Futebol onírico

Os povos elaboram sua identidade através de suas paixões ou de seu recolhimento: no Brasil, nada conduz à loucura como o futebol.

Florestan Fernandes 15 jun 2018, 14:23

Os povos elaboram sua identidade através de suas paixões ou de seu recolhimento. Às vezes, camadas e classes sociais distintas não se sensibilizam da mesma forma. Elas se distinguem pelas tendências e núcleos de seus prazeres e alegrias. Mesmo nas sociedades diferenciadas, porém, existem convergências que estimulam a comunidade de sentimentos e de valores que passam pela música, pela dança, pelas festas coletivas (como o Carnaval), pela leitura, pelo esporte etc.

No Brasil, nada conduz à loucura como o futebol. Durante pouco tempo atividade refinada, irradiou-se por toda a sociedade e tornou-se o emblema da hegemonia popular sobre a “cultura das elites”. Estas submeteram-se ao seu desnivelamento e construíram em torno do futebol uma arena de poder, de lucros e de mando, como atestam carreiras políticas, administrativas e financeiras.

Não é por aí, todavia, que se aprende algo profundo sobre o “caráter nacional”. Este se evidencia no mundo de sonhos e de ilusões que arranca do futebol. Primeiro, no conceito de arte, que lhe é aplicado como qualificação mestra. Segundo, no significado que recebe entre jogadores e nas suas relações com os torcedores.

Há a união pelo clube e a que nasce de acontecimentos maiores, como campeonatos e principalmente copas mundiais. Terceiro, a exaltação e a consagração dos grandes futebolistas: são entes humanos e heróis-civilizadores (o Pelé e o “rei” ou o “deus” Pelé). Trata-se de um mundo no qual o profano, a magia e a religião se confundem e quebra a rotina da miséria, da ignorância e da opressão, ainda que por alguns instantes e graças à fantasia.

A derrota é pior que a dor, porque ela não permite prolongar a vitória sobre o sofrimento e a plenitude de viver, a comunhão com os deuses.

À vista desse contexto, o empate do Brasil com o Canadá equivale a um desastre moral. O imprevisto se abateu em tempo, segundo Josias de Souza. Sua interpretação, nos planos racional e lúdico é correta. Mas ela ignora o êxtase que elevou a crença na “vez do Brasil” em dogma nacional.

O desânimo e a incerteza torturam mentes e corações de milhões, que não viam o Canadá (e provavelmente nenhum outro time) como adversário à altura. Misturadas as coisas, a competição esportiva seria a última via a ser tomada em conta.

O empate possui limitado alcance explicativo. Ele só desvela o que já era evidente. Como não se leva a sério a educação e a cultura, mesmo os treinadores e a cúpula da seleção estão entregues ao encantamento mágico religioso. A nossa seleção teria de vencer por “direito divino”… Abandonamos nossas tradições futebolísticas, em vez de aperfeiçoá-las com afinco. Robotizamos os jogadores, como se não fossem pessoas. Controlamos suas ações fora do campo e priorizamos o autoritarismo dos patronos como fator seletivo. Não afastamos os que já não são os melhores e entronizamos os que deveriam provar que o sejam. O que esperar?

A “garra” e o “jogo de cintura” resolvem. Mas nem sempre! Urge varrer a complacência do futebol, junto com os “cartolas” que o infestaram e os técnicos que andam com a cabeça fora do lugar.

13 de junho de 1994

Artigo originalmente publicado na Folha de S.Paulo.


TV Movimento

PL do UBER: regulamenta ou destrói os direitos trabalhistas?

DEBATE | O governo Lula apresentou uma proposta de regulamentação do trabalho de motorista de aplicativo que apresenta grandes retrocessos trabalhistas. Para aprofundar o debate, convidamos o Profº Ricardo Antunes, o Profº Souto Maior e as vereadoras do PSOL, Luana Alves e Mariana Conti

O PL da Uber é um ataque contra os trabalhadores!

O projeto de lei (PL) da Uber proposto pelo governo foi feito pelas empresas e não atende aos interesses dos trabalhadores de aplicativos. Contra os interesses das grandes plataformas, defendemos mais direitos e melhores salários!

Greve nas Universidades Federais

Confira o informe de Sandro Pimentel, coordenador nacional de educação da FASUBRA, sobre a deflagração da greve dos servidores das universidades e institutos federais.
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 21 abr 2024

As lutas da educação e do MST indicam o caminho

As lutas em curso no país demonstram que fortalecer a classe trabalhadora é o único caminho para derrotar a extrema direita
As lutas da educação e do MST indicam o caminho
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 48
Edição de março traz conteúdo inédito para marcar a memória da luta contra a repressão
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Edição de março traz conteúdo inédito para marcar a memória da luta contra a repressão