O arbítrio dos poderosos como marca da conjuntura!

Hoje, mais do que antes, como resultado desse processo desconstituinte, vigora cada vez mais soberano o arbítrio como padrão da dominação de classe no país.

Maycon Bezerra 17 abr 2018, 14:43

A decomposição da institucionalidade da Nova República, imposta pela cúpula da política e do poder burguês com o golpe parlamentar que empossou Temer no governo, expressa a revogação pelos de cima da solução de compromisso expressa na Constituição de 1988 entre as exigências populares e do “interesse público”, de um lado, e o arbítrio da classe dominante e de seus aparatos políticos e militares de poder, de outro. Hoje, mais do que antes, como resultado desse processo desconstituinte, vigora cada vez mais soberano o arbítrio como padrão da dominação de classe no país. Todos aqueles que concentram recursos de poder capazes de garantir a imposição da própria vontade o estão fazendo com mais liberdade.

Por força de lei, hoje o orçamento nacional se encontra monopolizado pelo interesse do parasitismo financeiro – contra os investimentos e os serviços públicos: resultado da “PEC do fim do mundo ou do teto de gastos”. As relações de trabalho se encontram sob o arbítrio da patronal, com a legalização da terceirização irrestrita da mão de obra e o desmonte da legislação trabalhista. Radicaliza-se a superexploração da força de trabalho: coluna vertebral do capitalismo dependente e periférico que avança em um processo acelerado de degeneração neocolonial. A categoria neocolonial não se refere aqui apenas aos vínculos ainda mais subordinados ao capitalismo imperialista global, se refere também aos retrocessos no processo de descolonização da vida social, política e cultural brasileira, que impõe novos obstáculos à integração de nossa sociedade como uma efetiva sociedade nacional formada por um corpo de cidadãos e cidadãs, portadores de equidade civil, o que ainda não pudemos ser, mesmo depois de 518 anos.

O governo e o parlamento, em todos os níveis do poder, estão desmoralizados aos olhos do povo. A apropriação corrupta e mafiosa do Estado por essa lumpenburguesia sendo operada à luz do dia, e a execução de planos que atiram o povo no desemprego, no desamparo e na miséria explicam essa desmoralização. No entanto, seguem as corjas governamentais e parlamentares governando impunes, comprando com dinheiro público o apoio cúmplice e “harmonioso” dos demais poderes. É crime organizado isso que hoje dirige o regime. O sistema de justiça é parte do que adquirem os oligarcas que se assenhoram do Estado brasileiro, mas a ampliação e diversificação de seus quadros faz com que na crise manifeste suas contradições internas. Nesse momento parece estar sendo mais disciplinado, sob uma pressão múltipla vinda de cima, dentre elas, uma nítida influência da cúpula militar. Não se sabe ainda ao certo se encontram-se no Judiciário tendências internas de natureza democrática suficientes para reagir a essa pressão combinada. Funciona, como de regra, contra o povo e a favor dos ricos (salvando-se as honrosas exceções): aplicando ou distorcendo a lei para tanto.

Os aparatos armados, estatais ou não, encontram mais espaço para se movimentar nesse terreno histórico governado pelo arbítrio. Aliás, arbítrio alimenta arbítrio, e se dissemina mais fortemente quando se manifesta de cima pra baixo. Entre os operadores da violência organizada se sentem muito à vontade nesse contexto de afirmação do arbítrio contra qualquer espaço de direitos estão as facções do narcotráfico, filhas legítimas do arbítrio estatal contra o povo, que se capilarizam pelo território nacional, avançam no controle da cadeia de circulação das drogas, movimentam uma poderosa atividade de corrupção do Estado e são parte de um verdadeiro banho de sangue que aterroriza o país, no qual homens negros do povo matam-se uns aos outros.

O paramilitarismo das “milícias” e esquadrões da morte se profissionalizam e enriquecem de modo crescente enquanto se torna ainda mais violento, do mesmo modo que se incorpora ou se alia ao poder institucional. Seu rastro de morte e violência serve a sua tirania – imposta sobre áreas populares inteiras das grandes metrópoles, sobretudo no Rio de Janeiro – e ao terrorismo contra seus opositores. No campo, as organizações paramilitares privadas ligadas ao latifúndio impõem seu terror contra camponeses, quilombolas e povos indígenas. Assim, a violência política se radicaliza pelas mãos dos aparatos armados privados do capital ou daqueles aparatos mafiosos com laços no interior do poder estatal: policial, parlamentar e governamental. Tudo indica que o assassinato da vereadora Marielle Franco é de responsabilidade desse paramilitarismo mafioso, o que demonstra a audácia que o silêncio e a impunidade desse momento de arbítrio, inspiram aos assassinos que transitam entre a superfície e o subterrâneo da política.

Como o Rio de Janeiro é o ponto mais alto da crise geral que abala o país, aqui também a decomposição institucional do regime parece mais profunda. Ao colapso do governo, as forças policiais, sobretudo a PM, respondem com uma dinâmica de autonomização. Os grupos e bandos criminosos estabelecidos no interior dessa instituição são muitas vezes os mesmos que aparecem como “milícias” e grupos de extermínio, semeando arbítrio, terror e violência contra o povo das periferias e favelas. A intervenção federal militar no Rio de Janeiro, articulada por Temer, Pezão e a cúpula militar parece apontar para três objetivos principais: fornecer uma agenda positiva para Temer após a derrota na reforma da previdência; restabelecer para a burguesia o controle sobre a tropa da PM fluminense; e permitir mais um avanço do processo de bonapartização gradual do regime político. Apenas esse último objetivo parece estar sendo cumprido efetivamente até agora.

As movimentações da cúpula militar, sobretudo do Exército, exigem bastante atenção. Desde as jornadas populares de 2013, o Exército iniciou uma relocalização de modo a criar condições mais favoráveis a sua movimentação no teatro de operações da sociedade brasileira. A aprovação da “lei antiterrorista” e o decreto de regulamentação das operações de “garantia de lei e da ordem” foram presentes do governo Dilma no campo legal à ampliação da liberdade de ação do generalato. Com Temer, governo ilegítimo ao qual a cúpula militar brindou apoio, os avanços da caserna foram ainda mais significativos. Não apenas o orçamento militar vem sendo turbinado – em contraposição à asfixia orçamentária imposta ao conjunto dos serviços públicos – como a presença ampliada de generais em postos estratégicos do Executivo federal chama a atenção.

Em primeiro lugar, é importante dar destaque à recriação por Temer do Gabinete de Segurança Institucional da presidência da república, responsável pela área de inteligência do governo. O GSI foi entregue ao general Sergio Etchegoyen, herdeiro de uma linhagem de oficiais reacionários. Etchegoyen vem mostrando ao que veio, desde quando a ABIN, sob sua responsabilidade, espionou o ministro Edson Fachin do STF, que deveria homologar as denúncias da JBS contra Temer; ou quando ordenou que as tropas do Exército assumissem o patrulhamento da Esplanada dos Ministérios no dia 24 de maio de 2017, dia da grande manifestação sindical e popular contra as reformas de Temer. Etchegoyen é ainda íntimo do comandante geral do Exército, general Villas Boas, tendo sido seu segundo em comando na força terrestre. É também muito próximo do filósofo de ultradireita Denis Rosenfield que agora atua como assessor de Temer na relação com a cúpula militar. Ou seja, é bastante razoável afirmar que Etchegoyen representa a cúpula do Exército – no todo ou em parte – no governo Temer e que essa força política está muito longe de possuir um significado republicano e democrático.

Além do GSI, os generais comandam também agora o Ministério da Defesa, algo inédito desde sua criação em 1999. Importante registrar que esse ministério foi criado sob a justificativa de consolidar a subordinação das Forças Armadas ao poder civil. Obviamente, o generalato sempre lidou desconfortavelmente com esse ministério. A reivindicação de um general no ministério da defesa era, no entanto, até poucos anos atrás, uma demanda ousada que não se ouvia muito além dos limites políticos da corporação militar. Hoje, é um fato. Também o recém criado Ministério da Segurança Pública tem um general do Exército no comando efetivo (apesar de ser o segundo na hierarquia formal do ministério), enquanto Raul Jungmann posa para as fotos como titular da pasta. É o que se afirma na imprensa. A FUNAI também está sob o comando de um oficial superior do Exército. A hostilidade reacionária do Exército às reivindicações dos povos indígenas por suas terras faz da FUNAI um posto estratégico do qual se apropriar no Executivo. Por fim, não faz falta mencionar também o significado político de entregar o poder de fato do estado do Rio de Janeiro a um general.

Esse avanço gradativo da cúpula militar sobre o aparelho de Estado parece configurar o que podemos chamar de um processo de bonapartização “lenta, segura e gradual” do regime político. Esse perigoso desenvolvimento da situação do país não é, no entanto, imprevisível. A guerra de classe desencadeada pela oligarquia contra o povo trabalhador, no plano econômico e social, e seu corolário de consequências antipopulares não poderia mesmo prescindir, mais cedo ou mais tarde, de um arranjo repressivo mais duro e de uma reorganização mais autoritária do regime político.

A conjuntura é agitada e complexa; a classe dominante e os aparatos jurídicos, midiáticos, políticos e militares a ela articulados se encontram ainda essencialmente divididos. Há uma crise de direção no andar de cima também. O setor da cúpula militar mais articulado com Temer saúda a Lava Jato diante das câmeras, mas se queixa de um “protagonismo excessivo” do Judiciário, nos bastidores, principalmente através de seus porta-vozes oficiosos. No interior do próprio generalato não parece haver consenso sobre o ritmo, a intensidade e a forma da tutela militar a ser imposta sobre a vida política nacional, ainda que o avanço gradual dessa tutela, em si mesma, já seja uma realidade.

No sistema de justiça os movimentos são contraditórios também, ministros, desembargadores, juízes e procuradores não atuam em um sentido unitário e há bastante ruído nas movimentações dessa corporação: ainda que seja possível perceber os efeitos de uma maior disciplina imposta, certamente por cima e também de fora, ao arroubos mais autonomistas do “ativismo judicial”. Da mesma forma, dos partidos políticos da burguesia não vem qualquer sinal de saída clara e unitária para a classe dominante, as movimentações e ziguezagues apresentam um panorama de incertezas. A crise política, social e econômica na qual o país está mergulhado não tem qualquer perspectiva de solução a curto prazo.

A prisão de Lula, de todo já previsível há algum tempo, parece concluir a movimentação que se iniciou com o golpe parlamentar que destituiu Dilma da presidência. Em meio à divisão dos de cima, um consenso é claro: não há mais espaço para a conciliação de classes nesse momento de recomposição do regime burguês e de reajuste das estruturas do sistema de poder da classe dominante. De seu ponto de vista, é preciso garantir que as eleições nacionais de 2018 ocorram sem a interferência ambígua do lulismo no cenário, para que a reorganização do regime pelo alto possa se dar de modo menos confuso e imprevisível, menos negociado e mais arbitrário.

Nesse contexto, ao arbítrio dos de cima é necessário opor a organização e a mobilização dos de baixo por seus direitos: única força capaz de lhe fazer resistência efetiva. O sentido político dessa mobilização pode, no entanto, favorecer a reorganização das forças democráticas do povo trabalhador ou atrelá-las a um caminho sem qualquer perspectiva de futuro. Por isso, nesse momento, ainda mais importante que a denúncia da manobra reacionária que se expressa na prisão de Lula, é a recusa de se colocar sob a direção política estéril e putrefata do lulismo, à qual a massa do povo não parece conceder mais qualquer entusiasmo ou confiança que não seja o de considerá-lo o “menos pior” entre os que aí estão. A mais ampla unidade de ação contra retrocessos impostos de cima, no plano dos direitos sociais, políticos ou civis – como expressa na greve geral de abril de 2017 – é uma necessidade concreta, assim como a apresentação de um programa e uma política independentes do lulismo que afirme a radical urgência de refundar o país sobre os interesses do povo trabalhador.

No curtíssimo prazo, cabe à esquerda socialista investir mais no seu enraizamento na classe trabalhadora, nas maiorias populares e no movimento de massa, apostando especialmente naquilo de novo que se move. É preciso se preparar para uma luta de longo prazo fortalecendo e ampliando nossas “trincheiras e casamatas”, para usar uma expressão de Gramsci. É preciso avançar na ocupação de espaços no parlamento da burguesia, articulando-se a partir de lá com as lutas e organizações do movimento de massa em prol da construção de uma alternativa política e de poder – democrático revolucionária, descolonial e anticapitalista. É imprescindível aproveitar as brechas que a burguesia (ainda) não nos pode fechar, e investir esforço na disputa de poder no plano subnacional onde isso é possível, como no Rio de Janeiro, por exemplo. Precisamos trabalhar para sermos ”peixes dentro d’água” nos locais de trabalho, estudo e moradia de nosso povo mais oprimido; entre a negritude que ensaia um ascenso poderoso; entre as mulheres que apontam um caminho que parece irreversível de transformação social.

O arbítrio selvagem e suas consequências antissociais são o que a classe dominante e seus aparatos têm a oferecer ao povo brasileiro nessa quadra histórica. Mais uma vez, como é a regra, é do movimento de luta do povo trabalhador que se pode esperar qualquer força civilizatória concreta que reverta a trajetória autodestrutuiva que estamos trilhando como sociedade nesse momento, conduzidos por uma oligarquia mafiosa e antinacional. Aos senhores de toga e de farda que falam em nome de uma nação sem povo ou que, no máximo, pertence a um “povo” que possui fronteiras sociais que terminam nos limites da alta classe média branca, opomos nossa vigorosa negação: não nos representam! Nada sobre nós, sem nós.

É hora de repor no horizonte de nossa gente a única saída possível diante da iniquidade degenerada dos de cima: a afirmação política da necessidade da Revolução Brasileira, a tarefa revolucionária democrática que precisa combinar a conclusão de nossa construção nacional, a ser feita de baixo para cima; a descolonização de nossa sociedade, que a burguesia racista congelou no limite de seus interesses; e a superação do capitalismo dependente, que nos atrela à superexploração do trabalho e à negação de direitos para a maioria. É hora de semear a resistência para colher mais adiante a contraofensiva. Para tanto, visão clara de nossas possibilidades, desafios e riscos. Pensando com Trotsky, a revolução é mesmo impossível até que se torne inevitável, e essa mesma revolução não costuma avançar sem as ameaças da contrarrevolução apresentá-la como uma necessidade inadiável. Foco, firmeza e fé!


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