Sarkozy-Khadafi: o affaire dos affaires

Estamos ante a história de um compromisso duradouro com uma ditadura, que começou em 2005 quando Nicolas Sarkozy era ministro do Interior.

Edwy Plenel 16 abr 2018, 12:42

Fabrice Arfi e Karl Laske, jornalistas de Mediapart, juntam num livro seis anos de investigação sobre o caso Sarkozy-Khadafi. Estamos ante a história de um compromisso duradouro com uma ditadura, que começou em 2005 quando Nicolas Sarkozy era ministro do Interior. “A história de uma alta traição”: a corrupção de um clã político francês a serviço de uma ditadura estrangeira.

Avec les compliments du Guide (editora Fayard, 400 páginas) é a história da degeneração de uma República, a nossa, e a obstinação de um jornal, o vosso. O livro, que prende desde a primeira página, pode ser lido como uma novela negra na qual a ação nunca se detém. Este relato, dos jornalistas Fabrice Arfi e Karl Laske, que junta seis anos de pesquisa no Mediapart sobre o caso Sarkozy-Khadafi, tem a eficácia de um informe clínico. Sem muitas palavras nem comentários, os fatos falam por si mesmos. Peça a peça, o quebra-cabeça toma forma até oferecer uma síntese definitiva de um caso sem paralelo; um caso com maiúsculas.

Nunca, na longa crônica das corrupções republicanas, havíamos visto um panorama tão desolador. No centro, rodeado de seu clã, se situa Nicolas Sarkozy, ou seja, um político profissional de primeiro nível, durante muito tempo líder indiscutível de sua família política, presidente da República Francesa durante cinco anos (2007-2012), e ainda hoje um personagem público considerado. Em torno dele, se dão cenas dignas das Górgonas, essas criaturas malvadas da mitologia grega cuja única contemplação podia petrificar a quem as miravam. Porque a verdade, o que os dois investigadores de Mediapart nos obrigam a olhar de frente é impressionante e aterrador.

Estamos ante a história de um compromisso duradouro com uma ditadura, que se iniciou em 2005 quando Nicolas Sarkozy era ministro (primeiro do Interior e depois da Economia); a história da petição de financiamento oculto, uma soma considerável, procedente do dinheiro obscuro desse regime líbio; a história de eleições presidenciais cuja campanha se viu corrompida por esse financiamento ilegal procedente de um Estado estrangeiro; a história de um jogo de cena humanitário (a libertação das enfermeiras búlgaras) para justificar a recepção triunfal de Mohammed Khadafi no final de 2007 por parte da República Francesa; a história de uma aliança que, harmônica no início, se converteu num obstáculo quando os ventos inesperados das revoluções árabes ameaçavam os segredos inconfessáveis na raiz da derrubada popular da ditadura que os guardava; a história de uma guerra devastadora, iniciada em 2011, e que tinha como resultado, ou objetivos, apagar precipitadamente as pegadas de tais compromissos – por não dizer a suas testemunhas, entre os quais se encontrava o próprio ditador – e assegurar-se de que os sobreviventes seguem enterrando-os; a história, por último, de manobras contínuas e concertadas para que estas verdades não viessem à luz, fossem deslegitimadas no debate público e ignoradas por uma Justiça impedida.

Se não fosse o árduo trabalho de Fabrice Arfi e de Karl Laske, que publicaram o primeiro artigo em 28 de julho de 2011, com a análise dos documentos Takieddine, antes que a Justiça tomasse nota do assunto, nada disso teria sido documentado, demonstrado, conhecido e – esperamos – debatido no futuro. Porque, numa democracia autêntica, este escândalo imenso teria sido objeto de um debate público incessante. Os meios de comunicação teriam seguido as pistas deixadas por Mediapart, os rivais políticos teriam pedido contas, o Parlamento teria levado a cabo seu papel de controle do Poder Executivo, teria sido criada uma comissão de investigação, teriam sido preparadas conferências públicas, as detenções teriam sido numerosas, etc.

O livro Avec les compliments du Guide – que nos obriga a avaliar as dimensões do caso, se é que ainda fazia falta, desta derrota democrática coletiva – conta que, ao se tratar de fatos de alcance mundial (a guerra de 2011, a queda do regime e a morte do ditador), as democracias britânicas e dos EUA não ficaram de braços cruzados. Graças aos documentos oficiais, telegramas diplomáticos ou informes parlamentares que se fizeram públicos, temos podido conhecer os aspectos mais obscuros da intervenção militar na qual a França mentiu sobre a realidade da urgência humanitária, depois superou alegremente o mandato confiado pela ONU e por último logrou impedir qualquer saída negociada. Tudo isso para surpresa dos aliados.

Qualquer investigação de longa duração é um quebra-cabeça cujas exclusivas mais chamativas amiúde não são senão uma das peças, mais ou menos definitiva que outras, que dá sentido ao tabuleiro de conjunto. A força do livro de Fabrice Arfi e Karl Laske radica no fato de não esquecer nenhuma e, com isso, por tudo em seu lugar.

O leitor, que caminha cronologicamente com os autores, em ocasiões os vê retroceder para deter-se num detalhe que, inicialmente, se lhes havia escapado; os acompanha em suas próprias deduções de um achado a outro; vê como avança a investigação e o quebra-cabeça toma forma como se participasse ele próprio nas investigações de Mediapart. Tudo encaixa progressivamente, tudo acaba por estar vinculado, tudo cobra sentido, tudo passa a ser coerente e claro, num relato límpido e extremadamente pedagógico. Tudo isso formado por uma massa infinita de provas, documentos encontrados, testemunhos recolhidos, escutas judiciais, informes de todo tipo, para não falar do material multimedia (que inclui fotografias, vídeos, sms, etc).

O famoso documento revelado por Mediapart entre as duas voltas das presidenciais de 2012, o acordo líbio de financiamento eleitoral por uma importância de 50 milhões de euros cuja credibilidade já está fora de qualquer dúvida- salvo Sarkozy e os seus – é somente uma peça a mais – aparece no capítulo 30 do livro dos 39 com que conta a obra. Porque Avec les compliments du Guide inclui numerosas revelações novas, que completam as informações já publicadas no Mediapart, às quais o livro de uma perspectiva de conjunto. Isso sim, não vamos revelá-las todas aqui para animar o leitor a descobri-las por conta própria.

Não obstante, há uma revelação que tem mais peso que as outras e que termina de completar o quebra-cabeça em sua parte mais decisiva: o circuito de financiamento e de pagamentos por cima das promessas líbias. De repente, os investigadores – que conseguiram o testemunho de um dos personagens-chave do regime, um homem na sombra refugiado no Egito, Mohamed Ismail – relacionam documentos que estão em sua posse desde 2011, os mesmos que lhes haviam posto atrás da pista líbia, os arquivos de Ziad Takieddine. E escrevem, como Allan Poe em A Carta Roubada: “de fato, a chave do enigma se encontrava ante nossos olhos há anos”. Nesse emaranhado de documentos, havia passado por alto um elemento ou melhor dois: uma empresa e uma transferência. Empresa e transferência que se correspondem exatamente com o circuito descrito por sua fonte líbia…

“No que respeita o financiamento da campanha, parte dos fundos passaram por um banco comercial em Beirut e, daí, a uma conta bancária na Alemanha, vinculada com Ziad. Outras somas passaram por contas bancárias no Panamá e na Suíça”. Pois bem, nos documentos Takiedinne, Fabrice Arfi e Karl Laske deram com uma empresa, registrada nas Ilhas Virgens, Rossfield Ltd., que recebeu uma transferência procedente da Líbia, que tem como origem o Libyan Arab Foreign Bank e que depois passou por um banco líbio, o Intercontinental Bank of Lebanon, que tem como “correspondente bancário” para relações interbancárias internacionais a um banco alemão, o Deutsche Bank de Frankfurt. Exatamente o círculo descrito pela testemunha líbia, sem contar com que, num dos paraísos fiscais mais opacos do mundo (Suíça), Rossfield Ltd tem ao menos três contas bancárias, uma em Maerki Baumann & Co e as outras duas em Blom Bank.

Agora deve ser a Justiça que investiga o financiamento líbio (e outros casos relacionados com Sarkozy), quem tem que chegar até o final de todas as pistas abertas por dois jornalistas que não contam com nenhuma de suas armas para achar a verdade. Não obstante, agora, “o caso está aí, à vista”, tal e como escrevem Fabrice Arfi e Karl Laske no prólogo a esta “história de um sistema de compromissos do Estado e políticos provavelmente inéditos” durante a V República, que também é “um novo episódio da história pós-colonial da França”. Todo o mérito é o dos jornalistas, algo que enche de orgulho coletivo a Mediapart, e que, hoje, por fim recebe o reconhecimento merecido nos jornais que, ontem, duvidavam de nossas revelações.

Avec les compliments du Guide é um testemunho magistral do jornalismo de interesse público em nossas colunas digitais desde 2008 e cujo ideal compartilha qualquer jornalista digno desse nome. Um jornalismo que, desde logo, molesta aqueles que carecem de escrúpulos, aos corruptos, até o ponto de ter que lutar por se impôr. Também, por desgraça, em nosso próprio círculo profissional. No capítulo 38, com um título deliciosamente irônico, Recettes à l’etouffée – jogo de palavras entre recettes, que significa receitas, mas também ingressos; e à l’etouffée, que pode significar estofado, mas também calado, silenciado – Arfi e Laske desvelam os segredos de “certos poderes midiáticos no caso líbio”.

No livro descobrimos sobretudo a censura, em 2014, de Le Point a uma investigação que apoia as revelações de Mediapart, na sequência da chamada telefônica do responsável de imprensa de Nicolas Sarkozy. E lemos, estupefatos, a resposta do diretor do semanário: “Não, se te parece, o tema, nós não o publicamos… Não somos Mediapart, não acusamos as pessoas sem provas. Assim que o que quero dizer é que nós não vamos a manchete: ‘O homem que acusa Nicolas Sarkozy’. […]. Além disso, isso não tem maior importância, francamente; nós não o tratamos como um tema de investigação”.

Pouco a acrescentar.

Fonte: http://www.sinpermiso.info/textos/sarkozy-gadafi-el-affaire-de-los-affaires


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