Macron desejava celebrar o maio de 68 – e depois chamou a polícia

De que é que o Emmanuel Macron tem tanto medo a ponto de o levar a agir com tanta violência? Atualmente, viver um pouco fora do sistema constitui uma ameaça ao neoliberalismo.

Eric Aeschimann e Kristin Ross 21 abr 2018, 18:06

Fui pela primeira vez à ZAD na primavera de 2016, há dois anos. Fiquei impressionada com a mistura de pessoas – estavam ali mais mulheres e pessoas mais velhas do que geralmente se vê neste tipo de sítios – bem como com as atividades que estavam a decorrer.

Fui convidada por membros do coletivo “Mauvaise Troupe” para falar sobre o meu livro acerca do imaginário da Comuna de Paris, que tinha sido lançado recentemente em francês. Como poderemos construir “formas comunais”? Era essa a pergunta que colocavam e usavam o título original em inglês do meu livro, Communal Luxury. Esta fórmula circulou no mundo dos artistas e artesãos durante a Comuna: não partilhar apenas o bolo em fatias iguais, mas partilhar o melhor possível.

Alguns dos presentes tinham uma erudição literária desenvolvida e outros eram autodidatas. Existiam, claro, tensões na ZAD. Nas assembleias gerais, aqueles com formação universitária eram regularmente criticados devido à rapidez com que faziam declarações a respeito de tudo, arriscando silenciar os outros, mesmo que não de forma propositada.

Outra linha de fratura colocou os agricultores contra os “naturalistas” que afirmavam que a humanidade deveria deixar de intervir na natureza: não deveríamos tocar num único ramo numa floresta. Uma outra disputa surgiu com a presença de cães. Para alguns, a ZAD é um espaço de liberdade para todos, incluindo os cães; para outros, os cães incomodavam o gado.

Voltei à ZAD umas seis ou sete vezes, apenas por vontade própria. Gosto da relação com o tempo que se sente na ZAD. Isto nada tem que ver com a temporalidade do capitalismo. Na ZAD trabalha-se muito, mas não por um salário, e isso altera tudo. É preciso cuidar dos animais, das plantações, das crianças. As pessoas estão sempre ocupadas a construir, a ampliar e a reparar os espaços onde vivem. Construíram edifícios coletivos, bem como instalações mais lúdicas, incluindo um farol. Um farol no meio dos campos, erguido e mantido cuidadosamente: um exemplo perfeito do luxo comum!

Os dias também são ocupados por atividades políticas e culturais. É a isto que a “Mauvaise troupe” chama de atividade “composicional”: ter tempo para aprender a viver em conjunto, com todas as sensibilidades que isso inclui. Fazer isso depende das assembleias gerais, que podem durar até seis horas. Visto de longe, pode parecer risível, mas quando se vivem estes momentos no terreno, ganha-se admiração pela energia dedicada a inventar uma vida diferente.

Na sua adesão a uma forma de “pobreza”, eu identifico uma liberdade impressionante. Limitam as suas necessidades, dão prioridade ao trabalho coletivo e aprendem a ser autónomos. Em compensação, as suas vidas têm uma certa riqueza. Claro que aqui podemos pensar nas comunidades pré-capitalistas ou mesmo nas comunidades franciscanas, mas sem a dimensão religiosa.

Come-se muito bem na ZAD, exceto quando há falta de comida; as pessoas adoram cozinhar em conjunto. Eu dormia numa caravana. Por vezes era fria no inverno, mas havia aquecimento noutros espaços. O Governo afirma que este espaço é perigoso. Como em qualquer sítio, podem existir pessoas que criam problemas, mas a ZAD tem um sistema de mediação: todos os meses uma dúzia de pessoas é escolhida para agirem como mediadores.

Esta acumulação de experiências, de solidariedade, de tudo o que é partilhado, compõe o recurso mais precioso da ZAD. Começámos por defender um território, e gradualmente aquilo que fizemos em conjunto tornou-se mais importante que a terra em si. Construir a solidariedade entre diferentes pessoas é muito aquilo do que necessitamos nos dias de hoje.

Macron quis destruir uma utopia que funcionava há dez anos

Eu estava em La Rolandière quando foi anunciado o cancelamento do projeto de construção do aeroporto. Todas as pessoas se esforçaram para ver as filmagens desta decisão histórica num pequeno ecrã de computador. Demos uma volta pela ZAD para agradecer aos agricultores que participaram na luta, e depois organizámos uma grande festa.

Mas depois disso o Estado procurou dividir os zadistas. Claro que existem divergências internas sobre ações futuras. Alguns eram favoráveis a alcançar-se um compromisso com o Estado, enquanto outros adotaram uma posição mais radical, de puro anarquismo, mesmo com risco de impotência. Ao invés de procurarem uma forte posição maioritária ou de cada um fazer como bem entendesse, procuraram alcançar um meio termo. Os debates eram por vezes difíceis e morosos. Mais uma vez, era esta a ideia de “composição”. Mas o Estado não queria que uma experiência destas se desenvolvesse.

O que aconteceu na semana passada foi dramático. Não havia nada além de poluição, gás e lama por todo o lado! A polícia não se limitou a demolir o espaço, também o mancharam. Até os animais foram afetados pelo gás pimenta e fugiram para a floresta. Era como se, por não poder construir o aeroporto, o Estado tivesse procurado saquear o território. De que é que Emmanuel Macron tem tanto medo a ponto de o levar a agir com tanta violência? Creio que é o facto de, hoje em dia, viver-se de forma diferente, livre e um pouco fora do sistema, constituir uma ameaça ao neoliberalismo.

Temos de defender estes espaços que se colocam “fora do sistema”. A Esquerda radical usa muitas vezes a palavra “resistência”. Mas resistir é admitir que já se perdeu e que nos deparamos com um poder enorme e invencível. Prefiro a ideia de “defesa”, que está no centro da experiência na ZAD. Nós defendemo-nos quando já temos algo, uma coisa que valorizamos e que queremos manter. A ZAD não era uma utopia, mas uma comunidade que funcionava há dez anos. Foi isto que o Governo francês quis destruir.

O que o gabinete do presidente me ofereceu

Acontece que este é o mesmo Governo que me contactou em outubro, através do intermediário Sylvain Fort, conselheiro de Emmanuel Macron sobre “Discurso e Memória”. Queria que eu fosse ao Eliseu (o palácio presidencial) falar-lhe sobre o maio de 68.

Uma colega sua escreveu-me, dizendo que “no quinquagésimo aniversário do maio de 68, o presidente desejava participar numa reflexão nacional que iria seguramente estender-se ao longo do ano de 2018”. No seu e-mail, os eventos de 68 estavam associados a temas como a “modernização”, “impasses” e até mesmo “ao colapso das utopias que daí resultaram”.

Esta é a narrativa clássica segundo a qual 68 esgotou e depois enterrou as últimas ilusões revolucionárias, e que agora, por falta de alternativa, deveríamos desistir de mudar o mundo. No entanto, no meu trabalho como historiadora, demonstro que 68 inventou novas formas de ação, nas quais movimentos como aquele em Notre-Dame-des-Landes ainda se inspiram atualmente. Não acredito na ideia de impasses e por isso recusei o convite para o Eliseu. Mais tarde, soube que o presidente francês decidiu não discursar no quinquagésimo aniversário do acontecimento. Julgo que esta foi a decisão certa. Pois reclamar a herança dos movimentos de maio ao mesmo tempo que se enviam tanques a Notre-Dame-des-Landes seria justamente aquilo que 68 mais temia: uma recuperação cínica da luta.

Reprodução da tradução em português de Érica Almeida Postiço publicada pelo esquerda.net. Artigo originalmente publicado no L’Obs.


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