1968: explosão e transformação da corrente radical nos Estados Unidos

A explosão do movimento negro e da luta anti-imperialista ajudou a superar a “nova esquerda” anti-ideológica, abrindo caminho ao marxismo.

Max Elbaum 8 jun 2018, 19:28

O ano de 1968 viu uma explosão de protesto e de radicalização nos Estados Unidos como em diversos países ao redor do mundo. Duas questões centrais – o racismo e a guerra do Vietnã – estão no coração desse ano de mobilização popular. Os eventos de 1968 estenderam os movimentos sociais radicais e transformaram o modelo ideológico da esquerda nos Estados Unidos. O assassinato de Martin Luther King e a nomeação de dois candidatos a favor da guerra pelos dois grandes partidos do país convenceram milhões de pessoas de que o sistema não poderia ser reformado. Houve uma mudança no interior das fileiras radicais: passou-se de uma “Nova Esquerda”, radicalmente anti-ideológica, ao marxismo, em particular às variedades de marxismo anti-imperialistas e antirracistas que buscavam uma fonte de inspiração nos partidos comunistas do Terceiro Mundo.

Em crise pela Ofensiva do Tet no Vietnã, assediado pelos manifestantes antiguerra e confrontado por uma rebelião no interior de seu próprio partido, é um presidente Lyndon Johnson sitiado que se direciona ao país em 31 de março de 1968. Ele o choca ao anunciar que renunciaria à campanha por sua reeleição, de um lado, e que as conversas de paz com as forças de libertação vietnamitas estavam a ponto de serem iniciadas, por outro. Em alguns minutos, um rumor de festa começa a tomar conta de todo o país. Para milhares de pessoas, é com grande entusiasmo que era possível dizer que um presidente dos Estados Unidos tinha sido atingido pelos gritos de “Hey, Hey, LBJ, how many babies did you kill today?” (“Hey, Hey, LBJ, quantas crianças você matou hoje?”) .

Quatro dias depois, Martin Luther King Jr., o principal representante do movimento de liberdade afro-americano, foi assassinado. King foi morto em Memphis, no Tennesse, onde ele prestava seu apoio aos trabalhadores negros dos serviços de limpeza em greve. Nos dias seguintes, rebeliões negras explodiriam em mais de uma centena de cidades. As chamas chegaram a apenas seis quarteirões da Casa Branca. Setenta mil uniformes de tropas federais foram necessários para reestabelecer a ordem pública.

Os levantes negros de abril de 1968 representaram apenas um terço das trezentas rebeliões urbanas que tinham ocorrido desde o verão de 1964. Segundo a opinião da própria Comissão de Conselho Nacional sobre as desordens civil, quase que um em cada cinco habitantes dos setores afetados participaram dessas manifestações (o que significava, à época, mais de um milhão de pessoas).

A luta social em – e ao redor de – 68 atravessou e transformou todas as instituições e organizações populares estadunidenses. As batalhas por igualdade da população negra e contra a guerra no Vietnã reviveram as lutas de emancipação de todas as minoridades raciais estadunidenses e insuflaram uma nova dinâmica no movimento pela libertação das mulheres. Em conexão com esse ano de revolta global, tais batalhas foram o caldeirão de um completo novo espírito e de uma nova prática do internacionalismo.

As revoltas de 68 saíram de uma nova configuração da esquerda estadunidense. A mudança mais notável foi o aumento espetacular de suas fileiras. Dezenas de milhares de jovens foram ganhos às ideias radicais. Os Estudantes por uma Sociedade Democrática (Students for a Democratic Society, SDS), por exemplo, tinham no final do ano triplicado seu corpo militante atingindo a marca de cem mil membros.

Mais significativas ainda foram as mudanças nas orientações e na estratégia da esquerda. Os eventos de 1968 forçaram os militantes mais ativos da Nova Esquerda (New Left) dos anos 1960, dinâmicos, mas anti-idelógicos, a considerar perspectivas mais sistemáticas, fazendo o marxismo, portanto, a ocupar um lugar central. Em particular, as variantes de marxismo que privilegiavam o anti-imperialismo e o antirracismo e que prestavam atenção à experiência dos partidos comunistas do Terceiro Mundo ganharam sensivelmente mais audiência. Os partidários dessas perspectivas passaram a formar novas organizações marxistas-leninistas ou a aderir a grupos socialistas já existentes herdeiros da “velha esquerda”. Durante alguns anos no pós-68, pareceu que os esforços desses grupos em se enraizar nos meios operários, nas populações oprimidas pelo racismo e em construir uma corrente radical perene na classe operária estadunidense renderiam frutos.

Mas isso não aconteceu. Assim como em outros países, a esquerda estadunidense advinda de 68 se mostrou incapaz de compreender as dinâmicas econômicas e sociais do fim dos anos 1970 e 1980. Suas forças se dissiparam enquanto que o bloco no poder reunido sob a bandeira do reganismo (ou do neoliberalismo) orientou a política dos Estados Unidos em outra direção.

O que se viu depois de 1968 marcou uma mudança qualitativa na esquerda estadunidense. As tentativas de reviver uma radicalidade hoje não chegarão a lugar nenhum se elas não partirem de ensinamentos e se não prolongaram o sucesso e não superarem as fraquezas da esquerda que nasceu do caldeirão das revoltas de massa de quarenta anos atrás.

O caminho de toda uma década.

As explosões e transformações de 68 não tiveram nada de repentino. Elas foram o resultado de uma década de manifestações de massa durante a qual dezenas de milhares de pessoas fizeram suas novas experiências da relação que mantinham com a política, com a militância e com o capitalismo.

A força motora foi o movimento das populações negras pelos direitos civis, que teve sua primeira aparição marcante com o boicote dos ônibus em Montgomery (Alabama, 1955-1956). A conferência de direção dos cristãos dos Estados do Sul, implantada no clero sob a autoridade de Martin Luther King, e o Comitê Não-violento de Coordenação dos Estudantes (SNCC), baseado na juventude e nos meios populares, foram o posto avançado das lutas. O combate posto em prática pelo movimento a favor do fim da segregação e do monopólio branco sobre o poder político foi longo e difícil. O seu sucesso, cuja expressão legislativa foi a lei de direitos civis de 1964 e a lei de direito ao voto de 1965, teve uma importância capital. O movimento de direitos civis cumpriu um papel decisivo na reabertura de um espaço de contestação depois da histeria anticomunista da caça às bruxas no fim dos anos 1940 e no início dos anos 1950.

A vitória contras as chamadas leis Jim Crow abriu caminho para novas conquistas pelo conjunto dos movimentos democráticos. Pondo fim à segregação legal, milhões de pessoas passam a reconhecer que a desigualdade racial não era somente a consequência de legislações injustas e de preconceitos individuais, mas que ela era ligada à própria estrutura socioeconômica do país. Em outro front, a vitória da revolução cubana, em 1 de janeiro de 1959, atiçou a atenção da juventude contestatória sobre os movimentos de libertação nacional que varreram a Ásia, a África e a América Latina.

É nesse contexto que os Estudantes por uma Sociedade Democrática (SDS) apareceram como a principal expressão de radicalidade entre os estudantes brancos. Em 1964, o SNCC e o SDS se afirmaram como as duas primeiras organizações de uma nova esquerda em expansão. Nenhum desses dois grupos eram explicitamente anticapitalistas e a maior parte de seus membros não viam na classe operária um agente fundamental de transformação revolucionária. Contudo, ambos se caracterizavam pela adesão ao princípio de ação direta, pela sensibilidade radical e pelo confronto de todas as relações de poder desiguais e opressivas.

Quando a grande escalada da guerra do Vietnã começou em 1964 e 1965, o SNCC foi uma das primeiras organizações a adotar uma posição antiguerra. O SDS jogou um papel decisivo no lançamento da contestação entre os estudantes brancos que constituiriam o maior movimento das manifestações antiguerra da década seguinte.

Entre 1964 e 1967, os movimentos contra o racismo e a guerra ganharam terreno. Os militantes fizeram a conexão entre o militarismo, o racismo, a pobreza e, enfim, o capitalismo. As trajetórias políticas de Malcolm X e de Martin Luther King, figuras centrais na evolução do radicalismo dos anos 1960, foram ao mesmo tempo elementos motores e reflexos das transformações ideológicas em curso.

Em 1965, Malcolm decide romper com o Nation of Islam e lança a Organização da Unidade Afroamericana (Organization of Afro-American Unity) de modo a fornecer uma expressão organizacional à perspectiva internacionalista revolucionária que caracterizou o último ano de sua vida. Depois do assassinato de Malcolm (em 21 de fevereiro de 1965) e a publicação do seu livro Autobiografia, as suas análises sobre o internacionalismo, a autodeterminação e o Black Power tiveram uma influência profunda em milhares de jovens militantes.

Dois anos mais tarde, Martin Luther King desafiou as intensas pressões advindas tanto do governo como dos setores mais institucionais do movimento de direitos civis e condenou publicamente a guerra no Vietnã. Em seu discurso de ruptura, “Romper o silêncio”, no mês de abril do mesmo ano, ele não apenas descreveu o governo dos Estados Unidos como “o grande provedor de violência no mundo hoje”, mas também defendeu uma rejeição geral da guerra, do racismo e da pobreza. Ele escreve que os Estados Unidos precisavam de uma “revolução dos valores” visando, com o objetivo de garantir a justiça e a liberdade para todos, a necessária evolução do país em direção ao socialismo democrático. No último ano de sua vida, King se investe completamente numa organização vigorosa da Poor People’s Campaign, se esforçando com isso para prolongar sua análise, cada vez mais radical, em uma potente iniciativa de massa.

Muitos jovens militantes influenciados por Malcolm X e Dr. King se comprometeram em ir até mais longe. Eles tomaram consciência do fato de que, ainda que os estudantes fossem os mais numerosos nas manifestações antiguerra, as sondagens demonstravam um sentimento antiguerra particularmente forte entre os operários, os pobres e os negros. A implicação nos movimentos de libertação na África e na América Latina criou as condições para um maior interesse pelo marxismo. Na medida em que aproximávamos do ano de 1968, os movimentos de contestação estadunidenses se distinguiam não somente por seu rápido crescimento, mas também pelo de seus militantes mais ativos na busca de novas perspectivas.

1968: a virada crucial

O primeiro grande choque do ano, a Ofensiva do Tet, foi ainda maior porque ela praticamente não era esperada. Em 30 de janeiro, o Front de Liberação Nacional lança um ataque coordenado em todo o país, ataque que constituiu a virada crucial da guerra. A ofensiva revelou o fracasso da estratégia de Washington e quebrou o consenso que havia até então prevalecido no interior da elite estadunidense. A rebelião antiguerra se manifestou primeiramente no interior do próprio partido de Johnson, principalmente através da tentativa de Eugene McCarthy de confrontar o presidente nas primárias democratas durante a primavera do mesmo ano.

Com o episodio do Tet, Johnson foi constrangido a reunir um grupo ad hoc de conselheiros escolhidos entre os grandes atores de Washington (“os sábios”). Eles explicaram a Johnson que ele não possuía nenhuma chance de vitória. Com o crescimento da contestação antiguerra, essa foi origem da surpreendente retirada de Johnson da corrida presidencial. Apenas quatro anos mais cedo, Johnson havia sido levado por uma maré eleitoral para ser agora obrigado a renunciar a um novo mandato. Ofuscados durante alguns dias, os movimentos de oposição saborearam esse momento e se prepararam para novas vitórias.

Acontece então o assassinado de King. Além de uma centena de rebeliões que se inflamaram em algumas horas, sua morte teve um profundo impacto ideológico. Para dezenas de milhares de pessoas, aqueles que tinham participado ou apoiado os movimentos de contestação foram convencidos de que o “sistema” não podia ser reformado pela via eleitoral ou através da contestação não-violenta: restava apenas revertê-lo através da força.

Tais sentimentos se reforçaram dois meses mais tarde com o assassinato de Robert Kennedy, candidato à eleição presidencial. O irmão do presidente assassinado, John Kennedy, aderiu tardiamente às bandeiras antiguerra e da defesa dos mais modestos e das minorias oprimidas. Depois do assassinato de King, eram muitos os que viam em Kennedy uma “última esperança” de mudança pelas vias tradicionais. O processo de radicalização se acelerou ainda mais dois meses depois, quando Hubert Humphrey, artesão da guerra e leal vice-presidente de Johnson, foi designado candidato pelo Partido Democrata à eleição presidencial enquanto que as forças de polícia atacavam violentamente os manifestantes nas ruas de Chicago.

Para os jovens militantes, cujo número era cada vez maior, a radicalização não se devia somente à cólera contra um sistema inflexível e assassino. Ela correspondia ao sentimento cada vez mais claro de que havia a possibilidade de uma transformação revolucionária. O Tet havia naufragado a ideia de um império estadunidense invencível. Depois, em maio, uma insurreição de um milhão de pessoas na França pareceu colocar a revolução na ordem do dia nos próprios bastiões do capitalismo avançado. A mensagem arrebatadora vinda de Paris ganhará sentido com as histórias de militantes franceses ou estadunidenses indo de um campus a outro depois de terem participado dos eventos e de terem testemunhado as alianças entre estudantes e trabalhadores e a rápida expansão das organizações revolucionárias.

(Em um plano pessoal, eu me lembro ter ficado fascinado quando um membro de minha seção do SDS, que havia passado a primavera em Paris, nos contou sobre a célebre “noite das barricadas”. Isso foi um fator importante na minha decisão de fazer da militância radical o fio condutor da minha existência. Obrigado aos estudantes e aos trabalhadores franceses!”.)

O despertar de uma sociedade

O ano de 1968 traçou uma linha divisória para outras movimentações e movimentos. Até 68, nos Estados Unidos, as organizações de moradores chineses, japoneses, coreanos, e de origem asiática em geral, eram constituídas a partir de uma base simplesmente nacional. Naquela primavera, uma nova dinâmica se colocou em movimento enquanto os grupos que se definiam como asiático-americanos se formaram em diversos campi da costa oeste. O verão de 68 viu ser realizada a primeira conferência nacional de estudantes asiático-americanos, e antes mesmo do fim do ano um novo movimento radical asiático-americano ganhava o conjunto do país.

Em 3 de março de 1968, mais de mil estudantes mexicano-americanos se desligam do colégio Lincoln de Los Angeles, inaugurando assim uma nova série de desligamentos dos colégios. Essa foi a origem de um renascimento em larga escala da história de resistência militante da comunidade mexicana-americana, principalmente no que se refere à formação do grupo militante dos Brown Berets e de CASA-Hermandad General de Trabajadores, uma organização socialista implementada no meio operário mexicano.

Em 23 de setembro de 1968, dezenas de milhares de pessoas desfilaram em Porto Rico para celebrar o centésimo aniversário do El Grito de Lares, a insurreição de 1868 que proclamou pela primeira vez a república independente de Porto Rico. Essa renovação (El Nuevo Despertar), com militantes à frente de seu comando, não demorou a ganhar as comunidades porto-riquenhas dos Estados Unidos.

O American Indian Mouvement (AIM) nasce em 1968 e revive as antigas lutas pela soberania dos indígenas estadunidenses.

No outono de 68 ocorreu a primeira conferência nacional de um novo Movimento pela Libertação das Mulheres. Ao longo da década seguinte, a “segunda onda do feminismo” iriar reagrupar milhões de pessoas e reverter várias das velhas barreiras sexistas, marcando em seguida profundamente a paisagem cultural e política.

A contestação ardia nos campi durante todo o ano de 1968, contestação normalmente colocada em prática pelos estudantes negros. A primeira ocupação de locais em um campus estadunidense acontece em março de 1968 na Universidade de Howard (Washington) onde estudantes militantes negros obtiveram ganho de causa em quase todas as suas reivindicações. Em maio, em Columbia (Nova York), mil estudantes ocuparam cinco prédios em sinal de protesto ao projeto da universidade que visava deslocar os residentes da comunidade negra vizinha e contra as relações que a universidade matinha com o Instituto de Análise Militar (Institute for Defense Analysis), associado à guerra do Vietnã. Na Universidade de São Francisco, o Front de Libertação do Terceiro Mundo encampou uma greve de quatro meses e meio obrigando a administração a implantar um dos primeiros programas de estudos étnicos do país.

A luta afro-americana continuou a ocupar um lugar central. A partir de 1968, em todas as grandes cidades dos Estados Unidos, militantes dos Black Panthers (partido criado em 1966) defendiam seu programa de autodeterminação negra, anticapitalista e internacionalista. As fileiras dos Black Panthers chegavam a perto de cinco mil pessoas. Em setembro de 1968, o chefe do FBI, J. Edgar Hoover, denunciou publicamente os Black Panthers como “a maior ameaça à segurança interior do país” e deu ordens para serem intensificados os esforços que visavam destruir o partido por meio do Programa de Contraespionagem (COINTELPRO), de sinistras lembranças.

Um movimento unido sobre uma base de classe?

Até o fim dos anos 1960, foi preciso lamentar o silêncio do movimento operário. As direções se contentavam principalmente em apoiar formalmente as inciativas ao redor dos direitos civis, mas continuavam regularmente (com apenas algumas honrosas exceções) a lançar mão de práticas discriminatórias no interior das próprias fileiras das organizações operárias. Da mesma forma, as direções permaneciam significativamente aprisionadas pelo anticomunismo da guerra fria e apoiando a guerra no Vietnã. Apenas alguns sindicatos como o West Coast Longshoremen (dos trabalhadores estivadores) ou o New York’s Hospital Workers demonstravam seu desacordo. Havia também alguns grupos de trabalhadores (em sua maioria trabalhadores negros) capazes de dirigir a energia das lutas antirracistas e antiguerra dos anos 1960 contra esse predominante consenso.

A virada crucial ocorreu em Detroit, capital da indústria automobilística dos Estados Unidos. Em 2 de maio de 1968, um grupo de militantes negros organizados na Dodge Revolutionary Union Movement (DRUM) esteve na origem da primeira greve selvagem em 14 anos que buscava paralisar a gigantesca planta de Dodge Main. Em algumas semanas, centenas de operários desafiaram a direção do United Auto Workers aderindo ao Revolutionary Union Movement (RUM), formado a partir de outras fábricas. A onda de choque foi sentida até no coração dos Estados Unidos do capital, na imagem desta apreciação do Wall Street Journal, segundo quem “a revolução negra dos anos 1960 tinha agora atingido um dos pontos mais vulneráveis do sistema econômico estadunidense; o mecanismo da produção de massa, ou dito de outra forma, a linha de montagem”. O DRUM esteve na vanguarda do novo ativismo dos jovens trabalhadores negros em escala nacional. A resistência negra começou a encontrar, ainda que de maneira parcial, os sentimentos de revolta presentes nos jovens trabalhadores brancos entre os quais se encontravam muitos veteranos do Vietnã. Foi também o momento em que o movimento dos trabalhadores agrícolas da Califórnia, conduzidos por César Chávez, se juntou aos trabalhadores mexicanos dos Estados Unidos em uma potente nova força.

Essa agitação que veio de baixo contribui sensivelmente para o fato dos sindicatos se lançarem, entre 1969 e 1970, nas greves mais duras que eles haviam participado desde 1946. Além disso, no interior do próprio movimento operário, grupos militantes que emergiam das batalhas dos anos 1968-1972 perseguiram o combate contra as descriminações ao longo da década seguinte, conseguindo em pouco tempo colocar fim a uma série de práticas racistas.

Transformação no interior da esquerda

No interior da esquerda, esse novo ativismo operário no nível da produção teve um impacto considerável. Malcom X, Martin Luther King, a luta vietnamita, e as experiências próprias dessa esquerda já haviam colocado no programa da juventude militante as questões do internacionalismo, do anti-imperialismo e as interconexões entre guerra, pobreza, racismo e capitalismo. O sucesso dos Black Panther, um grupo de quadros disciplinado, levou muitos deles a reconsiderar a aversão que a nova esquerda tinha à organização solidamente estruturada. O ativismo operário visível na França em 1968 (ou em 69 ao longo do “outono quente” na Itália) causou uma impressão forte nos jovens radicais nos Estados Unidos: a classe operária dos bastiões do imperialismo não era, portanto, talvez tão burguesa quanto ele. E não é que agora os trabalhadores acordaram aqui mesmo, nos Estados Unidos! Essa tomada de consciência foi acompanhada de uma acelerada virada em direção ao marxismo, o que fez rapidamente se tornar um hábito corriqueiro ver importantes representantes da nova esquerda – para quem, em 1966, o marxismo já não era nada mais do que “o dogma arcaico da esquerda” – se declararem “comunistas revolucionários”.

Determinados, mas relativamente menos numerosos, aqueles e aquelas que se voltavam ao marxismo gravitavam em direção ao Partido Comunista dos Estados Unidos. Em 1968, a intervenção militar soviética na Tchecoslováquia descreditou o comunismo pró-soviético aos olhos de toda uma geração, cuja radicalização estava diretamente ligada à questão da autodeterminação nacional. Diversas tendências trotskistas, com suas precisas análises críticas da sociedade soviética (e suas participações ativas no movimento antiguerra) atraíram um grande número de jovens militantes. Entretanto, o setor mais dinâmico foi aquele das correntes voltadas aos partidos revolucionários do Terceiro Mundo. A Revolução Cultural chinesa (apresentada como uma prática do socialismo pela base) e o internacionalismo de Che, que conclamava a criação de “dois, três, vários Vietnãs”, tiveram ecos retumbantes. Daí a corrente caracterizada como “marxismo terceiro-mundista” (também conhecida sob o nome de “novo movimento comunista”) que apareceu no começo do ano de 1968, e não era para menos. Desde o começo dos anos 1970, ela foi a tendência mais dinâmica e a mais multirracial da esquerda socialista estadunidense. Não por azar que a Liga dos Trabalhadores Negros de Detroit (League of Revolutionary Black Workers), advinda do DRUM, era geralmente identificada a essa corrente. Para todos os tipos de militantes radicais vindos de todos os lugares, em 1968, ficou claro que a Liga tinha a experiência mais sólida de campo e na intersecção das questões de exploração de classe e de opressão racial. Consequentemente, para muitas pessoas, o seu sucesso representava a possibilidade de libertar o potencial revolucionário de toda a classe operária estadunidense.

Todas essas tendências marxistas alimentaram grandes esperanças. Pesquisas de opinião realizadas no outono de 68 indicavam que, entre os estudantes, as pessoas se identificavam mais com o Che (20%) do que com qualquer um dos candidatos à presidência dos Estados Unidos. Mais de um milhão de estudantes se consideravam fazer parte da esquerda. Entre os afro-americanos, os sentimentos revolucionários não aumentavam simplesmente em influência, mas tornavam-se hegemônicos, ao menos entre os menores de trinta anos. Todas as outras comunidades étnicas foram influenciadas por correntes radicais. E, pela primeira vez após os expurgos anticomunistas do fim dos anos 1940, a radicalidade tinha o vento em popa no movimento sindical.

Uma dinâmica que continua ao longo dos anos 1970

Durante muitos anos após 1968, a militância de massa permaneceu vivaz e a esquerda continuou a crescer.

As mobilizações antiguerra dos anos 1969-1970 foram muito maiores que aquelas de 1968. Atingiu-se o clima com a invasão do Camboja em maio de 1970, revelando o fracasso da política de “vietnização” de Richard Nixon. Houve conflitos com a polícia e com a guarda nacional em todos os cantos do país. Quatro estudantes brancos foram assassinados na Universidade de Kent (Ohio) e dois estudantes negros na Universidade de Jackson (Mississipi). As greves e mobilizações em quatrocentos e quarenta campi do país, com a participação de quatro milhões de estudantes e de trezentos e cinquenta mil pessoas, pareciam uma greve geral da universidade.

Pela primeira vez, uma força fraturou as direções sindicais no que se refere à questão da guerra. Um manifesto antiguerra recebeu a assinatura de duzentos e cinquenta funcionários do Departamento de Estado e foi relatado que para o Secretário de Estado da época, Henry Kissinger, “era o próprio sistema de governo que estava em colapso”.

Nixon foi obrigado a voltar atrás e teve que prometer a retirada das tropas do Camboja em até trinta dias. Foi esse o prenúncio da renúncia do presidente e de sua desgraça final com a crise de Watergate.

No Vietnã, a agitação ganhou até mesmo as fileiras do exército. A rejeição de ir ao combate por boa parte dos soldados soltados nutria um movimento de protesto operário e negro contra o racismo e a guerra. Os registros militares revelaram milhares de casos de desobediência e quinhentas e cinquenta e uma agressões armadas deflagradas contra superiores entre 1969 e julho de 1972. A amplitude da crise no interior do exército foi revelada por um coronel no Armed Forces Journal de junho de 1971: “Ao sul do Vietnã, a desorganização das forças militares estadunidenses está a ponto de se tornar completa devido ao fato de indivíduos e unidades que estarem evitando ou recusando o combate, assassinando seus oficiais, se drogando regularmente, e se afundando em plena desmoralização… o ardor, a disciplina e a bravura das forças armadas estão… abaixo do nível de tudo o que se pôde conhecer ao longo deste século e, provavelmente, durante toda a história dos Estados Unidos”.

Nesse momento, o grupo de veteranos do Vietnã contra a guerra contava com onze mil membros, vinte e seis coordenadores regionais e possuía uma ala esquerda que clamava pela vitória do Front de Libertação Nacional.

O movimento radical no pós-68 se desenvolveu entre os detentos. Contabilizou-se não menos que dezesseis rebeliões em prisões durante o ano de 1970 e, em 1971, houve o terrível confronto da prisão de Attica (no estado de Nova York): mil e duzentos detentos tomaram o controle de metade da prisão e fizeram reféns. Tomando de assalto, os policiais mataram vinte e nove prisioneiros, enquanto dez reféns faleceram através de seus tiros. Segundo uma comissão oficial, “com exceção dos massacres de indígenas do final do século XIX, o assalto da polícia foi, eu um só dia, o enfrentamento mais mortífero desde a guerra civil”.

O movimento de libertação das mulheres, em ascensão, se somou à dinâmica geral. A rebelião de Stonewall na cidade de Nova York, em junho de 1969, durante a qual milhares de gays enfrentaram a polícia (para quem, há muito tempo, a perseguição anti-homessexual era uma questão de rotina) foi o ato fundador do movimento de libertação de gays e lésbicas.

Cabia talvez àqueles que tinham sido os pioneiros a estarem também na origem do último marcante episódio do que é conhecido com “os sixties”. No início do mês de fevereiro de 1973, os combatentes indígena-americanos pela liberdade ocuparam o local de Wounded Knee na reserva de Pine Ridge em Dakota do Sul. Setenta e um dias durante os quais uma aliança de anciões indígenas tradicionais e de novos militantes desafiou o cerco a eles imposto pelo FBI junto com os esquadrões locais e as tropas federais.

Nesse momento, as organizações marxistas que haviam se formado ou se desenvolviam desde 1968 estavam plenamente voltadas ao trabalho de massa operário. O Partido Comunista dos Estados Unidos cativou em sua direção uma onda de novos militantes ao longo de sua (vitoriosa) campanha pela libertação de uma de suas figuras emblemáticas, Angela Davis, que havia sido acusada de ter colaborado com uma rebelião de prisioneiros. As fileiras do Socialist Worker Party trotskista atingiram seu pico máximo desde a guerra graças ao seu papel em uma das duas principais coalizões nacionais contra a guerra no Vietnã. O meio, mais restrito, dos internacionalistas do “terceiro campo”, avançava em seu trabalho de enraizamento de militantes na indústria pesada. Dezenas de organizações e de coletivos “neocomunistas” inspirados por diversos marxismos vindos do Terceiro Mundo, e principalmente o maoísmo, pareciam convergir para formar o principal polo dentro da esquerda anticapitalista.

Essas formações tiveram suas forças e suas fraquezas, mas no conjunto, a envergadura e a qualidade de seu trabalho de organização na classe operária ultrapassou largamente tudo o que havia existido desde os anos dos expurgos e das repressões comunistas (1947-1953) que haviam deixado a esquerda e um estado terrível. Esses grupos se situavam na intersecção de questões de classe e de raça, ao mesmo tempo no plano teórico e prático, e sua coesão os permitia implantar campanhas e operações coordenadas com base em uma sofisticada divisão do trabalho. Em todas essas esferas, eles representavam um notável progresso em relação ao que propunha a nova esquerda. Entretanto, um verdadeiro balanço deve também levar em conta o fato de que essas novas tendências marxistas negligenciavam certas contribuições importantes da nova esquerda sem, contudo, se livrarem de problemas consideráveis: a adaptabilidade, a criatividade e a preocupação democrática foram muitas vezes descartadas em favor do dogmatismo, do sectarismo e de estruturas hierarquizadas que deixavam pouco espaço às iniciativas vindas da base.

Esses problemas pareciam ser de ordem secundária no momento em que a geração de 68, repleta de entusiasmo, adentrava na nova década que se iniciava. Ela era otimista em relação às possibilidades de aumentar seu enraizamento na classe operária multirracial e se sentia tomada pelo clima geral de radicalidade. Uma pesquisa de opinião de 1971 demonstrava que mais de três milhões de pessoas julgavam que uma revolução era necessária nos Estados Unidos. Uma década depois, a geração radical do final dos anos 1980 teve antes de enfrentar uma situação de (inesperado) fracasso do que de (suposto) crescimento. De todo modo, sua experiência durante e depois dos anos 1970 é rica de lições para a nova geração. Nada disso teria sido possível sem as metamorfoses do ano de 1968.

Artigo originalmente publicado sob o título “1968: explosion et transformation du courant radical aux États-Unis”. Este texto foi concebido como parte integrante do número 22 da revista francesa Contretemps em sua edição especial sobre os quarenta anos de Maio de 1968. Tradução de Pedro Micussi.


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