa, cidade de Pedro, síntese da própria Rússia. Assim São Petesburgo viraria Petrogrado em 1914, uma cidade de história e histórias. Histórias que se aceleram entre janeiro e outubro: as fases, altos e baixos de um verdadeiro processo revolucionário. Cada mês ganha um predicado. Fevereiro são as lágrimas de alegria da queda do Czar; Março, Abril e Maio marcados pela constante tensão entre negociação e ruptura, poder oficial do governo provisório e capacidade deliberativa dos Sovietes; e assim por diante, contemplando as Jornadas de Julho, a intentona de Kornilov, até nos deparamos com o “zênite” de Outubro.

Há lugar para humor mesmo nos momentos decisivos. Não poderia deixar de ser notado, o fato de que não havia munição no Encouraçado Aurora; de que não foi encontrada uma lanterna para assinalar o momento exato da tomada do poder; detalhes pitorescos dos insurretos e dos próprios derrotados – como as autoridades da prefeitura que tiveram de retornar com pães e frios depois de serem interceptados por alguns marinheiros, fracassando a tentativa de um comitê de salvação para evitar a queda do governo provisório.

A revolução que nos aguarda

Tudo isso contado com rigor histórico, prende e apaixona o leitor. Ao final, China usa a metáfora dos trens. “A revolução de 1917 é a revolução dos trens. História que avança chiando no metal frio. O palácio sobre rodas[…] o vagão blindado e sem nacionalidade de Lenin; o expresso da sinuosa abdicação de Gutchkov e Chulguin; os trens ziguezaguantes da Rússia, cheio de desertores desesperados[…]”. Os trens, de todo lado, usados para conectar a história. Como um tempo que se acelera. Como a própria “locomotiva da história”, no jargão marxista tradicional.

Eis a maior virtude de China Miéville. Ele não busca distanciamento da história contada. Busca aproximação. Quer ser um propagandista da ideia de revolução. E, ao mesmo tempo, não faz de forma inverídica. Atua porque tem a prática histórica como critério de verdade. Problematiza sobre o pós 1917 sem cair num pessimismo, nem na armadilha cética. Por isso mais que nada é um militante da defesa do legado da Revolução. De Lenin e Trotsky.

E sua narrativa ganha força porque busca formas de linguagem contemporânea. Atualiza no terreno da disputa da linguagem a própria disputa política. A geração de China apresenta a revolução para geração “millennial”, que vive conectada ao celular e acostumada com a temporalidade dos roteiros das séries de Netflix.

A revolução no século XXI nos aguarda como parte da própria locomotiva da história. Aprender com os erros e acertos daquele que promoveram a primeira investida vitoriosa rumo a fronteira de uma sociedade mais justa e avançada é um dever, mas também um direito das novas gerações. China Miéville nos convida a ser parte de novas e quiçá mais desafiadoras odisseias humanas.

Este artigo faz parte da edição n. 7-8 da Revista Movimento. Para ler este e os demais textos desta edição compre a revista aqui!


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