As barricadas de Maio: 50 anos nessa noite

Há 50 anos, as ruas de Paris ardiam e incendiavam o mundo. Para marcar essa data, a Editora Movimento organizará uma publicação especial e atividades em todo o país.

Israel Dutra e Thiago Aguiar 14 maio 2018, 18:27

As barricadas que foram erguidas nas ruas de Paris, há exatos cinquenta anos, são mais atuais do que nunca. O mundo mudaria para sempre com o levante estudantil, libertário, que arrastou a classe trabalhadora, virou do avesso a estrutura de poder e colocou a hipótese da “imaginação no poder” como algo real. Não apenas no terreno político e econômico, mas também no âmbito cultural e dos costumes, somos herdeiros das revoluções de 1968. E quando se falam em revoluções, podemos afirmar que 1968 não foi apenas originado nos enfrentamentos de rua do Quartier Latin: 1968 foi o primeiro grande encontro da história da humanidade com uma irrupção de caráter planetário, no qual as diferentes pautas e lutas transbordaram, numa ampla convergência de agendas e atores, fazendo da rua seu palco principal.

Recordar as barricadas das primeiras semanas de Maio em Paris é recordar os acontecimentos que sacudiram o mundo naquele longo ano. Foi um período revolucionário em escala internacional. A solidariedade dos jovens do mundo com a luta anti-imperialista do Vietnã, na ofensiva do Tet em janeiro de 1968; a primavera política antiburocrática que lutou nas ruas de Praga; a perspectiva de uma radicalização na chamada revolução cultural chinesa; a entrada em cena da juventude paquistanesa; a luta e resistência mexicana, quando da realização das olímpiadas nesse país e a brutal repressão do regime; o ápice do movimento antimilitarista nos Estados Unidos.

O Brasil também foi parte do “ano que não terminou”. A luta contra a ditadura teve no ano de 1968 o auge da retomada do movimento estudantil, com manifestações multitudinárias nas capitais, com ampla participação da intelectualidade e ecos nas lutas operárias de regiões inteiras como Osasco e Contagem.

Na semana em que o relatório revelado por fontes da CIA denunciam o papel da cúpula militar no assassinato político de opositores durante os governos Geisel e Médici, chocando a sociedade brasileira com fatos que desmentem por completo os defensores e saudosistas da ditadura, discutir o ano de 1968 é mais do que uma obrigação. A luta pela memória é uma das mais importantes na atualidade.

Os governos de todos continentes têm-se esforçado para ajustar mais contra a classe trabalhadora e a juventude. Está em curso uma verdadeira operação para desmontar as conquistas operárias e populares do século XX. Essa realidade – sob a forma de “reformas” como as da previdência, das leis do trabalho e do acesso à universidade – coloca em movimento, outra vez, contingentes importantes de trabalhadores em resistência, como estamos vendo nos Estados Unidos, na Ásia, na América Central e especialmente na própria França.

Para a burguesia e seus editorialistas, apagar ou reduzir a memória de 1968 é uma questão premente. Não poucos foram os “especiais” que os grandes jornais dedicaram aos 50 anos da luta das barricadas. Parte deles seguindo o mantra liberal de que é uma página virada, típica de um arrobo juvenil que ficou pra trás no retrovisor da história. Nada mais falso.

Quando novas barricadas começam a se levantar na França, a memória dos insurretos de 1968 é presente como a dos comunardos de 1871 foi para as gerações que viveram o século XX.

Uma irrupção que mudou o mundo

A prisão de estudantes que protestavam contra a guerra do Vietnã causou conflitos em várias universidades da França, culminando no movimento geral de 22 de março. Os protestos começariam na Universidade de Nanterre. A repressão dos corpos policiais, longe de aplastar o movimento como queria o governo, apenas incendiaram ainda mais o ambiente. A juventude francesa, depois de anos de crescimento econômico, com uma vanguarda forjada no sentimento anticolonialista da luta contra o seu próprio imperialismo na guerra da Argélia, havia despertado e sentia-se forte. Quase invencível.

Na noite do dia 10 para o dia 11 de maio, o famoso “salto de qualidade” se consuma. A entrada em cena das barricadas colocaria o problema do poder em poucos dias, transformando a irrupção juvenil numa crise de poder. Como descreve Bensaïd, a questão das barricadas:

“Politicamente, era uma ideia magnifica. Para o proletariado francês era um símbolo cheio de reminiscências e ressuscitava todo um passado de luta que enche de nostalgia os operários. Evoca os espectros de 1848 e da Comuna, o mito da greve geral insurrecional e da ação direta, todas as façanhas da classe operária francesa, solidamente afincadas na sua consciência coletiva e intimamente vivas na sua memória”.

Em poucos dias, a luta estudantil arrastaria, contra as direções do PC e das centrais sindicais majoritárias, a classe trabalhadora para a maior greve geral da história da França. A eclosão da unidade entre os estudantes e a classe operária faz o poder tremer em todo país. Por alguns dias, com a auto-organização via comitês de ação, fábricas, assembleias estudantis e zonais, se espalha como um rastilho de pólvora. A burocracia stalinista somada às forças do status quo aceitam pactuar com o governo. De Gaulle sai das cordas para restaurar a normalidade, oferecendo “diálogo nacional” para coesionar sua base social, onde acaba desativando a luta aguda pelo poder, vencendo o plebiscito convocado para legitimar os marcos do “acordo”.

A “irrupção”, como definiu Lefebvre, foi o ponto alto de um ano movimentado. O caráter convergente e mundial, que fez de 1968 uma onda realmente abrangente, levou à combinação das tarefas anti-imperialistas e anticoloniais com a luta contra a própria burocracia soviética (a qual, por meio do pacto de não agressão, mantinha seu controle com a política do Kremlin de coexistência pacífica com o imperialismo norte-americano).

De Hanói a Praga, pode-se afirmar que o ano de 1968 foi uma primavera política. Levou longe a solidariedade internacionalista, como se notava em Londres ou Paris, quando os jovens desfilavam com retratos de Che Guevara e cantando Ho Chi Min! A extraordinária luta da juventude e da classe trabalhadora da Checoslováquia para defender reformas democráticas, com vistas a radicalizar o regime, na fórmula de “socialismo com rosto humano”, foi afogada em sangue para entrada dos tanques soviéticos e a prisão do líder dissidente Alexander Dubcek. Nos Estados Unidos, a luta por direitos civis, na ampla campanha universitária contra a guerra do Vietnã, sofreu um revés com o assassinato do líder negro e pacifista Martin Luther King. México, Paquistão, África, Itália, além do Cordobazo do ano seguinte, foram capítulos determinantes na história de 68.

Os que afirmam as conquistas de 1968 apenas no terreno da subjetividade esquecem da dialética entre a ação da cabeça e dos pés. A enorme onda de indignação desativou as travas burocráticas que o movimento de massas estava submetido desde o pós-guerra. Essa energia liberada proporcionou um encontro entre as pautas democráticas, a luta pela libertação sexual, a defesa da ecologia, o novo ativismo, novos padrões artísticos que moldariam uma nova agenda, inclusive para o campo da esquerda e progressista. Essa enorme conquista só foi possível pela irrupção da juventude abrindo caminhos para novas formas de subjetividade e expressão societária.

O “nosso” 1968

O Brasil viveu em 1968 o auge da resistência do movimento estudantil contra a ditadura. Quatro anos após o golpe civil militar de 1964, a reorganização da luta nas universidades era uma realidade, tanto contra a precarização do ensino e a denúncia dos acordos do Brasil com Estados Unidos para orientar o ensino superior (acordos MEC-USAID) quanto pela luta mais geral contra a ditadura.

O assassinato do estudante paraense Edson Luís, numa manifestação por melhorias no restaurante estudantil Calabouço do Rio de Janeiro, desatou uma onda nacional de protestos. O dia 28 de março de 1968 entraria para a história registrando a morte do mais conhecido mártir do movimento estudantil.

O ano seguiu com lutas e enfrentamentos, como a batalha da Rua Maria Antônia em São Paulo, no antigo campus da USP. A radicalização do ato do 1º de maio na Praça da Sé, onde foi queimado o palanque como forma de protesto contra a ditadura. E a grande passeata dos cem mil nas ruas do Rio de Janeiro, além de lutas expressivas em Belo Horizonte, Salvador, Brasília, Porto Alegre, em uma crescente de protestos. A prisão de centenas de ativistas durante o congresso da UNE em Ibiúna representou a ofensiva dos militares contra o movimento estudantil. O ano teria seu trágico desfecho com a instalação do AI-5 em dezembro, fechando ainda mais o regime e intensificando a política de terror de Estado.

Devemos honrar o heroísmo dos jovens de 1968, que lutaram em condições adversas para derrotar a ditadura. E devemos combater sem tréguas as posições que relativizam o caráter assassino e reacionário da ditadura brasileira. A revelação dos documentos que imputa a responsabilidade pela morte de centenas de opositores aos generais que foram presidentes, como Emilio Médici e Ernesto Geisel, é um novo capitulo nessa disputa.

Aos cinquenta anos do 68 brasileiro, as tarefas democráticas – retomada da Comissão da Verdade e da Memória, revogação da Lei da Anistia, punição aos responsáveis e remoção dos entulhos militares que ainda persistem no regime brasileiro – precisam ser impulsionadas pela sociedade. Não podemos esquecer. Para isso, também devemos enfrentar e desmoralizar com força seus herdeiros, como Bolsonaro, que tentam levantar a cabeça.

50 anos das revoluções de 68 – O início de uma luta prolongada: lançamento da Editora Movimento

Para manter viva a memória e estimular o debate estamos lançando uma série de iniciativas sobre os 50 anos do maio de 1968. A principal delas é o livro 50 anos das revoluções de 68 – O início de uma luta prolongada, editado como um especial da Revista Movimento (n.9), que estará à disposição de nossos leitores nas próximas semanas. Nele, resgatamos análises consagradas destes acontecimentos, artigos inéditos produzidos para o livro, bem como duas entrevistas exclusivas, com Alain Krivine sobre o 68 francês e Vladimir Palmeira sobre as lutas de 68 no Brasil. Um panorama sobre o ano que mudou o mundo passará também pelos Estados Unidos, pela Primavera de Praga, Vietnã e América Latina. Além dos entrevistados, estarão em nosso volume autores como Catherine Samary, Daniel Bensaïd e Henri Weber, Ernest Mandel, Fernanda Melchionna, Luciana Genro, Max Elbaum, Paul Street, Pedro Fuentes, Pierre Rousset, Roberto Robaina, bem como os autores deste editorial como organizadores do volume.

Por meio deste volume que nossa editora disponibilizará à militância brasileira, pretendemos organizar debates e atos de lançamento por todo o país. A radicalidade é mais atual do que nunca. Afinal de contas, como dizia um famoso slogan da época, 1968 foi apenas o começo de uma luta prolongada.


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