Medicalizar não resolverá o problema da Educação

Patologias estão sendo usadas como justificativa para um nefasto projeto de medicalização da educação e da infância.

Sâmia Bomfim 17 jul 2018, 17:16

Tramita na Câmara de Vereadores de São Paulo o Projeto de Lei nº 03/2017 de autoria do Mário Covas Neto (recém-saído do PSDB) que “dispõe sobre medidas para a Identificação, Tratamento e Acompanhamento de Educandos com Dislexia e/ou TDAH [Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade]”. Em função disso, recebemos do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP) um “subsídio a respeito dos projetos de lei relacionados a dislexia e TDAH” escrito pelo próprio conselho em diálogo com diversas outras entidades. Agradecemos a generosa contribuição e, cientes da relevância do tema, publicamos aqui nossa posição que tem o subsídio como principal referência.

A dislexia é um distúrbio neurobiológico que afeta a capacidade de decodificação e linguagem do indivíduo, tipicamente associado a dificuldades para ler, escrever e falar. Já o TDAH é outro transtorno neurobiológico, mas que afeta a função executiva do indivíduo – organização, atenção arbitrária, e controle sobre impulsividade e inquietude. Ambas as patologias são reconhecidas pela Organização Mundial da Saúde e se não tratadas podem causar problemas acadêmicos, profissionais e sociais que prejudicam a autoestima e a qualidade de vida do indivíduo e eventualmente evoluir para comorbidade com outras doenças psiquiátricas, como depressão, transtorno de ansiedade generalizado e alcoolismo. Ambas são doenças crônicas.

A primeira é tratada apenas por meio de terapia, enquanto a segunda é tratada por terapia e medicamentos. Há controvérsia sobre a tipificação e tratamento dessas patologias. Não entraremos aqui no pormenor deste debate. No entanto, compartilhamos da preocupação de que essas patologias (principalmente no caso do TDAH, que envolve o uso de medicamentos) possam estar sendo usadas como justificativa para um nefasto projeto de medicalização da educação e da infância.

O diagnóstico de TDAH não é simples. O transtorno pode manifestar-se de maneiras muito diversas. Nem todos os portadores apresentam rendimento acadêmico ruim, por exemplo (assim como, por óbvio, nem todos os que apresentam mau rendimento acadêmico possuem o transtorno). É preciso que os sintomas apareçam em circunstâncias e momentos diferentes da vida do indivíduo, acompanhados de uma análise criteriosa, para que o diagnóstico possa ser feito com segurança – por esse motivo é mais difícil apontar o transtorno em crianças. Caso contrário, o falso diagnóstico pode convenientemente ocultar problemas reais no sistema educacional ou na formação psicossocial da criança.

Se as aulas no ensino fundamental são maçantes e inadequadas para a idade dos alunos desta faixa, não é preciso ser portador de TDAH para não conseguir prestar atenção na aula e querer brincar a todo instante. Se uma criança for vítima de abuso, violência ou humilhação, é evidente que sua autoestima será prejudicada de modo que tenha dificuldade para se alfabetizar, mesmo que não seja disléxica. O diagnóstico equivocado de crianças como as citadas nestes exemplos pode ainda submetê-las desnecessariamente ao risco dos efeitos colaterais dos medicamentos utilizados em seu tratamento.

A popular “Ritalina” (Cloridrato de Metilfenidato), usada no tratamento de TDAH, possui uma larga lista de efeitos colaterais que incluem desde nervosismo e insônia (mais comum) até convulsões e aumento da pressão arterial (mais raro). Além disso, como qualquer droga psicoativa (proibida ou legalizada, farmacêutica ou não), pode causar dependência e uso abusivo.

Infelizmente, os dados indicam que essa sobre notificação e abuso da medicamentação de fato estão ocorrendo. Apenas entre 2012 e 2013, as importações de Metilfenidato cresceram 300%. No caso específico da Ritalina, as vendas cresceram 180% entre 2009 e 2013. Pior ainda, observa-se que há uma queda acentuada nas vendas no período de férias e aumento gradual ao longo do ano letivo com pico no mês de outubro, quando começa o último bimestre de aulas, período decisivo para alunos com risco de reprovação – isto indica que crianças em idade escolar estão consumindo a droga para efeitos de doping.

Essa variação pode estar relacionada aos interesses da indústria farmacêutica responsável pela comercialização desses medicamentos. Um estudo que analisou o rigor científico das publicações sobre TDAH realizado pela Universidade Mac Master, do Canadá, revelou que dos 10 mil artigos analisados entre 1980 e 2010 apenas 12 atendiam os parâmetros mínimos exigidos para uma publicação científica. Uma pesquisa semelhante realizada pela ANVISA em 2014 também apontou a baixa qualidade metodológica dos estudos de TDAH: índices superestimados, viés de publicação, baixa capacidade de generalização, além de conflito de interesses de pesquisadores ligados à indústria farmacêutica são alguns dos problemas apontados.

O PL de Mário Covas pode aprofundar o problema na medida em que visa realizar o “diagnóstico precoce”. O argumento é que a intervenção precoce aumenta a efetividade e causa “menos complicações” no tratamento devido a uma suposta plasticidade da infância. Mas, como vimos, o resultado disso é frequentemente o oposto do esperado. Além disso, o fundamento do projeto é “capacitar” as escolas e os professores para indicar o diagnóstico. Mas a finalidade exclusiva da escola é a educação – o diagnóstico de transtornos psiquiátricos cabe aos equipamentos públicos de saúde.

Do mesmo modo, professores são formados e contratados para garantir o processo de ensino e aprendizagem. Responsabilizá-los pela execução de uma tarefa típica de profissionais de saúde não apenas coloca em risco o bom encaminhamento do problema como caracteriza desvio de função – mais uma dentre as várias que assediam os professores a todo o momento, em desacordo com a LDBEN/1996.

A proposta deixa entrever ainda a possibilidade de contratação de instituições privadas para a execução do projeto, como indica o inciso I do artigo 2°: “As Secretarias Municipais de Educação e de Saúde deverão ofertar parceria com a rede privada de ensino para a oferta dos cursos de capacitação e treinamento.” Ou seja, não seria prerrogativa exclusiva das instituições públicas. Haveria instituições privadas já interessadas nessa possibilidade de contratação?

De modo algum isso significa que não possam existir parcerias entre a Saúde e a Educação para garantir o atendimento global e eficaz dos educandos. Entretanto, essa articulação não precisa de uma PL como a de Covas. Ela já está prevista em lei, mas não é efetivada. No município de São Paulo há, por exemplo, a Lei n° 15.769/2013, que dispõe sobre a implementação de assistência psicopedagógica em toda a rede municipal de ensino, além de diversas outras leis e decretos que versam sobre o mesmo tema.

Para a execução desses dispositivos, há o Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem (NAAPA), que é composto por uma equipe multidisciplinar que inclui profissionais da educação. No entanto, infelizmente, o NAAPA encontra-se em situação de escassez de funcionários para a realização de seu trabalho. Por esse motivo protocolamos como emenda à LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) a linha de ação “contratação de funcionários públicos efetivos para a execução do parágrafo 1° do art. 2° da Portaria 6.566 – SME de 24/11/2014 [que dispõe sobre os recursos humanos necessários para o funcionamento da NAAPA]”.

Os desafios para a educação e a saúde mental em nosso país são enormes e passam pela revogação do atual modelo de gestão estatal que secundariza os direitos sociais. De modo algum a medicalização deve acobertar estes problemas. Medicamentos não vão solucionar os nossos problemas de educação. Somos contra o PL 01-00003/2017.

Artigo originalmente publicado no site da autora. 


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