Karl Marx e O Capital: O detetive que queria decifrar a suprema intriga

O livro não era fácil. Nem para os filósofos, nem para os economistas, que tinham que sofrer a crítica à sua submissão ideológica e demais conceitos filosóficos

Francisco Louçã 5 maio 2018, 13:01

Diz-se que o frio varria o cemitério de Highgate, em Londres, naquele 17 de março de 1883, quando onze pessoas se despediram de Karl Marx, que morrera subitamente três dias antes, na sua cadeira de balouço, tinha 65 anos. Estavam Friedrich Engels, o velho amigo com quem partilhara mais de quarenta anos de aventuras intelectuais e políticas, a suas filhas Laura e Eleanor, os seus genros, Longuet e Lafargue, Wilhelm Liebknecht, fundador da social-democracia alemã, dois veteranos da antiga Liga dos Comunistas e ainda dois destacados cientistas da Academia Real, o químico Schorlemmer e um discípulo de Darwin politicamente conservador, o zoologista Lankester, eram tão poucos.

Dezoito anos antes, na morte de Pierre-Joseph Proudhon, em tempos tão próximo e mais tarde seu adversário, tinha-se juntado uma multidão em Paris, houve mesmo um regimento que se apresentou de espadas desembainhadas para prestar homenagem ao agitador e ex-deputado, provocando primeiro um tremor de suspeita e logo de emoção. A memória de Proudhon, anarquista panfletário mas um moderado na sua idade mais avançada, desvanecera-se entretanto à medida que outros heróis ocupavam o seu Olimpo.

E quanto a Marx, já estaria então fora do seu tempo? Ele era um homem pós-napoleónico, nascera pouco depois de Waterloo, assistira à instauração da nova ordem europeia mas também às grandes revoluções – 1830, a queda dos Bourbons, 1848, a primavera dos povos, 1871, a Comuna de Paris -, vivera os ciclópicos debates filosóficos que foram a herança de Hegel, acompanhara a Revolução Industrial, a emergência dos Estados Unidos com a sua guerra civil e o fim da escravatura, correspondera-se com Darwin e com Lincoln. Mas fora sempre um revolucionário irredutível, um polemista assanhado e uma mente inquieta, de poucos aliados. No continente europeu, da Alemanha à Rússia, grande parte da social-democracia seguia as suas palavras, mas esses militantes estavam longe e, em regra, na clandestinidade, perseguidos por Bismarck e pelo czar. E tinha tido tantos conflitos com alguns dos dirigentes alemães que o partido decidiu não publicar integralmente as cartas então trocadas (só seriam conhecidas trinta anos depois da morte de Marx). Em todo o caso, em Inglaterra eram poucos os que o acompanharam nos seus últimos anos. Da família, uma vida de sofrimento, não restava ninguém senão quem estava no cemitério: a sua mulher, Jenny, tinha morrido dois anos antes, a sua filha Jenny Caroline semanas antes, dois outros filhos e duas filhas não tinham sobrevivido aos seus primeiros anos.

No final da sua vida, com a publicação do primeiro livro de O Capital, Marx começara a ganhar um modesto estatuto de referência intelectual (e política, como se verá). O livro já ia na segunda edição alemã e fora publicada a tradução francesa, era somente o início da sua difusão e faltavam ainda os outros volumes prometidos. É sobre esse percurso intelectual e como leva à publicação de O Capital que versam as páginas que se seguem.

Esse caminho tem sido muito discutido. Como seria de esperar, o ciclo de efemérides – em outubro de 2017 passaram 150 anos da publicação de O Capital; em fevereiro deste ano, os 170 anos da publicação do Manifesto Comunista; a 5 de maio de 2018, serão cumpridos duzentos anos do nascimento de Marx – mobilizou biografias de todos os tipos, estudos monumentais, críticas ferozes e louvações. Gareth Stedman Jones, um historiador da Universidade de Londres, publicou em 2016 uma biografia crítica, Marx, Grandeza e Ilusão. Isaiah Berlin, que formatou há décadas a versão de tipo Guerra Fria sobre Marx, é reeditado e acarinhado pelo neoliberalismo triunfante, mas é precisamente entre os seus que a perplexidade se instala: o Economist regista que “Marx tem muito a ensinar aos políticos de hoje” e o vetusto Financial Times explica aos leitores atónitos “por que é que Marx tem razão”. Mais cordato, o New Yorker anuncia: “Ele está de volta” e dá voz a Thomas Piketty, “os economistas de hoje fariam bem em inspirar-se no seu exemplo”.

Mas qual é mesmo o “exemplo”? Um filósofo subversivo? Um economista que desenvolveu a “crítica da economia política”, o subtítulo do livro? Um historiador fascinado pelas possibilidades desconhecidas? Um detetive da modernidade que procurou “decifrar a suprema intriga”, o que Paul Ricoeur viria a afirmar ser impossível?

O Mouro

Karl Marx nasceu a 5 de maio de 1818 em Trèves, na Alemanha, numa linhagem de rabinos, embora o pai se tivesse distanciado dos seus ancestrais: Heinrich era advogado, luterano por conveniência profissional, liberal, iluminista, um homem moderno do seu tempo. Família de classe média, dir-se-ia hoje, o que não a poupou às provações: quatro irmãos de Karl morreram de tuberculose. Com o pai, o jovem Karl teve sempre uma relação difícil, porventura só moderada pela distância a que os estudos o levaram, primeiro a Bona e depois a Berlim. Escreve-lhe Heinrich em fevereiro de 1837, tem o jovem Karl 19 anos e estuda literatura e filosofia em Bona: “O teu coração está manifestamente dominado por uma potência demoníaca que é rara entre os homens. O génio que te habita é de natureza celestial ou faustiana? Será que poderás algum dia espalhar felicidade entre o círculo dos teus próximos?” Tremenda interrogação: celestial ou faustiana, de que tentação se alimenta o teu génio? Nem sabe que o filho, que abandonou o curso sobre jurisprudência, se dedica a uma novela, Escorpião e Felix (que abria com um debate com Hegel), e a um drama, que ficarão ambos inéditos, mas sobretudo aos clubes dos jovens hegelianos de esquerda, onde aprende a militância e faz campanha contra as leis que punem os camponeses que procuram lenha nas florestas da Prússia. E lê os heterodoxos: Leibniz (um amigo ofereceu-lhe dois pedaços de uma tapeçaria de Leibniz quando a sua casa foi demolida), Espinosa, o judeu expulso da sua comunidade em Amesterdão, e sobretudo os contemporâneos, intérpretes da filosofia idealista alemã, a que mais o marca.

O jovem Karl estava noivo desde os 18 anos de Bertha Julia Jenny von Westphalen, filha de aristocratas e quatro anos mais velha. Casarão após sete anos de namoro e de muitos poemas de amor que lhe vai escrevendo o pretendente. Concluiu entretanto a sua tese de doutoramento em Iena sobre a filosofia da natureza em Epicuro e Demócrito, tem 23 anos. E, no ano seguinte, começa a escrever, na verdade começa a viver na Reinische Zeitung (Gazeta Renana), uma publicação que desafia a censura na cidade de Colónia. Um ano mais, é o casamento com Jenny, em junho de 1843, mas em outubro o casal já está exilado em Paris, perseguido pelas autoridades prussianas que fecharam a Gazeta, a ordens do rei (Ferdinand, irmão de Jenny, é um alto funcionário do governo e será mais tarde ministro do interior da Prússia, mas não se move contra a vontade de sua majestade). O correspondente da Gazetaem Paris, Moses Hesse, filho de um rabino, que tinha apresentado a Engels a ideia comunista e vivia no centro do florescimento das ideias revolucionárias na Europa, conhecia toda a gente, mas ficou impressionado com o jovem redator: “Imagina Rousseau, Voltaire, Holbach, Lessing, Heine e Hegel fundidos num mesmo personagem – e terás o Dr. Marx”. Tudo escritores. Marx, orador sofrível segundo os seus contemporâneos, pena brilhante, iria fazer a sua vida pela escrita, ora publicista, ora difícil, polémica, inventiva.

Eram anos de tantos perigos, mas também de ebulição e promessa. Proudhon publicara em 1840 O que é a Propriedade?, um panfleto que o estabeleceu como uma referência da insurgência francesa. No mesmo ano, Étienne Cabet, que também fora deputado e que cultivava a utopia, publica a Viagem a Icária e inventa o termo comunismo. Flora Tristan, precursora do feminismo e avó do pintor Gauguin, já publicara As Peregrinações de uma Pária(1837) e viria a escrever A União dos Operários (1843). Robert Owen criava as suas comunidades ideais, admiradas e visitadas por gente tão surpreendente quanto o futuro czar Nicolau. Charles Dickens acabara de publicar os seus folhetins Oliver Twist e Nicholas Nickleby, em que criticava acidamente a sociedade vitoriana, e estava a terminar o Conto de Natal, a moral da história da ganância. A política namorava as letras mas cavalgava as ideias e a revolução de 1848 estava a chegar.

Marx vai para os 26 anos, tem um mundo a conquistar e está em Paris. Levava estudos em filosofia e uma potente rebeldia, mas faltavam-lhe conhecimentos sobre economia e queria dedicar-se-lhe; lançou-se por isso à leitura e anotação minuciosa de alguns economistas clássicos, Smith, Ricardo, Say, Mill, Sismondi, acrescentando-lhes as suas inquietações. Seguia a pista de Hegel, que lera Adam Smith, o fundador da economia moderna, mas interessava-lhe mais a fábrica de alfinetes, o exemplo de produção moderna com que Smith abre o seu livro, Inquérito sobre a Riqueza das Nações, do que as deambulações do espírito, que o filósofo alemão procurava mapear.

Modestamente instalados com um casal de amigos na Rua Vaneau, entre a Praça dos Inválidos e o Jardim do Luxemburgo, os Marx entusiasmam-se com a efervescência política de Paris. Karl ocupou o seu tempo a conspirar (assinava algumas cartas como “Monsieur Ramboz”, para iludir a polícia), a coeditar uma revista radical, mas sobretudo a ler. Leu imenso e as notas que disso resultaram ficaram conhecidas como os Manuscritos de Paris ou Manuscritos Económico-Filosóficos (1844). Elas demonstram que, antes de investigar a mercadoria como núcleo do funcionamento da economia e de se abalançar ao Capital, que só publicará 23 anos depois, Marx descobriu que é a economia que produz o trabalho, pois é a relação social que estabelece o lugar do trabalho.

Ele lê e instala a família, querem viver em Paris. Entre os seus, é carinhosamente tratado por Mouro, embora por vezes também lhe chamem Máquina a vapor e ele próprio assine cartas como Old Nick. Volta a encontrar-se com Engels, dois anos mais novo, com quem já se cruzara na Gazeta numa reunião fria. Em agosto de 1844, o segundo encontro é no Café de la Régence e serão dez dias de conversa, de cigarros e vinho, de deambulações pela cidade, de discussão sem bússola, descobre a sua proximidade daquele a quem chamará o General, pelo seu interesse pelas coisas militares e pela sua experiência num regimento de artilharia, esse homem do “riso eterno”, dele dirá o futuro genro de Marx, Paul Lafargue. E estuda economia.

Descobrir o valor do trabalho em Paris

O trabalho é o enigma da modernidade, assim pensavam os filósofos e economistas que procuravam perceber a tempestuosa emergência do capitalismo: olhamos para ele, sabemos dele, mas é tão difícil decifrá-lo. Em todo o caso, ao longo do século XIX, enquanto a Revolução Industrial se estendia e os Estados se definiam nos escombros das revoluções, das guerras e dos impérios, poucos desdenhariam do amplo consenso que atribuía ao trabalho – mas não ao trabalhador, já lá se chegará – o papel de guia na transformação do nosso mundo. Em contrapartida, como é que o trabalho produz valor, essa interrogação não tinha uma resposta única e, no entanto, era essencial. Marx dedicou-se a responder a tal questão e esse foi o caminho que escolheu para a sua obra conclusiva, O Capital.

Um dos pais do liberalismo clássico, John Locke, escrevia de modo categórico no seuSegundo Tratado sobre o Governo Civil, ainda sobre o campo e não sobre a indústria: “É o trabalho, portanto, que atribui a maior parte do valor à terra, sem o qual ela dificilmente valeria alguma coisa; é a ele que devemos a maior parte de todos os produtos úteis da terra; por tudo isso a palha, farelo e pão desse acre de trigo valem mais do que o produto de um acre de uma terra igualmente boa, mas abandonada, sendo o valor daquele o efeito do trabalho”. O trabalho acrescenta valor, portanto; tem um “efeito”. Mas como é que cria o valor?

Quase um século depois, Adam Smith dava uma resposta a essa pergunta no seu Inquérito, já no dealbar da Revolução Industrial: “Não é com o ouro ou com o dinheiro, é com o trabalho que todas as riquezas do mundo foram originariamente compradas, e o seu valor para os que as possuem e que procuram trocá-las por novos produtos é precisamente igual à quantidade de trabalho que permitem comprar ou encomendar”. Para Smith, o trabalho não só aumenta o valor, ele é a origem de “todas as riquezas do mundo” e a sua medida.

Mas Marx, filósofo encartado, antes de chegar a Paris e de se dedicar à biblioteca da economia não conhecia esta intuição sobre o trabalho como o alicerce da sociedade e não sabia resolver a sua perplexidade sobre o valor do trabalho na criação do valor. Aliás, foi preciso continuar a sua indagação para propor uma teoria: em Paris, em 1844, ainda explorava a noção do trabalho como o criador do valor, tese que só vem a afirmar dois anos depois, no seu livro A Ideologia Alemã, escrito em parceria com Engels. E que importava, ninguém soube de nada, este livro não teve editor, tal como os Manuscritos, só viriam a ser publicados em 1932 e 1933.

A alienação, a forma moderna do trabalho

Foi nesse texto de 1844 que Marx discutiu pela primeira vez de forma sistemática o seu conceito de alienação. Quis o destino que este livro só viesse a ser conhecido já no fim do primeiro terço do século XX e, na verdade, quando um “marxismo ortodoxo” se instalara sob a batuta de Estaline e da obediente Academia de Ciências da URSS, para a qual a crítica da alienação não fazia parte do acervo tolerável. Ora, o capital não pode ser compreendido sem a alienação que suporta o seu poder.

No primeiro capítulo de O Capital, escrito mais de vinte anos depois dos Manuscritos, Marx apresentou por isso o conceito de “fetichismo da mercadoria”, ou seja, identificou a transferência imaginária de características humanas para a mercadoria. Com esta transferência, as relações sociais expressas na produção apresentam-se como relações entre coisas. Ora, o conceito de “fetichismo” é inseparável da resposta para a pergunta: em que circunstâncias é que os trabalhadores aceitam o processo que os explora e que coisifica a sua atividade? Essa explicação é a alienação do trabalho e constitui portanto a essência da crítica do capitalismo como sistema económico e social. Esse trabalho preparatório de O Capitalcomeçou em Paris, com a crítica da subjugação do trabalho.

Os Manuscritos de Paris explicam a alienação como uma característica da produção generalizada de mercadorias. Como o processo produtivo gera o poder e a acumulação de capital, leva à perda de controlo do trabalhador sobre a produção e sobre o produto do seu próprio trabalho. Nesse sentido, a perda de autonomia do trabalhador no processo produtivo corresponde a uma socialização intensa, mas sob a forma da captura pelo capital.

Marx perguntava e respondia nos Manuscritos: “No que consiste, então, a alienação do trabalho? Primeiro, no facto de que o trabalho é exterior ao trabalhador, isto é, não pertence à sua natureza, que não se realiza no seu trabalho, que se nega nele, que não se sente à vontade, antes se sente infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física ou mental que seja livre, mas antes que se mortifica e arruína o seu espírito. O trabalhador, assim, só é ele próprio quando não trabalha, e no seu trabalho sente-se fora de si próprio. O seu trabalho, por isso, não é voluntário, mas forçado. Não é a satisfação de uma necessidade, mas somente uma forma de gratificar a necessidade de outrem”. Então, a alienação resulta da forma da produção mercantil sob o capitalismo, em que o trabalhador “se sente fora de si próprio”.

Para esta análise da alienação, Marx inspirava-se no livro recente de um filósofo alemão, Ludwig Feuerbach, catorze anos mais velho, A Essência do Cristianismo (1841). Afinal, as suas leituras de filosofia inspiraram sempre a sua economia. A Essência argumentava que a ideia de Deus se tinha assenhoreado das características dos seres humanos. Essa apropriação de especificidades humanas, que passavam a ser representadas num ente mítico, define a substância da perda, essa perda é a alienação. Marx estendeu esta ideia ao capitalismo moderno: do mesmo modo que a transposição das qualidades humanas num ser mítico gera a imagem de Deus, também o capitalismo oculta a contradição entre a produção social, pelo trabalho, e a apropriação privada da mercadoria, pelo capital, criando um mito conformista que submete e aliena a sociedade. A mercadoria, que parece valer por si própria, seria então a divindade moderna, confiscando as características humanas. O trabalho produz coisas que se opõem e que dominam os seus produtores e o mito reforça essa perda: a naturalização e até a personificação dos mercados financeiros, conjugados nos seus humores, apresentados como a força prometeica de um criador supremo, não é a evidência contemporânea dessa alienação?

Assim, a alienação é a negação da individualidade, escreve Marx: “Suponhamos que produzimos como seres humanos [não alienados]. Cada um de nós ter-se-ia afirmado de duas formas: (1) na minha produção teria objetivado a minha individualidade, o seu caráter específico, e portanto apreciado não somente a manifestação individual da minha vida na atividade, mas também ao contemplar o objeto teria o prazer individual de reconhecer que a minha personalidade é objetiva, visível para os sentidos e portanto um poder acima de dúvida, (2) no seu uso do meu produto teria um prazer direto pelo facto de estar consciente de ter satisfeito uma necessidade humana com o meu trabalho, ou seja, de ter objetivado a natureza essencial do ser humano (…). Os nossos produtos seriam outros tantos espelhos em que se refletiria a nossa natureza essencial”. Ora, é precisamente o que a produção capitalista recusa, ao submeter o trabalho à máquina de valorização do capital. A alienação que define o trabalho é a perda da “natureza essencial” do trabalhador. O trabalhador destrói-se pelo trabalho explorado: trabalhamos mais para sermos mais subordinados, a lógica divina do capital é essa. A alienação, portanto, é a condição da submissão do trabalho.

Marx discutiu ainda outras consequências da alienação, e algumas têm uma importância crucial para os debates de hoje, como a perceção de que o trabalho submetido à produção de mercadorias para rentabilizar o capital é destruidor da Natureza e impõe uma relação instrumental e predatória dos seres humanos com o seu ambiente. E conclui que o estado da civilização se mede pelas relações entre o homem e a mulher, descobrindo outra forma de alienação mais antiga.

Alienado, é o trabalho que produz

A questão essencial, a intriga, é então a determinação da origem do valor. De onde vem e quem se apropria da produção humana?

Questiona Marx: “Como os valores de troca das mercadorias não passam de funções sociais delas, e nada têm a ver com suas propriedades naturais, devemos antes de mais nada perguntar: Qual é a substância social comum a todas as mercadorias?”. E responde numa página de Salário, Preço e Lucro (um relatório apresentado em 1865 aos seus camaradas numa reunião da 1ª Internacional, mas também só publicado depois da sua morte): “É o trabalho. Para produzir uma mercadoria, tem-se que investir nela, ou nela incorporar uma determinada quantidade de trabalho. E não simplesmente trabalho, mas trabalho social. Aquele que produz um objeto para seu uso pessoal e direto, para o consumir, cria um produto, mas não uma mercadoria. Como produtor que se mantém a si próprio, nada o relaciona com a sociedade. Mas, para produzir uma mercadoria, não só tem que criar um produto que satisfaça a uma necessidade social qualquer, como também o trabalho nele incorporado deverá representar uma parte integrante da soma global de trabalho invertido pela sociedade. Tem que estar subordinado à divisão de trabalho dentro da sociedade”. É o trabalho a origem das mercadorias e da acumulação de capital, e portanto da estrutura da sociedade capitalista moderna.

Quem é então o trabalhador? Responde Engels quarenta anos depois da publicação do Manifesto, numa reedição de 1888, tinha Marx morrido há cinco anos: “Entende-se por proletários a classe de trabalhadores assalariados modernos que, não possuindo meios de produção próprios, dependem, para viver, da venda da sua força de trabalho.” São portanto os homens e mulheres que vivem do seu trabalho, todos.

Essa é a questão da modernidade: o trabalho é a criação de valor, o centro do processo produtivo, mas é trabalho alienado, estranhado de si próprio, porque produz um mundo de mercadorias que se opõe ao próprio trabalhador enquanto produtor e consumidor. Este retrato, no entanto, exibe um paradoxo, pois define o trabalho pela sua negação, pela sua subjugação. E multiplica-se, a vertiginosa acumulação de capital aumenta o número de pessoas que vivem do seu trabalho subordinado. É preciso passar da antropologia para a história e da história para a estratégia para buscar respostas a este enigma, ou para descortinar por que é que a enorme expansão do trabalho ao longo destes dois séculos é subjugada pelo crescimento do mundo das mercadorias, ou ainda porque é que o trabalho, que tudo produz, ainda não é nada. Esse é o enigma de todos os enigmas, a suprema intriga, e, em Paris, Marx descobriu a primeira pista.

Itinerância fugitiva de Paris a Bruxelas e a Londres

Mas Paris dura pouco. Detetado pela polícia, Marx é expulso, vai viver para Bruxelas no início de 1845, ainda não completou 27 anos, já a família tinha sido acrescentada pela primeira filha e Jenny estava grávida da segunda. Descobre rapidamente os círculos revolucionários dos operários e dos exilados na Bélgica e a clandestina Liga dos Justos, que se virá a transformar na Liga Comunista, para quem Marx e Engels escrevem, em dois meses, o Manifesto Comunista, terminado em janeiro de 1848 e publicado pouco depois. Viajara a Londres, entretanto, para conhecer o movimento cartista, uma frente de trabalhadores empenhados no sufrágio universal e na democratização, e para o congresso de 1847 da Liga, que muda o seu lema de “todos os homens são irmãos” para “proletários de todo o mundo, uni-vos”. Marx foi ouvido, mas por poucos: o Manifesto Comunista tem uma escassa tiragem de centenas de exemplares.

Viviam-se então as jornadas heroicas de 1848, o tempo da revolução europeia, uma tempestade de liberdade percorria o continente, a que os dois escritores, com entusiasmado otimismo, chamaram o “espectro do comunismo”. Sicília, Itália, Dinamarca, Holanda, Hungria, Polónia, Suíça, o mapa europeu é esta “primavera dos povos”. A servidão é abolida no Império Austro-Húngaro, a monarquia é derrubada em França (mas Luís Napoleão ganha as eleições e restaurará o Império poucos anos depois). Na sua novela Uma Educação Sentimental, Flaubert põe na boca de um personagem o excessivo entusiasmo da época: “Está tudo ótimo! O povo está a vencer! Os operários e as classes médias caem nos braços uns dos outros! Ah, se tivesses visto o que eu vi! Como isto é magnífico!… A República foi proclamada e toda a gente vai ser feliz! Não percebes que não haverá mais reis? Todo o mundo será livre, absolutamente livre!”.

Marx, que entretanto publicara em francês um livro contra Proudhon, surpreendentemente passando a censura (1847), dedica-se a esta revolução. Mas as autoridades de Bruxelas assustam-se: é acusado de ter usado a magra herança do seu pai para apoiar e armar os operários belgas que queriam seguir o exemplo parisiense. A polícia belga prende Karl e Jenny e, ao fim de uns dias de cárcere, expulsa-os.

Voltam então a Paris, onde se instala a direção da Liga dos Comunistas. Por pouco tempo, o dinheiro da herança serve para um propósito mais ambicioso: publicar um jornal diário em Colónia, o Neue Rheinische Zeitung. Marx voltou assim à sua terra, por pouco tempo, sucedem-se os processos em tribunal e uma mudança de governo com a recuperação dos mais conservadores determina a proibição do jornal ao fim de um ano. Os Marx voltam a fazer as malas, regressam a Paris, são expulsos mais uma vez e, no verão de 1849, vão para Londres, levam três filhos e uma por nascer. Pensavam voltar, era para ser uma estadia curta, foi para toda a vida.

Instalam-se em Leicester Square, depois mudam para o Soho, vivem em “permanente estado de sítio” em casa, à míngua, num bairro onde há uma epidemia de cólera. Mudam para Chelsea e são despejados, não pagaram a renda. Nasceram mais filhos: Edgar, o catraio que era a alegria da casa, que morre com oito anos, Henry, que não resiste ao primeiro ano, Franziska, que morre também com um ano e para cujo caixão têm de pedir dinheiro emprestado, e finalmente Eleanor, ou Tussy, a filha mais querida, a quem Karl deixará mais tarde a sua magra herança, 250 libras. Um espião da polícia prussiana insinua-se nesses primeiros anos de Londres junto da família, visita-os na sua casa em 1852 e deixa-se impressionar: Marx é “o homem mais gentil e suave”. Suave, mas muito pobre, dirá depois que “raramente alguém escreveu sobre o dinheiro com tanta falta dele”. Festeja quando ganha 400 libras numa especulação com fundos americanos, “uma pequena extorsão ao inimigo”. Se não fosse Engels, a família passava fome.

Em 1856 Jenny recebe uma pequena herança, mudam para Grafton Terrace, oito anos depois para Maitland Road, é uma casa mais confortável, mas nunca há dinheiro. Durante dez anos a vida melhora: entre 1852 e 1862 Karl escreve 487 artigos para o New York Daily Tribune, então o jornal com maior circulação no mundo, duzentos mil exemplares. Escreve também os seus primeiros livros sobre as revoluções francesas: uma série de artigos em 1850, para o Neue Rheinische Zeitung, já transformado em revista publicada em Londres pelo próprio Marx, que serão A Luta de Classes em França 1848-1850 e, logo de seguida, para uma outra revista alemã o 18 Brumário de Luís Bonaparte, sobre as lições políticas dos acontecimentos recentes. Esforço inglório, não são traduzidos para francês, ninguém os lê do outro lado do Canal. O que mais o ocupa, no entanto, é mesmo o estudo.

Frequenta o Museu Britânico, a melhor biblioteca de Londres, onde pode ler tudo, mas também se dedica, por pouco tempo, a aulas de esgrima perto de Oxford Street, na sede dos exilados partidários de Auguste Blanqui, mais tarde eleito presidente da Comuna de Paris. Parece que Karl explicava com humor que esperava uma nova viragem na sorte da revolução europeia. O que ficou não foi a espada, foi o estudo, dias e anos a fio, no Museu Britânico.

Se perguntado sobre o que o movia, Marx voltava aos seus mestres latinos dos anos de estudo na Alemanha e citava: De omnibus dubitandum, duvidar de tudo, ou também Nada do que é humano me é estranho, fórmulas algo grandiosas mas que também indicavam como se movia nesse mundo fascinante de boletins estatísticos, imprensa de todo o mundo, debates sobre biologia, investigação em história, ou no seu empenho político no movimento operário (o mais importante processo foi a criação em 1864 da Associação Internacional dos Trabalhadores, AIT, a 1ª Internacional, uma pouco duradoura e improvável coligação entre marxistas e anarquistas).

Em Londres, as filhas sobreviventes crescem: Eleanor encanta o pai, discute Shakespeare com ele, viaja até à Irlanda, envolve-se na solidariedade contra o Império, arrasta os pais para uma manifestação pela independência, depois descobre que o Kama Sutra é proibido às mulheres no Museu Britânico e protesta, desde os dezasseis anos acompanha e secretaria Karl nas suas peregrinações pelas reuniões internacionais. Mas a desgraça nunca deixa de os perseguir: quando Marx morre, já tinha acompanhado o funeral de quatro netos, outro morre uma semana depois dele. Jenny, a filha mais velha, desaparece pouco antes do pai; as duas outras virão a suicidar-se, Laura com o seu marido, Paul Lafargue, num pacto para evitar a decrepitude, e Eleanor por um desgosto amoroso.

A suprema intriga

Ao longo dos anos de biblioteca, tantas vezes intercalados por reuniões, conspirações e panfletos, Marx elabora um plano ambicioso. Quer escrever seis livros: um sobre o capital, outro sobre a propriedade da terra, outro sobre o trabalho assalariado, um quarto sobre o Estado, outro sobre o comércio externo e finalmente um sobre o mercado mundial, como explica em cartas a Lassalle e a Engels em 1858. A Lassalle anuncia que “depois de quinze anos de estudo, estou finalmente pronto para me lançar ao trabalho”. Assim o fez, mas só terminaria uma parte do primeiro livro, sobre o capital, e ainda iria demorar mais nove anos sofridos, doente e sofrendo a morte de três filhos.

O trabalho de preparação foi minucioso e penoso. Compõe pelo menos catorze versões diferentes do plano de O Capital. Entre 1857-1858 esboça os Grundrisse, o seu livro de Fundamentos, em que se distancia das teorias clássicas sobre o valor do trabalho, esboçando a sua análise do capital (mais uma vez o mesmo destino, o livro só é publicado 56 anos depois da morte de Marx). A Contribuição para a Crítica da Economia Política é publicada em Berlim em 1859 (mil exemplares, mais um fracasso editorial), seguido de várias versões de textos que nunca terminaria, como as Teorias sobre a Mais-Valia (que Kautsky depois compilou e fez imprimir a partir de 1905, a que se veio a chamar o Livro IV de O Capital, embora tenha sido escrito antes dos outros) e, finalmente, em 1867, conclui a edição alemã de O Capital. Logo reescreve alguns dos capítulos para a segunda edição, acompanha ainda a tradução francesa (Engels faz uma parte do trabalho e queixa-se do esforço de passar do alemão para o francês, uma língua mais retórica e menos acolhedora dos preciosismos e paradoxos que Marx tanto usava). É um “livro maldito”, diz-lhe Engels, levou vinte anos a escrever.

Nos treze anos seguintes, Marx prepara oito manuscritos para o livro dois de O Capital e um único texto grande para o livro três – não conclui nenhum. Será Engels, que conhece melhor do que ninguém as ideias e a obra e é dos poucos que consegue decifrar a letrinha miúda de Marx, a compilar esses livros, o segundo em 1885 (anuncia pesaroso que será uma “grande deceção”, “não contem muitos textos de agitação”) e o terceiro em 1894, que, esse sim, provocará um “efeito trovoada”.

Explica Marx numa carta a Engels, de 28 agosto de 1867, logo depois da entrega do livro à editora: “O que há de melhor no meu livro é: 1) (e é sobre isso que assenta a compreensão dos factos) ter, desde o primeiro capítulo, posto em evidência o caráter duplo do trabalho, consoante ele se exprime em valor de uso ou em valor de troca; 2) a análise da mais-valia, independentemente das suas formas particulares, tais como o lucro, o imposto, a renda fundiária, etc. É sobretudo no segundo volume que isso aparecerá. A análise das formas particulares na economia clássica, que as confunde constantemente com a forma geral, é uma salada russa”. Estava já a pensar na continuação.

O projeto estava bem definido. O Livro I trataria da lógica da mercadoria e da sua troca, desdobrada em produtos e em dinheiro, ou seja, da produção pelo trabalho, a exploração. Era o que resultava dos seus vinte anos de reflexão desde Paris. Seria o livro sobre o tempo roubado aos trabalhadores, os valores de troca e de uso, o trabalho concreto e abstrato. O Livro II seria sobre as metamorfoses do capital e o trabalho produtivo. E o Livro III concluiria sobre o tempo atual das crises, o sistema de reprodução e expansão do capital no seu conjunto. Em algumas versões do plano, há um Livro IV, sobre as crises, mas nunca seria escrito. Cada passo acrescentava a análise e ganhava uma visão mais abrangente: por exemplo, no Livro II o trabalho produtivo é definido de forma estrita como o que produz valor, mas no Livro III o trabalho improdutivo nos circuitos de comercialização e transporte é definido como uma condição de realização do valor.

É o nosso velho enigma, descrito por metáforas misteriosas que Marx tanto apreciava: a “qualidade oculta do capital” tem uma “objetividade fantasmagórica” e “espectral”, constrói um “universo mágico”, ou “encantado”, povoado da “mística do capital”. Nos apontamentos que deixou para o Livro III, Marx volta uma vez mais a essa mistificação, era a sua lição de Paris: “No que diz respeito às categorias mais simples do modo de produção capitalista, e mesmo de produção mercantil, e à mercadoria e ao dinheiro, revelamos a mistificação que transforma as relações sociais (…) em propriedade das próprias coisas (as mercadorias); e que, é ainda mais manifesto, transforma em coisa (dinheiro) a própria relação de produção. Todas as formas de sociedade que conhecem a produção mercantil e a circulação de moeda participam nessa mistificação. Mas no modo de produção capitalista, e no caso do capital que é a categoria dominante, a relação de produção determinante, esse universo mágico e invertido, conhece ainda outros desenvolvimentos (…). Isso faz do capital um ser místico: todas as forças produtivas sociais do trabalho aparecem com efeito como sendo devidas ao capital e não ao trabalho. Parecem jorrar do seu seio. Surge então o processo de circulação que transforma, na sua substância e forma, todas as partes do capital. Nessa esfera da circulação, as relações originais de criação de valor passam completamente para a retaguarda”. Esse “ser místico”, o capital, é o deus da modernidade.

A máquina de mistificação

O “universo mágico” e a “mistificação” representam a potência inclusiva de um modo de produção que exclui. Esse modo de produção não é um fantasma, tem uma existência real, organiza a produção, organiza a reprodução da produção e organiza a representação dessa reprodução, é isso mesmo o capitalismo moderno. Ele cria mercadorias e reproduz a relação social mercantil, cria produtos e mitos, fabrica coisas e ideias. Mas Marx fica com um problema em mãos, que vai ser uma dor de cabeça para os que virão a estudar o seu livro: e como é que se mede esse valor, ou a exploração do trabalho? Quanto é a mais-valia e como se transforma em lucro?

Na sua jornada intelectual, Marx deu respostas aproximativas a estas questões. Estudou em detalhe a teoria clássica do valor, desde que começou a anotar Adam Smith e David Ricardo, e modificou a sua teoria clássica para considerar que o valor das mercadorias é determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessária para a sua produção, distinguindo entre trabalho (que é o trabalhador ou a trabalhadora) e força de trabalho (que é alugada e explorada). O que é muito sensato, mas deixa duas dificuldades. A primeira foi tratada por Marx, como é que a parte desse valor produzido e que não é paga sob a forma de salário (e depois de impostos) se transforma em lucro da empresa. Mas como é o lucro que é visível e contabilizado e não o valor, que fica oculto, esse fundamento fica escondido em trocas implícitas que são regidas pela circulação dos bens e pelos seus preços de produção e flutuações de mercado. Aí está a segunda dificuldade: sabemos que o valor é a origem das coisas, mas não sabemos quanto é o valor. Se é definido pelo tempo de trabalho socialmente necessário, é uma relação social, portanto mutante, não uma medida invariável. Mutante porque depende da produtividade em cada momento, ou seja, das normas e condições sociais que organizam o trabalho e a sua exploração. Nos Grundrisse, escrevia Marx: “como o tempo de trabalho, enquanto medida de valor, só existe idealmente, ele não pode servir de termo de comparação de preços”. Pois não serve de termo de medida, só idealmente, é uma relação constituinte, é a base de tudo, é uma forma de poder, é por isso que é fundamental.

Para desfiar este novelo, Marx analisa as categorias económicas, a mercadoria, o valor, a moeda, o capital, cuja origem é pré-capitalista: é onde recorre ao ofício do historiador. Analisou os sistemas de máquinas, a efervescente Revolução Industrial, descortinou a combinação das diversas formas de capital, capital-dinheiro, capital-produtivo e capital comercial, e assinalou a vertigem da acumulação, essa novidade civilizacional que é a essência do capitalismo.

Max Weber, o gigante da sociologia alemã, que nasceu quando Marx terminava o seu livro, pesquisou mais tarde o “espírito do capitalismo” para compreender os jogos sociais e as motivações dos seus fautores, e assustou-se com o mundo desencantado que revelou. Marx, pelo contrário, sentira a potência do capitalismo no mundo encantado e encantatório da mercadoria e da sua extensão, o capital. O fetichismo, curiosa palavra inventada a partir do termo português “feitiço” para descrever a adoração a uma divindade pagã, é no caso do capitalismo uma força de encantamento, de coesão e de hegemonia, assente na projeção e ilusão entre o sujeito (o trabalhador) e o seu objeto (a mercadoria). O que Marx descobriu é que o capitalismo é um sistema, e por isso dura, perdura e se adapta.

O filósofo francês Daniel Bensaïd, em Marx, O Intempestivo, uma das obras de referência para a compreensão de O Capital, utilizou este conceito de ilusão para interpretar as passagens mais modernas do livro de Marx. Notou por isso que no Livro III, que desmonta “a mistificação capitalista na sua forma mais brutal”, a noção de que o capital gera capital, essa crítica é explicitada na análise do capital-portador-de-juros, que reclama um direito de apropriação sobre a produção futura, submetendo a sociedade de amanhã ao seu direito proprietário. É nesse livro que Marx descreve o “capital fictício”, aquele cuja valorização contabiliza os lucros, os impostos e os rendimentos que estão por ser gerados. É uma vez mais a coisificação em que o capital “se torna um poder autónomo e alienado, que se opõe à sociedade como um objeto”, escreve Marx.

Vítimas do destino cósmico?

O livro não era fácil. Nem para os filósofos, que tinham que mergulhar na economia, nem para os economistas, que tinham que sofrer a crítica à sua submissão ideológica e demais conceitos filosóficos, nem muito menos para os leigos, inocentes de todas essas deambulações. Mas nem essas dificuldades de leitura explicam por que Marx foi vítima de muitos dos seus discípulos, mesmo antes de na União Soviética ter vingado o regime estalinista e o seu pensamento ter sido esvaziado em nome de num ritual celebratório.

Talvez as circunstâncias políticas tivessem impulsionado a banalização, afinal a ideia de doutrinar uma massa de seguidores movia a social-democracia europeia que, depois do esmagamento da Comuna de Paris, procurava no último quartel do século XIX organizar as suas forças. De todas essas doutrinas, a mais divulgada acabou por ser um determinismo tranquilizante, apresentado como uma teoria da história que assegurava o triunfo inelutável do comunismo, de que uma versão foi a chamada “teoria do colapso”, alimentada mesmo por figuras brilhantes como Rosa Luxemburgo.

Marx, o historiador, rejeitava essa versão mecanicista. A ideia de um fado cósmico não podia ser mais contrária à sua filosofia. Numa carta de 1877 à redação de Otetchevestveny é zapisky, uma publicação russa, Marx respondeu a um adversário que o acusa de determinismo, ou de atuar como se o rumo da história estivesse escrito. Diz ele que “o meu crítico quer absolutamente transformar o meu esboço histórico da génese do capitalismo na Europa ocidental numa teoria histórico-filosófica da marcha geral – fatalmente imposta a todos os povos, quaisquer que sejam as circunstâncias históricas em que se encontrem – para chegar em último lugar a essa formação económica que garante, com a maior impulsão dos poderes produtivos do trabalho social, o desenvolvimento mais integral do homem”. E acrescenta: “Mas, peço-lhe perdão (…). Acontecimentos de uma analogia impressionante, mas ocorrendo em meios históricos diferentes, produzem resultados distintos. Ao estudar isoladamente cada uma destas evoluções e ao compará-las de seguida, encontraremos facilmente a chave deste fenómeno, mas nunca chegaremos aí com a moldura de uma teoria histórico-filosófica geral, cuja virtude suprema consiste em ser supra-histórica.”

Não há nenhuma “moldura”, nenhuma sina. Era preciso conhecer mal o jovem Marx para ignorar como, desde as suas primeiras leituras, se distanciava da teodiceia hegeliana, a ideia de um percurso esclarecido do Espírito, a caminho de um destino final. Para Hegel, a História seria o “desenvolvimento necessário dos momentos da razão” e, como numa sentença judiciária, o “julgamento do mundo”. “A História é o ato pelo qual o Espírito se transforma a si mesmo na forma do acontecimento”, escreve ele nos seus Princípios da Filosofia do Direito. Marx opõe-se-lhe e, na Ideologia Alemã escrevia, com Engels: “Não se pode pensar que a história por vir é o termo da história passada”. Nada há fatalidade e poucas farsas imitam as tragédias antigas.

Os heróis de Marx, figuras marcantes de lutas emancipatórias, como Spartacus, Munzer, Babeuf, são aliás personalidades anacrónicas, são de um tempo discordante, são pré-contemporâneos, antecipam-se. Estão antes do seu tempo, não são o destino, são o princípio, não são o fim, não há fim. Esse tempo de ciclos e de ritmos diferentes, libertadores mas também cruéis, é o tempo das bifurcações, das escolhas, da liberdade, talvez a solução da tal suprema intriga.

Não há revolução sem evolução

Voltemos ao cemitério de Highgate, naquele março de 1883, quando Marx é enterrado entre tão poucos amigos e familiares. Engels toma a palavra, em inglês, para elogiar o seu amigo e para inventariar os seus feitos intelectuais, que afinal foram evidentes: “Tal como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, assim Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana: o simples facto, até então ocultado pelo excesso de ideologia, de que a humanidade tem primeiro que tudo que comer, beber, abrigar-se, antes de prosseguir a política, ciência, arte, religião, etc.; que portanto a produção dos meios materiais imediatos de subsistência e consequentemente o grau de desenvolvimento económico alcançado por um determinado povo ou durante uma dada época forma a fundação sobre a qual as instituições públicas, as concepções legais, a arte, e mesmo as ideias sobre religião, das pessoas envolvidas tem evoluído, e à luz da qual deve, portanto, ser explicada, em vez de vice versa, como tem sido o caso”. Marx teria descoberto essa lei da evolução tão simples, é preciso comer antes de filosofar.

Continua Engels: “Mas não é tudo. Marx descobriu também a lei especial de movimento que governa o atual modo de produção capitalista e a sociedade burguesa que este modo de produção criou. A descoberta da mais-valia lançou subitamente luz sobre o problema”. A “luz sobre o problema” era esta lei do desenvolvimento geral da história humana, a compreensão de que a produção material condiciona as ideias, e daí decorre a “lei especial” da produção capitalista. Leis apresentadas com modéstia, era uma despedida fúnebre, mas leis com a força de leis, determinações pesadas, e, no entanto, referidas a Darwin, o modelo.

O fascínio de Marx e Engels por Darwin é conhecido e compreensível. A Origem das Espéciesfoi publicado em 1859, estavam os Marx em Londres e Engels em Manchester, e provocou uma tormenta, mobilizou as igrejas, foi debatido em sociedades científicas e em auditórios apinhados de multidões, criou escola e mudou a perceção do ser humano em relação à sua própria natureza. Entusiasmado, Marx mandou a Darwin um exemplar do seu livro, tendo recebido uma resposta polida referindo que os assuntos tratados ultrapassavam o conhecimento do biólogo. Engels, que compreendeu Darwin e o darwinismo melhor do que Marx, porque conseguiu distingui-lo de versões facilitadas então correntes, partilhava este enlevo com a revolução na biologia, e tentou mesmo apresentar Marx como o Darwin das ciências sociais, para reforçar a sua reivindicação científica.

Mas nem um nem outro podia deixar de notar a implicação do modelo científico darwinista, que contrariava muitas das formulações de Marx. Nos seus livros, e é assim também em OCapital, Marx usou frequentemente o conceito de “lei”, reforçando-o com “lei natural”, de “ferro”, seguindo o conceito contemporâneo de ciência positivista e prometaica, legisladora na descrição dos processos sociais. No entanto, em O Capital, sobretudo no Livro III, Marx apresenta um conceito estranho, o de uma “lei tendencial”, logo num tema tão crucial como a queda da taxa de lucro que conduz a crises frequentes, o capitalismo que devora os seus próprios filhos, como Saturno. Essa lei é tendencial porque pode ser contrariada e invertida por outros fatores sociais, ou seja, o resultado é indeterminado, depende do movimento das contradições e das disputas.

No Livro I fora mais categórico: “A produção capitalista engendra, por seu turno, a sua própria negação, com a inelutabilidade de um processo natural. É a negação da negação”. Aqui temos de novo a filosofia a explicar aos economistas ou outros leitores como as contradições são a natureza da vida, a “inelutabilidade” da contradição. Engels percebeu o risco de determinismo nesta frase e corrigiu-a cuidadosamente no seu Anti-Duhring, escrito dez anos depois de O Capital: “Ao caracterizar o processo como negação da negação, Marx não pensa demonstrar desse modo a necessidade histórica. Pelo contrário: é depois de ter demonstrado pela história como, de facto, por uma parte o processo se realizou e, por outra parte, continua ainda forçosamente por realizar, que Marx o designa, para além disso, como um processo que se cumpre segundo uma lei dialética determinada. É tudo”.

É tudo? O processo segue uma lei, mas o fim dos tempos não está determinado, não exibe uma “necessidade histórica”, não há uma esclarecida parteira da história, há só caminhos, há evolução e revolução e contrarrevolução.

Quem venceu?

Marx percorreu os caminhos do seu tempo. Ficou famoso em 1871, já depois de O Capital e quando, em homenagem à Comuna de Paris, escreveu A Guerra Civil em França, o panfleto que foi o seu primeiro sucesso comercial, oito mil exemplares vendidos imediatamente, muitos mais depois. A imprensa de Versalhes chamava-lhe o “Doutor Vermelho” e acusava-o, injustamente aliás, de ser o chefe da Comuna. Um ano depois, a reedição do Manifesto Comunista foi lida em toda a Europa, o espectro renascia. Marx dedicou-se à revolução que esperava ver surgir desse progresso que transformou o século XIX, bateu-se pelas suas ideias, organizou partidos e alianças, mas também os sentiu como instrumentos: depois de lutas tremendas contra Bakunine e os anarquistas, que cindiram da AIT, impôs a passagem do seu centro para Nova Iorque em 1872, o que significou o seu desaparecimento, não tardaram quatro anos. A vida continuava.

Ora, Darwin era uma preciosa ajuda para o pensamento não dogmático que era necessário para compreender a tragédia da história: ele não afirmava uma causalidade, pois não se conhecia ainda o que produzia a variação biológica, mas sabia da precedência, que é a própria evolução. Também no caso da história da humanidade ela se move, só que temos esse poder intrigante de escolher para onde.

Escolhas tantas vezes trágicas: os communard foram fuzilados ou desterrados, a ordem instalou-se em Paris, mas, na Alemanha que tinha dirigido o assalto contra a Comuna, um ano após o desaparecimento de Marx já a social-democracia tinha 550 mil votos, sete anos depois quase um milhão e meio. As revoluções do início do século XX estavam a nascer.

A vida daquele escritor, o detetive que queria decifrar um supremo enigma, o do trabalho e do seu valor, o do capital e do seu poder, e que imaginou que um dia poderíamos produzir e viver como seres humanos não alienados, é a história dessa viragem dos tempos.

Artigo originalmente publicado no esquerda.net.


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Pedro Micussi