A falência da Nova República e a construção de uma alternativa para o Brasil
Elaboração sobre a situação nacional apresentada à VI Conferência Nacional do MES (29/03 a 01/04/18).
A falência da Nova República e a construção de uma alternativa anticapitalista e antirregime para o Brasil
Há quase 5 anos, uma crise profunda desenvolve-se no Brasil sem expectativa de resolução no horizonte. Trata-se de uma crise complexa, econômica e social, que engolfou o regime político, instituições e os principais partidos que o sustentam. As manifestações de descontrole na superestrutura, por sua vez, são acompanhadas de uma crise do modelo de desenvolvimento do capitalismo periférico brasileiro. Desindustrialização, maior dependência de financiamento externo e desnacionalização de setores-chave da economia nacional expressam uma mudança na localização da economia brasileira na divisão internacional do trabalho.
O enquadramento de nossos desafios e a elaboração de nossa estratégia devem levar em conta os vários aspectos da crise brasileira, sua relação com o movimento global do capitalismo internacional e as lutas de resistência em curso, atualmente contra o governo Temer, amanhã contra o novo governo que venha a surgir das eleições deste ano. Devemos igualmente estar atentos para as brechas na situação, as possibilidades de ações mais ofensivas do movimento de massas – determinantes para a construção de uma alternativa socialista, cuja necessidade é cada vez maior diante da contrarrevolução econômica.
De ponto de vista desta construção é preciso levar em conta que o PT completou seu ciclo como força hegemônica da classe trabalhadora brasileira cometendo uma das maiores traições de classe da história da esquerda mundial. O lulismo foi incorporado ao andar de cima, seja do ponto de vista da política de conciliação de classes que defende; do método com que atua – absorvendo as lideranças sindicais e populares ao aparato estatal e barganhando no Congresso com a politicalha tradicional; como também ao levar em conta o modo de vida de seus dirigentes, que enriqueceram com consultorias e negociatas legais e ilegais. Como discretamente recomendou Mujica a Lula em sua recente visita à fronteira sul do Brasil, os governantes devem “viver como os trabalhadores, pois do contrário nos confundimos”.
E foi esta “confusão” que permitiu ao PT estar alegremente participando do condomínio de poder da burguesia, atuando em prol do regime politico e do sistema econômico de forma decisiva para manter a exploração de classe e a farsa democrática que este modelo carrega de forma intrínseca. Mas a crise econômica colocou novas necessidades de ataques aos direitos do povo que Dilma não tinha força para levar adiante. Esta necessidade da classe dominante foi também uma das bases para o golpe parlamentar desferido em abril de 2016 que colocou na linha de frente do comando do governo o PMDB.
A eleição presidencial de 2018 muito provavelmente ocorrerá sem Lula na disputa (e ainda há a possibilidade de que esteja preso), o que dará à eleição um caráter de farsa democrática muito evidente. Caracterizar o aspecto antidemocrático da eleição ao retirar de modo forçado da disputa o candidato que tem hoje o primeiro lugar nas intenções de voto deve vir acompanhado, do ponto de vista de uma posição verdadeira e revolucionária, da caracterização de que os processos eleitorais anteriores também foram momentos de manipulação de massas. Foi assim nas eleições de 2014, nas quais as duas candidaturas que passaram ao segundo turno foram alimentadas pelos recursos da corrupção, numa disputa em que a desigualdade do tempo de televisão era apenas um aspecto a mais, entre muitos, da natureza antidemocrática do pleito. Esta foi a eleição que tentou vender a normalidade democrática do país diante da ruptura revolucionária de junho de 2013.
As promessas de Dilma antes e seu estelionato depois das eleições de 2014, outra marca do processo, são parte da explicação de por que a reação ao impeachment foi tão fraca. A legitimidade do governo se esvaiu, razão pela qual, embora tenhamos sido contra o impeachment – cujo rito levaria Temer ao governo –, defendemos a necessidade de novas eleições. Foi pela decepção com o PT que também a direita mais reacionária cresceu neste processo, ganhando base de massas. O golpe se materializou na retirada forçada do PT do condomínio de poder que sustentava a farsa democrática eleitoral. A provável prisão de Lula será o último ato deste golpe.
A experiência das massas com a direção lulista foi retardada pelo impeachment de Dilma. Vamos desenvolver este tema mais adiante, mas é preciso afirmar de pronto que este é um processo irreversível e que o PSOL precisa disputar a direção da esquerda brasileira. Para isso, a dialética entre independência e unidade/enfrentamento com o PT é o fio da navalha no qual precisamos caminhar. Isto significa rejeitarmos frontalmente a ideia de que o PSOL possa se reivindicar o herdeiro do lulismo, como Boulos de modo mais ou menos consciente reivindica, e ao mesmo tempo nos coloca o dever de lutar pela direção de um processo novo e amplo de recomposição da esquerda, que tende a ter a participação de setores que se reivindicam de esquerda e, muito por conta do impeachment, não se desprenderam totalmente do PT, como é o caso do próprio Boulos, do MTST, de setores juvenis e intelectuais. Também teremos que dialogar com movimentos como o MST, que está muito mais fraco do que nos anos 90, mas ainda tem uma base social que entra em luta em momentos importantes.
Disputar a direção deste novo “bloco histórico” que precisa ser firmado para enfrentar a direita fascista e os “democratas” neoliberais é o grande desafio do MES e do PSOL. Na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e na Câmara Municipal de Porto Alegre, temos dois ótimos exemplos desta independência com unidade e de unidade com enfrentamento. Na primeira, temos apenas um deputado e o PT tem onze, mas é Pedro Ruas quem se destaca como líder da oposição a Sartori, com os petistas a respaldá-lo. Na segunda, o PSOL tem 3 vereadores e o PT tem 4, mas nossa vereadora Fernanda Melchionna foi a líder da oposição a Marchezan em 2017 e nossos vereadores destacam-se como os principais porta-vozes da luta contra o desmonte promovido pelo PSDB. Em ambos os casos, independentemente do tamanho das bancadas, na dialética de independência e unidade, o PSOL aparece com um projeto próprio, não abre mão de sua avaliação do lulismo, e se postula como polo de direção na unidade oposicionista aos governos neoliberais.
Neste marco, valorizamos a aliança do PSOL com o MTST e com os indígenas, condensada na chapa Boulos/Guajajara. Sabemos que nossas posições são diferentes e em pontos fundamentais temos enfrentamentos, mas sabemos também que estes setores postulam-se para construir uma esquerda pós-Lula. Como será esta nova esquerda, que posições adotará, a quais conclusões chegará da experiência petista, dos governos, da estratégia e do programa lulista? Tudo isto é um debate em curso. A posição assumida pelo MES neste processo de debate da chapa presidencial nos credencia a manter o diálogo com estes setores e, ao mesmo tempo, nos dá autoridade para disputar, em conjunto com nossos aliados no PSOL e fora dele, os rumos desta nova esquerda e até mesmo desta aliança, talvez não tanto nas eleições, mas em seu desenvolvimento seguinte.
A trágica morte de Marielle Franco abre um novo momento e evidencia a polarização cada vez maior na sociedade, colocando para o PSOL o desafio da construção de uma nova esquerda com outro nível de responsabilidade. A direita cresce e se fortalece no vácuo e na decepção deixados pela traição do PT. Em política, espaços não ficam vazios. A esquerda consequente precisa dialogar com o povo, organizando a luta e defendendo suas necessidades, separando-se claramente da “partidocracia” e do modo corrupto de governar, para assim se fortalecer e ocupar este espaço deixado pelo PT. Lutar para que outras e outros dos nossos não tombem pelas armas da reação, como tombou Marielle, significa lutar para nos fortalecer no movimento de massas e para impulsionar este terceiro campo da esquerda brasileira.
Este documento pretende oferecer alguns elementos de análise da situação nacional e, em particular, aprofundar a reflexão sobre três grandes tendências: a contrarrevolução econômica do capital, o descontentamento popular e a ausência de uma alternativa. Estas tendências são de longo prazo, anteriores ao momento em que vivemos, e tampouco serão resolvidas com as eleições de 2018.
Marielle Franco como símbolo, personificação e síntese das contradições agudas da situação brasileira
Na noite de 14 de março, um crime bárbaro comoveu o Brasil. Nossa companheira Marielle Franco, vereadora do PSOL-RJ, e o motorista Anderson Gomes foram cruelmente executados. Nascida na favela da Maré, mulher negra e LGBT, Marielle lutava em defesa dos Direitos Humanos e no combate à violência policial e à ação das milícias. Como assessora de Marcelo Freixo, participou das investigações realizadas por seu mandato na CPI das Milícias. Como vereadora, ela seguia este combate.
Pode-se dizer que, de algum modo, a execução de Marielle é uma síntese da situação brasileira porque aí se revelam vários elementos de decomposição e descontrole do aparato estatal, como mais um sintoma da falência do regime da Nova República. Esta é uma realidade em todo o país, mas no Rio de Janeiro a situação é ainda mais dramática pelo controle exercido sobre bairros do Rio e da Baixada Fluminense pelo tráfico e, especialmente, pelas milícias. Estas dominam uma área em que vivem 2 milhões de pessoas, segundo dados das próprias instituições de segurança. São 202 áreas, incluindo 37 bairros inteiros, sobre os quais milicianos exercem sua autoridade, cobrando por segurança, serviços de transporte, comunicação e gás, além de outras atividades econômicas.
As milícias surgiram a partir de fins dos anos 90 e início dos anos 2000 pela ação de policiais e bombeiros na Zona Oeste do Rio, oriundos de antigos grupos de extermínio das polícias. Nos anos seguintes, as milícias expandiram-se, tomando áreas do tráfico e assumindo parte de seus negócios. As milícias revelam a infiltração das forças de segurança pelo crime organizado. Mais do que infiltração, talvez se possa falar já de uma simbiose, em que traficantes, policiais e milicianos estabelecem alianças e conflitos em busca de negócios lucrativos, submetendo à violência e ao silêncio comunidades inteiras. A revelação de que as balas que vitimaram Marielle e Anderson têm origem num lote comprado pela Polícia Federal, do qual já haviam sido desviadas balas utilizadas na chacina de Osasco em 2015, comprova esta simbiose e os riscos que ela traz.
O crime organizado e as milícias também se infiltraram em Câmaras de Vereadores e Assembleias Legislativas, como o trabalho de Freixo na CPI já havia revelado, em tribunais e provavelmente em esferas superiores da administração e da Justiça brasileiras. A execução de Marielle em pleno centro do Rio talvez revele que estes grupos deram um passo adiante, aumentando o risco de “mexicanização” da política brasileira. Seria um elemento ainda mais regressivo no cenário de podridão das instituições do regime, em que polícias, tráfico de drogas, crime organizado, partidos e políticos confundem-se e assassinatos políticos convertem-se em normalidade. No caso brasileiro, este passo mostraria as consequências nefastas da manutenção da estrutura das Polícias Militares e da ausência de investigação e punição para os torturadores e assassinos da ditadura na transição para a Nova República. O modus operandi assassino desenvolvido no interior do aparato estatal repressivo durante a ditadura segue operando, agora expandido em suas relações com o crime organizado.
A execução de Marielle e Anderson, por outro lado, gerou uma onda de solidariedade, indignação e luta em todo o país. Repetindo cenas só vistas em 2013, manifestações espontâneas pipocaram pelas cidades brasileiras, reunindo dezenas de milhares. Nas mais expressivas, no Rio e em São Paulo, mais de 50 mil pessoas em cada uma das marchas expressavam sua tristeza ao mesmo tempo em que prometiam defender o legado de Marielle e sua luta em defesa das vidas de mulheres e jovens negros das periferias brasileiras contra a violência policial, do crime organizado e das milícias.
A imprensa, de forma praticamente unânime, refletiu a comoção social, noticiando a execução e as mobilizações. Independentemente do modo como as empresas de comunicação procuram interpretar e canalizar a indignação para seus propósitos, é evidente que, como expressa particularmente a cobertura da Globo, há uma parte da burguesia preocupada com a perda de controle das instituições e com a lumpenização da política e de frações da burguesia. Nas redes sociais, por sua vez, o assassinato de Marielle e Anderson foi o tema mais comentado da história brasileira, superando as manifestações de 2013 e a crise do impeachment. Como reação a esta onda de indignação e solidariedade, a extrema direita ativou suas usinas de notícias falsas e calúnias, o que só reafirma o símbolo que se tornou Marielle e a importância que sua luta ganhou.
As manifestações nas ruas também se direcionaram contra Temer, seu governo corrupto e o “golpe de mestre”, em suas próprias palavras, da intervenção federal encomendada para as Forças Armadas. A execução mostra a incapacidade deste governo para resolver a crise da segurança no Rio ou qualquer dos problemas do país. Muito pelo contrário, o PMDB de Temer é parte fundamental da crise no Rio, já que sob seus governos corruptos as milícias floresceram descontroladamente.
Ao mesmo tempo, a execução de Marielle revelou de maneira trágica, ao torná-la um símbolo das lutas democráticas e dos direitos humanos, que o PSOL – em particular no Rio de Janeiro, mas em todo o país – é um polo político visado, que atua sobre as contradições mais agudas da situação nacional e que deve preparar-se para uma nova etapa de enfrentamentos, em que nossas responsabilidades aumentam proporcionalmente aos riscos e à audiência que alcançamos. Lutar para estar à altura de tudo isto é a melhor homenagem que podemos fazer a nossa companheira Marielle. Para isto, será necessário também aprofundar nossa elaboração programática, dando mais centralidade em nossa agitação à luta pela legalização das drogas como forma de atacar as bases materiais do crime organizado.
A Nova República agoniza
Ao final da ditadura militar, a Nova República foi o arranjo político pelo qual foi possível, com as garantias da Lei da Anistia, inaugurar uma forma de dominação política em que iriam conviver a antiga oposição e os trânsfugas da ditadura; um novo regime “democrático” no qual nenhum dos torturadores e assassinos da ditadura foi levado a julgamento e instituições como as Forças Armadas e as Polícias Militares seguiram operando de acordo com os manuais formulados sob inspiração da guerra interna contra o povo brasileiro. Um regime que se assentaria nas articulações políticas do Congresso, na instituição presidencial e no Judiciário, sempre com as Forças Armadas e de repressão como garantia de última instância, como ocorre sempre no Estado burguês.
A articulação destes agentes políticos começou comandada pelo PMDB e logo foi condensada na competição eleitoral entre dois polos, liderados pelo PSDB e pelo PT – que organizaram parte das direções da luta pela redemocratização – ao redor dos quais se orientavam partidos como o PMDB e PFL/DEM, máquinas eleitorais a serviço das velhas oligarquias, e demais partidos fisiológicos. Tal unidade foi cimentada pelo milionário financiamento de campanhas pela burguesia e pela pilhagem do Estado por meio do loteamento de cargos públicos para controlar licitações, contratos públicos e direcionamento de verbas.
O PT, de expressão crítica e radicalizada do ascenso operário e popular de fins dos 70 e dos 80, integrou-se completamente ao regime nos anos 90, com suas prefeituras e parlamentares. Logo, seus dirigentes se encrustariam na máquina estatal e no comando de grandes corporações capitalistas por meio dos fundos de pensão, num processo de transformação de antigos dirigentes sindicais numa espécie “nova classe” de administradores de capitais, descrito por Chico de Oliveira ainda no início dos anos 2000. A mudança programática do PT e sua adesão aos métodos corruptos de governo da burguesia brasileira revelaram-se plenamente com a vitória de 2002 e com os governos de Lula e Dilma. Foi um salto de qualidade: o PT tornou-se um agente da burguesia brasileira e se orgulhou, em seus governos pró-capital, de fazer os lucros da burguesia crescerem como “nunca antes na história do país”.
A funcionalidade da Nova República era, portanto, garantida por uma competição eleitoral limitada, sob controle dos interesses empresariais e de uma lei eleitoral que sempre limitou o crescimento de uma alternativa antirregime. Ao mesmo tempo, o PT cumpria o papel fundamental de canalizar o conflito social para o terreno institucional, limitando o horizonte estratégico da luta de classes no Brasil. Esta foi a via pela qual a fração financeira da burguesia brasileira, associada a seus congêneres estrangeiros, garantiu a estabilidade política necessária para executar seu programa neoliberal de desregulamentação da economia brasileira, privatização de empresas estatais estratégicas e subordinação do Estado à acumulação financeira por meio dos mecanismos da dívida pública e do arranjo macroeconômico do tripé: eis a “modernização” brasileira, a política econômica que igualou tucanos e petistas em seus governos.
No século XXI, como se discutirá a seguir, a modificação do eixo dinâmico da acumulação capitalista para o Pacífico e o espraiamento de cadeias de produção e de valor mundialmente alteraram a localização do Brasil na divisão internacional do trabalho e a forma de inserção subordinada do país à globalização neoliberal. Com a alta demanda de matérias-primas na China e em outros países asiáticos, aqueceu-se a economia brasileira e, em particular, o segundo governo de Lula lidou com taxas de crescimento favoráveis e aumento no orçamento. Era o “superciclo de commodities”, durante o qual a pauta de exportações brasileiras concentrou-se ainda mais em matérias-primas e produtos de baixo valor agregado. Os três principais produtos de exportação brasileiros – minério de ferro, soja e carnes – tiveram aumentos expressivos de valor em meados da década de 2000. A soja, por exemplo, mais que triplicou de valor de 2003 a 2012 (para, posteriormente, a partir de 2013-2014, ter uma queda acentuada no mercado mundial). Com o minério de ferro, como se mostrará a seguir, ocorreu o mesmo. Esta variação respondia à alta demanda chinesa, seguida por forte recuo dos preços com a mudança de orientação econômica da China, a partir de 2012, menos voltada à construção da infraestrutura do país e mais voltada à ampliação do mercado interno e ao desenvolvimento de tecnologia e inovação como forma de assegurar as altas taxas de crescimento do país asiático.
Os governos de Lula e Dilma, decididos a estimular a acumulação capitalista brasileira na globalização neoliberal, escolheram estimular setores nos quais a economia nacional poderia competir por suas “vantagens comparativas”. O Tesouro Nacional injetou centenas de bilhões de reais no BNDES para que o banco de fomento, com juros subsidiados, estimulasse fusões e aquisições de empresas brasileiras, além de sua internacionalização, especialmente para América Latina e África (numa política defendida pelos diplomatas ligados ao governo e promovida por Lula em suas palestras após a presidência como exemplo de relações “Sul-Sul”).
Foram criadas, desse modo, as empresas “campeãs nacionais” e logo “campeãs mundiais”. Por meio desta injeção de recursos públicos, o grupo JBS, então um frigorífico local goiano, tornou-se a maior produtora e indústria de carne brasileira e, em pouquíssimo tempo, adquiriu operações no exterior, em particular nos EUA, para se converter em empresa líder no processamento de proteínas em todo o mundo, além de holding multimarcas atuante do processamento de celulose e fibras vegetais à indústria química. Sua concorrente principal, a BRF, também foi criada com financiamento público, a partir da fusão da Sadia (controlada pela família de Luiz Fernando Furlan, ministro da Indústria, Comércio e Desenvolvimento no governo Lula) e Perdigão, então líderes e principais concorrentes da indústria de alimentos brasileira.
Há diversos outros exemplos: a Odebrecht expandiu suas operações e as linhas de financiamento à exportação de serviços do BNDES possibilitaram que a empresa ganhasse contratos ao redor do mundo; a Vale ampliou suas operações nacionais, duplicou a Estrada de Ferro Carajás e criou um novo e gigante complexo de minério de ferro na região de Carajás (Pará), o S11D, além de expandir-se para o exterior nos anos dourados de Roger Agnelli; a Oi foi criada por meio da fusão da Telemar com a Brasil Telecom, num jogo envolvendo BNDES, fundos de pensão, Citibank e Daniel Dantas, para na sequência quebrar após uma nova fusão mal sucedida com a Portugal Telecom. Poderíamos seguir neste mapeamento, mas nosso objetivo aqui é apenas relembrar como os governos do PT foram funcionais aos interesses da acumulação e concentração de capitais no Brasil. Em muitos setores, como no de alimentos, o efeito foi trágico, já que a oligopolização levou a aumento dos preços e ameaças à segurança alimentar da população. Por outro lado, este modelo obviamente predatório da terra e dos recursos naturais estimulou a ampliação da fronteira agrícola, a derrubada de florestas e sua substituição por áreas de pastagens, além de desastres pelo aprofundamento das atividades da mineração, como a queda da barragem da Samarco e o afluxo de milhões de toneladas de rejeitos no Rio Doce.
Sem detalhar as consequências econômicas desta política de concentração de capitais no Brasil, pode-se, no entanto, apontar o óbvio: o PT e seus dirigentes, no governo e no controle de bancos, fundos de investimento e de pensão, desenvolveu vínculos orgânicos com a burguesia. Em contrapartida, foi recompensado pelo apoio financeiro destes conglomerados econômicos em suas campanhas e em benesses para seus dirigentes, como as revelações da Lava Jato deixaram claro. Lula, por sua vez, converteu-se numa espécie de lobista e relações públicas internacional de multinacionais brasileiras como a Odebrecht e a Vale, num caminho antes já percorrido por José Dirceu e Antônio Palocci.
Apesar da aparência de bonança vendida pelos publicitários, a essência da orientação econômica neoliberal permaneceu inalterada nos governos petistas. Com a crise internacional, já no governo Dilma, era visível a dificuldade de manutenção da acumulação nos patamares anteriores. Aprofundaram-se as contradições para a burguesia: podem-se mencionar, por exemplo, a queda dos preços de matérias-primas (como petróleo e o minério de ferro, que, por exemplo, de um pico superior a US$ 150 por tonelada em 2011, recuou para cerca de US$ 40 em 2015, causando naquele ano o prejuízo histórico de R$ 45 bi da Vale); longa estiagem no Sudeste e Nordeste brasileiros, danificando colheitas e ameaçando o abastecimento de água e energia elétrica em 2014 e 2015; aumento da inflação e crescimento do número de greves e dos acordos coletivos com ganhos reais, como destaca Ruy Braga em suas análises sobre o período.
Em estreita relação com a FIESP e outras entidades patronais, o governo Dilma decidiu mitigar as perdas da burguesia com as bilionárias desonerações na folha de pagamento (sangrando os recursos da Previdência) para certos setores empresariais, derrubando tarifas de energia, em particular para grandes consumidores industriais, e estimulando uma queda circunstancial nas taxas de juros, para logo – sob pressão de banqueiros e até mesmo dos mesmos setores a quem o governo pretendia estimular – retomar a política de juros altos, revelando a dificuldade na atual conjuntura de diferenciar interesses de uma “burguesia industrial” da “burguesia financeira”. O controle das empresas por fundos de investimento e a pulverização acionária das grandes companhias revela que a burguesia de conjunto depende dos ganhos do rentismo.
Do ponto de vista político e social, no entanto, as várias contradições brasileiras agudizaram-se em junho de 2013. Nas grandes cidades, milhões foram às ruas em defesa de melhores serviços públicos e em rechaço a um regime político alheio às reivindicações populares, às quais só pode oferecer mais violência e repressão. Em junho, revelaram-se plenamente os limites do modelo lulista de regulação dos conflitos sociais e a impossibilidade objetiva de realizar as aspirações de ascensão social que o PT dizia representar. Este partido, pela primeira vez em 30 anos, não podia mais dirigir o movimento de massas. Ao contrário, este se voltava contra as administrações petistas, que se somavam aos tucanos e ao PMDB na exigência de repressão às manifestações e endurecimento das punições. Logo viriam as leis de organizações criminosas e antiterrorismo. A primeira, aliás, ironicamente, voltada para intimidar o movimento de massas e responder às demandas de combate à corrupção, terminou oferecendo um arcabouço legal para as investigações que deram origem à Lava Jato.
O MES foi uma das organizações da esquerda brasileira que mais procurou ser parte da mobilização de massas de junho de 2013, bem como debruçar-se para a compreensão de seu significado político e de suas consequências. Não é o caso de reafirmar tudo o que temos produzido a respeito deste evento, mas é útil relembrá-lo para pensar o futuro e sublinhar que a fissura aberta em junho de 2013 revelava o esgotamento da Nova República, um regime já incapaz de incorporar politicamente as massas, submetido aos interesses da grande finança nacional e estrangeira, cuja representação política faliu, dissociada de representatividade real e desmoralizada por sua participação ativa em esquemas de pilhagem do Estado.
Nas manifestações de 2013, uma realidade vivida há décadas nas periferias das grandes cidades e no campo apareceu para todo o país na estúpida repressão promovida pelas Polícias Militares, mostrando as consequências dramáticas do entulho da ditadura militar. Ao mesmo tempo em que se mostrava incapaz de atender demandas básicas por serviços públicos, a Nova República revelava sua face violenta – com a repressão policial e o aumento da violência e da barbárie nas grandes cidades – e sua face corrupta – como as investigações da Lava Jato começaram a revelar a partir de 2014.
A direita reagiu ao levante de junho e percebeu que precisava responder também no terreno das ruas. Mas somente ganhou peso de massas porque adotou como alvo o governo do PT, o segundo mandato de Dilma, que havia perdido legitimidade ao ganhar com um discurso crítico ao neoliberalismo e governar tentando aplicar esse receituário. Somado aos escândalos de corrupção revelados, o governo moveu contra si multidões que antes não estavam dirigidas pela direita, mas qu acabaram aceitando, ainda que temporariamente, aquela direção.
Naquele momento já avaliamos que esta capacidade da direita de mover multidões era temporária e assim foi confirmado: os que marcharam contra Dilma não continuaram seguindo nem Aécio nem o MBL após o impeachment. O fenômeno Bolsonaro veio depois e não tem, pelo menos até onde a vista alcança, perspectiva de mobilizar nem perto do que o impeachment mobilizou. Tem perspectiva eleitoral, não de ação de rua com peso de massas digna de nota. Além disso, como mostra matéria da Folha de São Paulo de 25/03, esta base não é homogênea e nem inteiramente fascista. Boa parte do eleitorado de Bolsonaro é confuso, preocupado com a segurança pública e com a corrupção.
Isso não significa que se deva desprezar a ação da extrema direita, até porque no caso do Brasil devemos saber que ela dá bases, anima e respalda a ação criminosa de máfias que surgem no interior do Estado burguês e de suas forças repressivas. Não é casual que Bolsonaro foi um dos poucos políticos que não prestou solidariedade a Marielle.
Mas embora não se possa subestimar, é preciso colocar as coisas em seu lugar e relembrar que em 2013 a ofensiva foi do movimento de massas. Se esta ofensiva não seguiu isto se deve, em primeiro lugar, ao fato de que ela foi parada pela repressão do Estado, iniciada em 2013 e planejada em 2014 para evitar que na Copa do Mundo o levante ocorrido durante a Copa das Confederações se repetisse. Com repressão prévia prepararam uma eleição-circo em 2014, como se 2013 não tivesse existido e como se a polarização entre PT e PSDB pudesse seguir resumindo a política nacional. Não era mais o caso.
Muito também já foi escrito e elaborado por nossa corrente a respeito da Lava Jato. Trata-se de uma operação complexa – envolvendo níveis diversos de uma miríade de instituições (Polícia Federal, seções do Ministério Público locais, tribunais de diferentes instâncias em Estados variados, tribunais superiores, Procuradoria-Geral da República, etc.) – e contraditória, cujos atores sofrem pressões de origens distintas. Aqui, vale marcar um aspecto da Lava Jato em sua relação com a crise da Nova República: o descontrole das instituições brasileiras. Antes, como argumentavam a ciência política burguesa e os comentaristas da imprensa, as instituições virtuosas do “presidencialismo de coalizão” aparentavam funcionar plenamente. Na realidade, o que havia era um balcão de negócios vendido como normalidade institucional e democrática. O conflito entre os poderes, as investigações de altas figuras da República – como sobre o envolvimento de Temer com a JBS –, as tentativas escancaradas de manipular as investigações de personagens como Jucá e Gilmar Mendes… Tudo isto revela outro aspecto da disfuncionalidade das instituições da Nova República e da dificuldade de restaurar a estabilidade do regime.
Por tudo isso, como tem afirmado Vladimir Safatle, é necessário enterrar a Nova República e lutar pela construção de uma nova institucionalidade, baseada nas reivindicações de democracia real e da liquidação de um regime hermético e antipopular, como desnudado em junho de 2013. O impeachment de Dilma foi um golpe parlamentar operado, entre outras razões, para garantir a autoproteção de uma parte dos atores do regime ameaçados pela Lava Jato. Percebendo a incapacidade do governo para controlar a situação, decidiram retirar o PT do condomínio dominante e assumir a situação. “Aqui não tem amadores!”, como disse recentemente Moreira Franco ao comentar a intervenção federal no Rio, e a disposição de “estancar a sangria” de Romero Jucá expressam as duas máximas dos executores da manobra palaciana.
Pela forma contraditória com que a experiência das massas com o PT foi sendo realizada, a tarefa de liquidar este regime e construir uma alternativa à esquerda da trágica experiência lulista ficou mais difícil e contraditória, pois as lideranças petistas, apresentando-se como “vítimas”, ganharam alguma sobrevida e passaram a opor-se ao governo Temer e a sua camarilha, igualmente envolvida com os esquemas corruptos que haviam desmoralizado o PT.
A queda de Dilma e o julgamento dos processos de Lula – em particular o veredicto de 24 de janeiro no TRF-4 – reafirmaram a quebra do pacto entre os partidos burgueses para sustentar o regime da Nova República. Tal acordo esgotou-se paulatinamente ao longo dos últimos anos a partir da fissura causada pelas manifestações de junho de 2013, seguida por seu simulacro conservador nas manifestações de 2015, o impeachment de Dilma e, mais recentemente, a condenação de Lula.
Lula é a figura mais expressiva da Nova República e de seus acordos intraburgueses pela garantia da “governabilidade”. Tal “governabilidade” foi possível também porque os ataques econômicos contra o povo eram reais, mas ainda não eram tão pesados quanto no quadro atual. Ao mesmo tempo, sem esta “governabilidade” os choques contra a manutenção de uma política econômica pró-mercado seriam muito maiores. Por isso, o alijamento de Lula do processo político expressa uma nova etapa do rompimento deste pacto, deixando claro que estamos ingressando num novo momento, no qual o regime político não necessita mais do PT e opta por um enfrentamento mais direto contra as massas. A maior parte da burguesia decidiu tirar Lula de cena. O setor burguês que permanece com ele vincula-se às velhas oligarquias locais, que estão há muito tempo incrustadas no aparelho do Estado, como Sarney, Calheiros, Kátia Abreu, Requião e Barbalho. Trata-se de um setor mais político da burguesia, apegado também à popularidade de Lula para garantir sua própria sobrevida eleitoral, também ameaçada.
As movimentações do dia 24 de janeiro em Porto Alegre, por sua vez, demonstraram a desorganização política que atinge o movimento de massas. Os atos foram grandes, mas muito menores do que teriam sido se Lula e o PT ainda tivessem uma parte do grande prestígio acumulado ao longo de sua história. Atuaram setores mais à esquerda, como o MST, e outros sem expressão efetiva para além dos aparatos. Por outro lado, os setores do movimento de massas que não seguem mais o lulismo não tiveram nenhuma chance de uma expressão independente. Esta caraterização é importante porque embora tenhamos considerado uma conquista o PSOL não ter ido aos atos com seus deputados, é preciso que se diga que o partido não teve nenhuma capacidade de postulação de uma posição própria, que denunciasse a seletividade mas se demarcasse do PT. O MES defendeu o direito de Lula ser candidato, pois entendemos que é um escárnio sua condenação enquanto Aécio segue sendo senador – mesmo tendo sido flagrado em ligações escandalosas – e Temer segue sendo presidente, mesmo com seus aliados próximos agindo em seu nome ao carregar malas cheias de dinheiro sujo. Mas nossa posição não nos afastou um milímetro da oposição frontal que fazemos ao lulismo e a seu método de conciliação de classes e de adesão aos esquemas da burguesia. Por isso fomos contrários à participação do PSOL nos atos convocados pelo petismo, pois estava claro que eles representariam uma chancela à política lulista.
A contrarrevolução econômica como saída burguesa para a crise
Os últimos três anos foram de ataques sem precedentes contra os interesses da classe trabalhadora. Além do corte dos salários indiretos via redução dos serviços públicos, foi aprovada a reforma trabalhista que representa um salto na superexploração da classe trabalhadora brasileira. Este foi o principal serviço do governo Temer para a burguesia brasileira. A aprovação destas medidas – combinadas com a retomada mais aberta das ameaças privatistas, provocou uma mudança objetiva desfavorável para a classe trabalhadora. O medo do desemprego e a dificuldade de obter conquistas também têm tido efeitos subjetivos negativos na capacidade de mobilização dos setores organizados da classe. O aumento da rapina e do rentismo têm sido evidentes. Trata-se de uma característica do regime da Nova República que se aprofunda.
Durante toda a experiência petista no governo, prevaleceu a dominância do capital financeiro na economia, o que Marx chamava de “capital portador de juros”. De 2003 a 2010, houve um ciclo econômico de ascensão (apesar da recessão em 2009 na esteira da crise no EUA e Europa). A crise começou a se impor com mais força no Brasil a partir de 2011, com a queda acentuada das taxas de crescimento do PIB, e se tornou uma recessão profunda a partir de 2014. Do segundo trimestre daquele ano ao último trimestre de 2016, a renda nacional recuou 8,6%.
A resposta do PT à crise foi apostar no aprofundamento de uma política econômica pró-mercado por meio de um profundo ajuste fiscal, contrariando descaradamente as afirmações de Dilma durante a campanha de 2014. Joaquim Levy, economista do Bradesco, foi escolhido para cumprir esta tarefa no Ministério da Fazenda. Iniciou-se uma fase de ataques mais agressivos à classe trabalhadora: R$ 58 bilhões foram cortados no orçamento dos ministérios e MPs foram editadas para dificultar o acesso ao seguro-desemprego, além das restrições ao pagamento de pensões por morte e auxílio-doença.
Após o impeachment, estes ataques aprofundaram-se com a reforma trabalhista e a tentativa de reformar a previdência. A dupla Henrique Meirelles e Ilan Goldfajn, no comando da Fazenda e do Banco Central de Temer, expressa o domínio do mercado na política brasileira. Eles representam a continuidade da contrarrevolução econômica, que requer a apropriação dos fundos públicos pelo rentismo, a superexploração do trabalho, o aprofundamento da espoliação da terra e dos recursos naturais como forma de recuperar as taxas de acumulação de capital. Trata-se de um programa burguês para adaptar o Brasil à nova configuração da divisão internacional do trabalho, localizando a economia nacional como fornecedora prioritária de matérias-primas, além de plataforma de produção de bens de baixo valor agregado por meio da compressão dos custos da força de trabalho. Esta é a estratégia das frações hegemônicas da burguesia brasileira, em aliança e simbiose com o capital financeiro internacional, diante da modificação do eixo dinâmico da acumulação capitalista para a Ásia e da baixa competitividade da produção industrial nacional, em queda acentuada nas últimas décadas. Este era também o plano de Joaquim Levy, que não pôde levá-lo adiante por conta das condições políticas daquele momento. Os mercados exigiam um ajuste ainda mais agressivo, pois se vivia um ciclo de declínio econômico.
A recessão foi enorme, por isso agora há alguma retomada, como afirma o governo. Pode ser que esteja havendo maior acumulação de capital e maior lucratividade, mas isto ocorre por meio de um brutal ataque à classe trabalhadora, com a reforma trabalhista, que alterou completamente as relações entre capital e trabalho. E a crise fiscal do Estado – União e entes federados – está muito longe de ser resolvida, agravando ainda mais a situação do funcionalismo público e da população que depende de seus serviços. Por mais que haja recuperação econômica, ela não significa uma melhora importante e muito menos em grande escala das condições de vida do povo. Longe disso: não há progresso para o povo, pois a natureza deste plano é antipopular e antinacional.
O crescimento da exportação do capital chinês para o Brasil é uma mudança estrutural, que começou no início dos anos 2000 e se intensificou na década seguinte. O aumento da dependência de capitais chineses já é uma realidade em toda a América Latina. Tal incremento ainda não teve repercussões fortes no terreno ideológico e da relação de forças entre as classes sociais. O PT ganhou força no calor desta relação. Mas a falência do PT é um fato e a unidade entre o capitalismo de Estado chinês e o petismo já não tem maior importância para primeiro. A relação passa a ser direta com o conjunto da classe capitalista e seus políticos. Não é à toa que Temer fez sua visita à China. Teremos que estudar esta mudança, o peso maior da China, combinado com o declínio da hegemonia norte-americana sobre o continente. Há uma contradição no interior da burguesia brasileira entre sua ideologia, vinculada com a cultura e a ideologia norte-americana, e a crescente ligação do capitalismo brasileiro com o chinês.
No terreno político e do regime, é claro que o capitalismo asiático desvaloriza ainda mais os direitos humanos e avaliza a superexploração sem limites. A reforma trabalhista, que traz maior precarização e retirada de direitos, parece ter correspondência com as típicas relações de produção cada vez mais marcantes da China atual, pós-restauração. O aumento do autoritarismo por parte da burguesia brasileira é totalmente compatível com a hegemonia norte-americana, mas pode ainda ter ainda mais afinidade com os métodos da superexploração chinesa e seu regime político.
O governo Temer é marcado pela subserviência completa ao capital financeiro, pois este é o único setor que lhe empresta legitimidade. Os governos do PT atuaram como gerentes dos interesses capitalistas em tempos de ascensão econômica, mas não conseguiram ser tão eficazes ao sistema em tempos de crise. Não foram até o fim com o ajuste. O capital financeiro percebeu isto e por esta razão embarcou no impeachment. Aí entra em cena o componente político deste processo, pois o impeachment não foi um movimento que nasceu do capital financeiro, embora tenha contado com seu apoio. O impeachment ganhou contornos de golpe parlamentar ao ter como principal operador o PMDB, na figura de Eduardo Cunha. Isso ocorreu porque despontou no horizonte uma operação judicial que não estava sendo controlada pela cúpula política que dominava o regime da Nova República. O PMDB percebeu que o PT não tinha condições de levar adiante um plano eficaz de desmonte da Lava Jato. Então, o impeachment acabou concretizando esta aliança do componente político com o capital financeiro, dando origem à atual “governabilidade”.
A contrarrevolução econômica é uma tendência mundial que se reflete também na América Latina, com a Argentina de Macri e o Chile de Piñera como expressões mais acabadas deste processo. As posições reformistas dos ciclos políticos anteriores1 foram derrotadas (com exceção da Bolívia) e estamos num momento do capitalismo em que o espaço para estas é muito reduzido. Seis capitalistas controlam uma renda equivalente à metade da população brasileira. O nível de concentração de renda é dramático e a violência contra o povo é brutal, com 60 mil mortos por ano e uma população carcerária que já é a terceira maior do mundo, com 700 mil detentos – a grande maioria formada por jovens negros e pobres, com ensino fundamental incompleto.
O Brasil tem 207 milhões de habitantes e 21% deles dependem diretamente dos valores repassados pelo Bolsa Família para sobreviver, conforme aponta um levantamento divulgado pelo jornal Valor Econômico. São 43 milhões de pessoas que utilizam entre R$ 39 e R$ 372 do programa, sendo que em algumas regiões, como no Maranhão, o índice chega a 48% da população. Este é o limite em termos de inclusão social a que pôde chegar o reformismo e os pactos da Nova República. Economistas conceituados como Laura Carvalho são unânimes em apontar que não há mais espaço para se distribuir renda apenas com programas sociais, sem atacar o andar de cima. O pacto da Nova República implodiu e estamos entrando num novo momento, em que fica claro que haverá ainda menos disposição do regime em permitir que se mexa com o topo da pirâmide. Para compreender melhor as possibilidades de resistência nesta nova conjuntura, precisamos analisar a segunda tendência.
O descontentamento popular amplia-se
O fim da Nova República coloca-nos diante de algo distinto, que ainda está para ser definido. O que sabemos é que se trata de um regime igualmente ligado aos interesses econômicos do capital financeiro. Um regime inclusive regressivo em relação ao anterior, pois hoje há ainda menor autonomia do componente político em relação ao aspecto econômico – como havia após o fim da ditadura, com a abertura política e o peso do movimento operário naquele período. Este novo regime é débil em sua forma de governar, não conta com a legitimidade popular e está longe de ser normalizado.
O descontentamento popular é uma tendência permanente que marca a implosão da Nova República. Esta tendência deu um salto em junho de 2013 e fissurou o regime. Desde então, embora a ofensiva do movimento de massas tenha sido interrompida, seguimos tendo os efeitos de Junho nas ações do movimento. A ocupação das escolas pelos secundaristas em São Paulo foi o primeiro elemento desta continuidade, alastrando-se pelo país e derrotando os planos de diversos governos estaduais que atacavam a educação pública. É nas greves e nos processos de resistência que a tendência de descontentamento popular se expressa de forma mais forte. A greve dos policiais no Espírito Santo e no Rio Grande do Norte escancarou o problema da crise fiscal dos estados e seus reflexos na segurança pública. Em Florianópolis, os servidores municipais protagonizaram uma greve de 38 dias, inspirando a categoria em Porto Alegre, que resistiu durante 40 dias contra os ataques de Marchezan. Em 2017 houve um ciclo intenso de mobilizações no primeiro semestre, com o 8 de março levando milhares de mulheres às ruas contra a reforma da Previdência. A greve geral de 28 de abril emparedou o governo e entrou para a história, demonstrando uma força da classe trabalhadora que desde os anos 1980 não se via. A marcha que ocupou Brasília no dia 24 de maio também foi uma demonstração de força, escancarando o autoritarismo do governo, que convocou o Exército para reprimir os trabalhadores.
Há outros dois elementos que devem ser levados em consideração para a tendência de aumento do descontentamento popular: a determinação da burguesia de impor um ajuste estrutural duro contra o funcionalismo e a reforma trabalhista. O primeiro demonstra que os ataques contra o serviço público continuarão e levarão, muito provavelmente, a enfrentamentos duros contra os governos, como demonstra a recente e vitoriosa greve dos professores e servidores paulistanos contra a reforma da previdência municipal de Doria. Os efeitos da reforma trabalhista, por sua vez, só agora começam a ser sentidos. O aumento das demissões para a contratação de mão de obra intermitente, a flexibilização e aumento das jornadas, e as negociações de acordos coletivos duras com o patronato fortalecido devem, no médio prazo, levar a um aumento das greves e lutas entre os trabalhadores do setor privado. Com a burocratização e distanciamento dos sindicatos, especialmente de setores mais precarizados, é possível que ocorram greves “selvagens” de base, bastante radicalizadas, como, aliás, houve anos atrás entre operários do PAC e garis de diversas cidades brasileiras. É possível também que no médio prazo enfraqueçam-se as burocracias mais atrasadas, encasteladas em sindicatos cartoriais assentados nos repasses do imposto sindical.
Estamos aqui no terreno das hipóteses, mas estes são elementos que devem ser levados em conta em nossas elaborações futuras. De qualquer forma não podemos perder de vista que a contrarrevolução econômica alterou de modo desfavorável para a classe trabalhadora a relação de forças objetivas, em particular em função do desemprego de massas. E isto tem efeitos subjetivos. Assim, temos duas tendências contraditórias: uma puxando para a redução de grandes ações de luta e outra que estimula lutas maiores. O certo é que o descontentamento contra tudo e todos que representam a política e os interesses burgueses vai seguir e será intenso.
Este ciclo de lutas de 2017 poderia ter-se ampliado com a combinação da resistência contra o ajuste e contra as reformas com a indignação contra a corrupção. Esta possibilidade foi frustrada a partir de junho, quando o PT e a CUT desmontaram o que deveria ter sido a segunda grande greve geral do ano. O alívio para o governo já havia sido demonstrado na aliança entre PT e PMDB para livrar a chapa Dilma-Temer da cassação no TSE, tendo em Gilmar Mendes uma âncora de salvação. Este refluxo ocorre justamente na virada para o segundo semestre do ano, quando o governo estava em seu momento mais frágil com a divulgação das gravações da JBS.
No momento em que o governo Temer entrava numa crise que parecia terminal, em que seu programa econômico era enfrentado nas ruas do país e nas paralisações dos locais de trabalho e em que a corrupção do PMDB aparecia em rede nacional no diálogo de Temer com Joesley Batista e na mala de Rocha Loures, o PT estendeu-lhe a mão. O cancelamento da greve geral de 30 de junho, no auge da crise, teve como objetivo preservar o governo para que este seguisse em sua operação “estanca sangria”. A unidade de PMDB, PSDB e PT nos bastidores tinha como objetivo reduzir a exposição de suas lideranças à Lava Jato e o risco de prisões. Se Temer caísse com os grampos da JBS, que seria feito de seus ministros, de Aécio Neves e José Serra, dos ex-ministros de Dilma e das dezenas de parlamentares investigados? A entrevista de Lula à Folha de S. Paulo em 1º de março deste ano foi bastante eloquente a este respeito. Para o líder petista, Temer sofreu “um golpe” dos investigadores e da imprensa. A permanência de Temer em sua cadeira deu fôlego para a operação de troca dos comandos da PGR e da PF, além da entrada em cena do incansável Gilmar Mendes para a libertação dos envolvidos na Lava Jato e para assegurar a morosidade do STF no tratamento de acusados com foro privilegiado.
A reforma trabalhista poderia ter sido evitada com a continuidade das mobilizações abertas com a greve geral de abril de 2017. A reforma da previdência, principal vitrine de Temer e Meirelles para os mercados, terminou derrotada apesar da diminuta iniciativa das direções do movimento sindical, interessadas na preservação da sobrevida política e eleitoral de seus dirigentes. Temer enfrentou enorme desgaste com as acusações de corrupção e com as duas votações contra as investigações no Congresso. Nelas, o governo gastou boa parte de seus recursos em emendas, verbas para bases locais e cargos no governo. Apesar da pressão unificada da burguesia, a enorme rejeição à reforma, sobretudo, ameaçava os planos eleitorais dos parlamentares.
Diante da derrota, Temer e seus operadores decidiram apostar na pauta da segurança pública, outra grande preocupação do povo brasileiro, submetido à escalada da violência do crime nas grandes cidades e à falência das polícias – pelos atrasos salariais e falta de equipamentos, por sua estrutura militar herdada pela ditadura, pela presença de grupos de extermínio, milicianos e por elementos de ideologia reacionária protofascista – que ampliam a barbárie social e o aumento dos homicídios.
A intervenção federal no Rio de Janeiro, sob comando das Forças Armadas, busca reposicionar o governo numa pauta em que Bolsonaro e a extrema-direita crescem. Sem qualquer capacidade de resolver a crise da violência, a intervenção é uma cortina de fumaça para o derretimento do governo, já incapaz de aplicar sua agenda em ano eleitoral, e para a falência do PMDB no Rio, o principal responsável pela tragédia social no Estado.
Por tudo isso, o descontentamento popular é uma tendência da conjuntura. Não se expressa de forma contundente no movimento popular, com ações espontâneas como em junho de 2013, mas estará presente de maneira muito forte no cenário eleitoral. É incontestável o desencanto, totalmente justificável, do povo com a política. Os 13 anos de governos do PT são responsáveis diretos por este sentimento, deixando a população sem outra reação a não ser o desprezo após ver um partido que se dizia diferente chegar ao poder e governar com os mesmos personagens da velha política e com os mesmos métodos de sempre da corrupção.
A primeira pesquisa Datafolha realizada após a condenação de Lula pelo TRF-4 revela a dimensão da crise de representatividade. Se a eleição fosse hoje, quem venceria seriam os brancos e nulos, que somam 32%. O percentual pode chegar a 36%, se forem considerados ainda os indecisos. Antes disso, a maior taxa de brancos e nulos em uma pesquisa de eleição presidencial ocorreu em fevereiro de 2014, quando o percentual atingiu 19%, com o país recém saindo das Jornadas de Junho. Também revelada pela referida pesquisa, a força eleitoral ainda presente de Lula demonstra, além da opção pelo mal menor na comparação entre o PT e o governo atual (combinada com o peso geral do reformismo em setores médios), o que expomos a seguir: as limitações do PSOL e sua dificuldade em se impor como uma alternativa.
A ausência de uma ideia alternativa e as limitações do PSOL
A terceira tendência que podemos identificar nesta conjuntura de colapso da Nova República é a ausência de um projeto alternativo ao regime. Não há ideia alternativa e as eleições de 2018 não resolverão os impasses que estão colocados. É comum a comparação do pleito deste ano com o de 1989, mas ela só se sustenta no que diz respeito à pulverização de candidaturas. Pois em 1989 havia uma ideia alternativa, expressada pelo PT. Após perder aquela eleição, o PT se incorporou ao regime, assumindo a lógica de que Lula não poderia ser presidente por uma via radical.
Agora, vivemos um momento em que o ciclo político anterior terminou, foi derrotado, mas se mantém a ideologia reformista e, mesmo na esquerda socialista, a ideologia petista segue tendo peso. Ao mesmo tempo, as bases objetivas reformistas diminuíram. O novo ciclo ainda não está definido. Por isso, há uma mistura muito grande entre as posições reformistas que dominaram o ciclo passado e as possibilidades de posições revolucionárias que teriam de se impor neste novo momento.
Outro elemento novo desta conjuntura é o crescimento da extrema direita, algo que não havia em 1989. Naquele período, o ciclo anterior – dominado pela ditadura e pelos militares – também havia sido derrotado. E as eleições de 1989 acabaram marcando a consolidação de um novo ciclo burguês, a solidificação do pacto da Nova República que agora colapsa. O avanço que assistimos da extrema direita é também fruto dos acordos feitos para manutenção do regime da Nova República, os quais o PT aceitou de bom grado para governar. Assim, manteve-se intacta a estrutura militar e permanecem impunes os crimes da ditadura. O resgate da memória é débil e a busca por Justiça nunca encontrou apoio nos governos da Nova República, incluindo aí os 13 anos de governos do PT. O terreno para que a extrema direita se desenvolvesse sempre foi muito bem preservado. Algo que não ocorre na Argentina, por exemplo, onde é impensável que a extrema direita coloque a cabeça para fora – pois lá houve um combate muito forte ao legado da ditadura.
Os erros do PSOL, sua incapacidade de compreender a importância da luta contra a corrupção, sua inserção ainda pequena no movimento operário e nos setores mais marginalizados da sociedade e sua debilidade em postular-se como alternativa antirregime também são elementos importantes que contribuem para que políticos como Bolsonaro capitalizem o descontentamento com a “partidocracia” e com a política tradicional. Mas, como já foi dito anteriormente, esta direita representada por Bolsonaro não tem capacidade de movimentar massas. Sua base mais militante ainda é de pequenos grupos, embora barulhentos e potencialmente violentos, como vimos na caravana de Lula pelo interior do Rio Grande do Sul, durante a qual até mesmo uma jornalista da RBS (afiliada da Globo no RS) foi hostilizada aos berros de “RBS comunista, RBS petista”. Seria engraçado se não fosse trágico.
O principal desafio que nos cabe nesta nova conjuntura é avançar na construção de uma alternativa. A luta contra os planos de contrarrevolução econômica é central neste processo. Há o perigo de um retrocesso geral se não houver uma alternativa antissistêmica concreta. O velho não tem condições de sedimentar esta ideia nova, pois foi derrotado e já fracassou. E o novo ainda não afirmou claramente um projeto. É útil, aqui, relembrar o conceito de Gramsci do “interregno”. Apesar de frequentemente mobilizado e, de certo modo vulgarizado, nos debates sobre a crise brasileira, sua definição de que a crise “consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer” e de que “nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem” ganha bastante força ao constatarmos que a falência da Nova República e de seus agentes políticos arrasta-se sem que uma alternativa anticapitalista e antirregime tenha força para impor uma saída progressista e popular à crise econômica, ao ajuste imposto pela burguesia e ao aumento da violência.
Este novo período que se inicia nos encontra em um nível superior de acumulação, tendo resistido aos ataques que os partidos da Nova República nos lançaram. Não podemos esquecer-nos da Lei Cunha, armada para nos retirar dos debates eleitorais, e da ambição lulista de acabar com o PSOL em 2010, apoiando em Alagoas os adversários de Heloísa Helena ao Senado, unindo-se a Renan Calheiros. E agora um trauma e uma tragédia, o assassinato de Marielle, fez o partido dar um salto em seu peso e responsabilidade.
A eleição de 2018 não resolverá nada e o regime seguirá arrastando-se em crise. O PT não conseguirá hegemonizar a esquerda e haverá um vácuo que pode ser ocupado pela direita. Esta pode crescer eleitoralmente, mas no terreno das lutas o espaço seguirá vazio e o PSOL tem a obrigação de intervir. Devemos seguir apostando na construção de uma política independente para incidir sobre essa realidade, assim como sempre fizemos no passado, em todos os momentos em que a conjuntura nos apresentou essa possibilidade. A prova maior disso é a própria fundação do PSOL, um acerto incontestável que foi impulsionado por nossa organização num momento em que muitos classificavam como loucura a construção de uma alternativa de esquerda no auge do lulismo. Em junho de 2013, também tivemos a oportunidade de demonstrar a importância de ter uma política independente. Enquanto o petismo pedia repressão para as ruas, nós defendíamos e éramos parte ativa daquela insurreição juvenil e popular que sacudiu o Brasil.
O impeachment de Dilma também representou uma situação na qual pudemos defender a necessidade de uma política independente. Foi um desastre que o PSOL tenha defendido, naquele momento, o “Fica Dilma” simplesmente, ao invés de ter sido contra a manobra representada por Cunha e a favor de eleições gerais. Após o estelionato eleitoral, a popularidade de Dilma naturalmente despencou. Ao se eleger com um discurso e passar a aplicar um ajuste fiscal contra os trabalhadores, cortando investimentos nos ministérios e retirando direitos, Dilma jogou seu programa na lata no lixo e viu sua legitimidade desmoronar, o que nos colocava a tarefa imediata de defender mais democracia contra a crise, com eleições gerais para barrar a saída conservadora do impeachment arquitetado por Cunha e Temer.
O PSOL perdeu uma oportunidade histórica de se colocar como um agente firme da luta contra a corrupção no país, evitando que esta pauta caísse no colo da direita, que a manipula de forma hipócrita para garantir apoio popular. Nossa bancada no Congresso assume muito bem uma postura combativa de denúncia dos acordões entre os partidos da ordem e de enfrentamento aos corruptos, mas o partido perdeu esta oportunidade. E hoje a Lava Jato já está perdendo força, vítima da política de desmonte do combate à corrupção patrocinada pelo governo Temer em conluio com a cúpula petista, embora ainda sobrevivam conquistas importantes, como o desmoronamento da cúpula do PMDB do Rio de Janeiro, com as prisões de Cunha e Cabral.
A Lava Jato foi um elemento inesperado pelo regime, surgida de suas próprias contradições. O PSOL deveria ter reconhecido a brecha que ela representou para aprofundar ainda mais a fissura do sistema, aproveitando a insatisfação popular contra a corrupção para enfraquecer os partidos da ordem, os partidos que sustentaram a Nova República. Na hora certa, mesmo a política de uma pequena organização pode incidir com força sobre a conjuntura e mudar os cenários. Ao abrir mão deste papel, o PSOL deixou as porteiras livres para a direita e as forças burguesas, inclusive aquelas representadas com força no Poder Judiciário, aproveitarem para agir sobre a Lava Jato.
A Conferência eleitoral do PSOL e os desafios de uma nova esquerda
No dia de 10 de março, o PSOL realizou a sua conferência eleitoral nacional. Foi aprovada a aliança com MTST e com a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) materializada na fórmula Guilherme Boulos-Sônia Guajajara. Uma chapa muito representativa do ponto de vista dos movimentos sociais.
No quadro dos debates internos, levantamos a necessidade de aprofundar o debate programático. A realização de prévias partidárias respondia a essa necessidade. Tanto Plínio de Arruda Sampaio Júnior como Hamilton Assis, nomes que auxiliaram na discussão de perfil e programa, cumpriram com a tarefa de defender o aprofundamento da democracia interna e do acúmulo programático. Nossa linha foi a de reafirmar que o enfrentamento aos planos do governo e da direita não é possível tomando-se Lula como nossa referência fundamental. O patrimônio do PSOL não pode ser diluído, como nas relações perigosas estabelecidas com a assinatura do “manifesto das fundações” (PT, PCdoB, PDT, PSB) e no próprio vídeo de Lula. Apesar das distorções do quórum da conferência, a proposta dos setores mais à esquerda no PSOL recebeu um terço dos votos. Também lutamos por prévias, um método democrático para permitir que a militância do PSOL fosse envolvida na definição dos rumos de nossa candidatura e do partido.
Nessa direção, como contribuição ao debate, deixamos o programa que Luciana Genro levantou em 2014 – aprovado então de forma unânime pelo partido – para ajudar no ponto de partida nas propostas que o PSOL defenderá em suas candidaturas em 2018. Vamos defender, por todo o país, a construção de uma nova esquerda, levando em conta as experiências anteriores e apontando um caminho para o futuro, como uma ponte para as ideias anticapitalistas.
Após as definições, seguimos lutando para fortalecer o PSOL e, nesse caso, contando com a aliança com Boulos e Sônia para construir uma nova esquerda. Sabemos que esta será uma luta em condições diferentes das que enfrentamos na construção do PSOL até aqui. É preciso ter claro que Boulos é o candidato do MTST numa aliança com o PSOL. Esta aliança, em si, é uma grande vitória para o partido, pois atrai para o seu âmbito um dos movimentos sociais mais importantes de São Paulo, herança positiva das Jornadas de Junho. Mas ela também nos coloca um enorme desafio pois faz com que as posições e a localização que nosso partido teve desde sua fundação estejam em disputa no perfil da candidatura. Do ponto de vista social, a candidatura de Boulos pode aproximar uma vanguarda mais ampla e engajá-la em sua campanha. É possível, e até provável, apesar da confusão programática, que o partido cresça e amplie suas bancadas. Neste caso, será o crescimento de um partido com perfil mais contraditório do que aquele projetado na fundação do PSOL.
Devemos trabalhar pelo fortalecimento de nossas campanhas em todo o Brasil, buscando reafirmar a estratégia de uma nova esquerda, na eleição de parlamentares comprometidos com a visão de tribunos do povo e com um programa de mudanças reais, ligando a esquerda radical com os anseios do povo brasileiro. A presença do companheiro Guilherme Boulos em nossa VI Conferência para debater com nossa militância nossas convergências desde junho de 2013 e as diferenças políticas que tivemos recentemente mostram a possibilidade de avançarmos numa construção conjunta da candidatura presidencial do PSOL.
Nas lutas cotidianas, que tendem a acontecer e se espalhar, vamos rodear de solidariedade os que lutam e ser parte delas, construindo o MES, o PSOL e nossas frentes de atuação. As lutas sindicais, populares, estudantis, feministas e antirracistas são parte decisiva da construção desta alternativa com peso de massas. Para isso, precisaremos avançar em nossas elaborações e reorganizar nosso sistema de alianças e nossa orientação de construção.
Conclusão: fortalecer a construção do MES, do PSOL como alternativa e formular uma estratégia para um período de mais enfrentamentos
Por tudo o que aqui se expôs, fica claro que estamos entrando num período de mais enfrentamentos. A falência da Nova República coloca-nos diante da responsabilidade de nos debruçar sobre nossa estratégia. O Brasil necessita de uma revolução democrática, construída pelas massas com a força de Junho e com o amadurecimento programático que os últimos anos mostraram ser necessário. Uma revolução anti-imperialista e nacional para combater a subordinação de nosso país e de nosso povo aos interesses dos vampiros e parasitas do rentismo internacional e de seus sócios brasileiros. Uma revolução que estimule a mobilização das massas pelo socialismo, a única saída para a humanidade diante da barbárie a que o capitalismo arrasta os povos de todo o mundo. Alimentados por nosso internacionalismo militante, é nesta luta que a militância do MES deve se colocar.
Na VI Conferência Nacional, avançamos na elaboração de nosso sistema de consignas para este período. Como estamos já entrando na conjuntura eleitoral, tal sistema será sintetizado nas campanhas de nossos candidatos e nos programas que serão apresentados. A base do programa de Luciana Genro na campanha de 2014 segue vigente. Devemos reafirmar as bandeiras que dizem respeito aos direitos civis e uma nova política de segurança pública (que envolva também o combate à guerra às drogas e às milícias), além de atualizar o programa com as lutas contra o ajuste de Temer/Meirelles, o que exige a explicação paciente do papel nefasto da reforma trabalhista e a mobilização em defesa dos salários e dos empregos, contra as privatizações, contra a reforma da previdência e o sucateamento dos serviços públicos. São lutas que já estamos levando adiante. Devemos aprimorá-las, entre outras iniciativas, aumentando a relação entre nosso trabalho sindical e popular, unindo a classe trabalhadora amplamente. Do ponto de vista de uma política mais global, da alternativa de poder, para que não se fique limitado a uma propaganda genérica e ainda incompreensível da necessidade de um governo dos de baixo, dos trabalhadores e do povo, acreditamos que valha, embora também como saída de propaganda, defender a eleição de uma Assembleia Constituinte, uma Constituinte eleita sem o poder das grandes empresas, portanto com base em reformas políticas que permitam uma divisão democrática do tempo de rádio e de televisão, que permitam as candidaturas sem partido, e que possam discutir assim quais os caminhos necessários para reorganizar o país.
Notas
1 Como apontamos no documento internacional.