Os crimes da Bélgica colonial no Congo. Dever de memória

Leopoldo II buscou criar uma colônia “sua” na África subsaariana.

Éric Toussaint 6 jul 2018, 12:06

A colonização do Congo colocada em perspectiva histórica

No fim do século XVIII e no começo do século XIX, quando uma série de países conquistava sua independência nas Américas, a África subsaariana ainda era largamente colonizada pelos europeus. Isso não a impede de ter sustentando os efeitos da colonização de outros continentes pela via do comércio trinalguar e do trato dos negros. Dezenas de milhões de africanos foram feitos escravos e transportados a força às Américas entre o século XVII e meados do século XIX. É nos últimos vinte e cinco anos do século XIX que a Áfria subsaarinana cai completamente sob o julgo colonial dos países europeus: Grã-Bretanha, França, Portugal, Alemanha e Bélgica, principalmente.

Leopoldo II, segundo reio dos belgas, busca dotar seu país de uma colônia.

Leopoldo II busca colonizar uma parte da Argentina, depois ele se volta às Filipinas. Finalmente, ele fixa suas vistas na imensa bacia do rio Congo tentando não entrar em conflito com as grandes potências europeias que já são, elas mesmas, importantes potências coloniais e que teria os meios para reduzir a nada as ambições coloniais da Bélgica, que veio tardiamente reclamar por sua parte do bolo.

Antes de se tornar rei, Leopoldo II percorreu uma parte importante do mundo colonial: Ceylan, Índia, Birmânia, Indonésia. Ele caiu em admiração pelos métodos holandeses em Java e na Indonésia ao longo de suas viagens. O modelo javanês se baseava sobre a mão-de-obra forçada: é o que ele aplicará na sua colonização do Congo…

No século XIX, os argumentos utilizados pelos europeus para colonizar a África e a Ásia eram principalmente cristianizar os pagãos, levar os benefícios do livre comércio (isso permanece muito atual) e, no caso da África subsaariana, acabar com o tratado dos escravos pelos Árabes.

A partir de 1865, quando Leopoldo II ascende ao trono, ele empreende diversas iniciativas para dotar a Bélgica de uma colônia. Em 1876, ele organiza no palácio real uma conferência geográfica internacional. Segundo ele, o objetivo – em coerência com relação ao pretexto utilizado à época – é:

“Abrir à civilização a única parte do nosso globo em que ela ainda não penetrou, romper as trevas que permeiam populações inteira, é, eu ouso dizer, uma cruzada digna desse século de progresso (…). Me pareceu que a Bélgica, Estado central e neutro, seria um bom terreno para tal reunião. Eu tenho necessidade de vos dizer que os convidando à Bruxelas eu não fui guiado por vias egoístas? Não, senhores, se a Bélgica é pequena, ela é feliz e satisfeita de sua sorte; eu não tenho outra ambição do que bem servi-la”. E ele explica que com essa sociedade internacional de geografia onde são convocados grandes exploradores, tratar-se-á de construir estradas em direção ao interior, hospitais, centros científicos e pacificadores que constituíram os meios para abolir a escravidão, estabelecer a concordância entre os chefes, procurara a eles árbitros justos e desinteressados. Esse era o discurso oficial.

A conferência de Berlim de 1885 e a criação do Estado independente do Congo

Em 1885, depois de várias manobras diplomáticas, Leopoldo II obtém em Berlim a autorização de criar um Estado independente do Congo. Paralelamente ao seus discursos proferidos nas grandes conferências, o rei tinham um outro tipo de intenção. Por exemplo, em 11 de dezembro de 1906, é publicada uma entrevista no jornal nova iorquino Publisher’s Press em que ele diz – lembrando que estamos em 1906, mais de vinte anos depois da conferência de Berlim: “Quando se trata de uma raça composta por canibais há milhares de anos, é necessários utilizar métodos que acabará com sua preguiça e o farão compreender o aspecto saudável do trabalho”.

Desde o momento onde, em 1885, Leopoldo II pode criar de o Estado independente do Congo que é seu Estado pessoal, ele realiza um primeiro decreto fundamental: todas as terras consideradas ociosas se tornam propriedade do Estado. Ele se apropria das terras no momento em que o objetivo do Estado independente do Congo era permitir aos chefes congoleses se entenderem e se defenderem dos Árabes que os escravizavam. Na realidade, ele aprova os tratados, via o explorador Stanley, com os chefes constumeiros do Congo, que transferem a propriedade das terras de suas cidades ou de seus domínios ao chefe do Estado independente do Congo, Leopoldo II. As demais terras, um imenso território, são declaradas ociosas e se tornam também propriedade do Estado independente do Congo.

O modelo javanês aplicado pela Bélgica de Leopoldo II no Congo

É quando em que Leopoldo II aplica o modelo de exploração holandesa de Java: ele explora sistematicamente a população que ele é capaz de dominar pela criação da Força Pública, exigindo dessa população que ela colha borracha, se presas dos elefantes, e que forneça os alimentos necessários às necessidades dos colonos. O rei se permite um monopólio sobre quase todas as atividades e riquezas do Congo. Seu modelo implica a exploração máxima das riquezas naturais do Congo por meios que não têm nada a ver com os métodos diretamente modernos de produção industrial. Não, trata-se de forçar a população congolesa a extrair uma quota obrigatória de borracha por cabeça, a caçar para trazer de volta enormes quantidades de presas de elefantes. Leopoldo II mantém uma força colonial dotada de um exército composto principalmente por congoleses e comandado inteiramente por belgas, para impor o respeito à ordem colonial e o respeito às obrigações de rendimento. Ele utilizara sistematicamente métodos de absoluta brutalidade. Para forçar os chefes das cidades e os homens a partirem à colheita, aprisionava-se suas mulheres em campos de concentração onde elas eram regularmente submissas a serviços sexuais por parte dos colonos ou dos congoleses da Força Pública. Se não eram obtidos os resultados e as quantidades obrigatórias, eram cometidos assassinatos ou mutilamentos para dar o “exemplo”. Fotos da época mostram pessoas vítimas dessas mutilações, que possuíam um significado muito preciso. Os soldados da Força Pública precisavam dar a prova de que eles tinham utilizado cada cartucho sabiamente: eles tinham, portanto, que trazer de volta uma mão cortada para provar que o cartucho tinha servido para matar um congolês.

A visão, a política de Leopoldo II, rei e representante dos interesses da Bélgica, do povo belga, correspondia a um modo de colonização extremamente brutal. Ele também diz sobre o modelo de colonização: “Argumentar que tudo o que os brancos produzirão no país deve ser gasto apenas na África e para o benefício dos negros é uma verdadeira heresia, uma injustiça e uma falha que, se pudesse traduzir-se de fato, deteria a marcha da civilização no Congo. O Estado, que só pôde se tornar um Estado com a competição ativa dos brancos, deve ser útil para ambas as raças e fazer com que cada uma tenha seu quinhão.”

Claramente, a parte que cabe ao congolês é o trabalho forçado, o estrangulamento e as mãos decepadas.

Sobre a questão da exploração selvagem da borracha, vou dar apenas alguns números: a exploração da borracha começa em 1893 e está relacionada à demanda por pneus advinda da nascente indústria automobilística e ao desenvolvimento da bicicleta. Produziu-se 33 mil quilos de borracha em 1895, 50 mil quilos em 1896, 278 mil quilos em 1897 e 508 mil quilos em 1898… As colheitas rendem, portanto, lucros extraordinários para as empresas privadas que Leopoldo II criou, da qual ele é o principal acionista, a fim de administrar os negócios do Estado Livre do Congo. O preço de um quilo de borracha na foz do rio Congo é 60 vezes inferior ao preço de venda na Bélgica. Algo similar a coisas muito atuais com os diamantes ou coltan coletados hoje.

A campanha internacional contra os crimes da Bélgica por Leopoldo II no Congo

Essa política finalmente deu origem a uma imensa campanha internacional contra os crimes perpetrados pelo regime leopoldino. São pastores negros dos Estados Unidos que se rebelam contra esse estado de coisas, depois o famoso Morel, que trabalhava para uma empresa britânica em Liverpool e viajava regularmente para Antuérpia. Ele faz a seguinte observação: enquanto Leopoldo II afirma que a Bélgica faz trocas comerciais com o Estado Livre do Congo, os barcos voltam do Congo carregados de presas de elefante, toneladas de borracha, e partem apenas com armas, essencialmente, e comida para a força colonial. Morel pensa que se tratava de um negócio muito estranho. Os belgas da época que apoiavam Leopoldo II nunca reconheceram essa realidade. Eles alegaram que Morel representava os interesses do imperialismo britânico e criticava os belgas apenas para ocupar o seu lugar. Paul Janson, que empresta seu nome ao principal auditório da Universidade Livre de Bruxelas, dirá: “Eu nunca criticarei a obra de Leopoldo (ele era um membro da Câmara), pois aqueles que o criticam, especialmente os britânicos, apenas o fazem por cobiçar sua posição”.

No entanto, os críticos ganham força com os livros de Joseph Conrad, Coração das trevas e O crime do Congo, um livro pouco conhecido de Arthur Conan Doyle, o escritor que inventou Sherlock Holmes. A campanha internacional contra a exploração do Congo resulta em manifestações nos Estados Unidos e também na Grã-Bretanha e acaba produzindo efeitos. Leopoldo II foi obrigado a criar uma comissão internacional de inquérito em 1904, que se mudou para o Congo para coletar testemunhos. Estes são aterradores. O conjunto dos manuscritos pode ser encontrado nos arquivos do Estado belga.

Hoje, o dever da memória em relação aos crimes contra a humanidade cometidos no Congo

Durante os últimos vinte anos, muitas conferências foram dadas, livros foram publicados para denunciar o tipo de Estado que Leopoldo II, rei dos belgas, havia estabelecido no Congo. Em suma, hoje uma literatura vasta e séria se somou aos documentos do período.

Aprendemos, por exemplo, que a parcela do orçamento que o Estado Livre do Congo destinava para gastos militares oscilou entre 38% e 49% do total das despesas. Isto é para mostrar a dimensão da importância do chicote e dos fuzis modernos para estabelecer uma ditadura, que se valia do uso sistemático da brutalidade e dos assassinatos …

Pode-se seguramente considerar que o rei e o Estado Livre do Congo, que ele liderou com o acordo do governo belga e do parlamento na época, são responsáveis por “crimes contra o humanidade “deliberadamente comprometida. Estes crimes não são erros, mas o resultado direto do tipo de exploração a que o povo congolês foi submetido. Alguns autores, e não por menos, falaram de “genocídio”. Proponho não participar de um debate que se concentre nessa questão porque é difícil estabelecer números exatos. Alguns autores sérios estimam que a população congolesa em 1885 chegou a 20 milhões e que na época em que Leopoldo II deveria transmitir à Bélgica em 1908 seu Congo para a Bélgica para transformá-lo no Congo Belga, restavam 10 milhões de congoleses. Estas são estimativas de autores sérios, mas difíceis de provar, pois não havia censo populacional.

Seja lá qual for o número, dezenas ou centenas de milhares de vítimas, são todos vítimas inocentes da atividade colonial de Leopoldo II; trata-se de crimes contra a humanidade e é fundamental restaurar a verdade histórica. Os cidadãos, notadamente os jovens, que entram no salão da câmara municipal da cidade de Liège, ou da Rue du Trône até à Place Royale em Bruxelas, passam pela placa a saudar o trabalho colonial; ou em frente à estátua equestre de Leopoldo II. Os cidadãos passam pela estátua de Leopoldo II, erguida em Ostende, à beira-mar, veem um majestoso Leopoldo II com congoleses gratos, abaixo, estendendo suas mãos agradecidas a ele com apenas o comentário sobre o papel civilizador de Leopoldo II para libertar os congoleses do tráfico de escravos… É urgente restaurar a verdade histórica e deixar de mentir aos nossos filhos, mentir aos cidadãos belgas, deixar de insultar a memória das vítimas, os descendentes das vítimas e descendentes dos congoleses que sofreram em sua carne, em sua dignidade, uma dominação absolutamente terrível.

Este dever de memória deve ser feito não só lá. Evitemos um debate do tipo: “você só critica a Bélgica e cala sobre o que houve em outros lugares”. Comecei minha apresentação definindo o contexto: a Grã-Bretanha dominou o Sul da Ásia de forma extremamente brutal; os Países Baixos dominaram com extrema violência as populações da Indonésia; antes disso, três quartos da população haviam sido exterminados do que então se chamava as Américas e, no caso do Caribe, quase 100% da população foi exterminada no século XVI. O Estado belga não tem nenhum monopólio da brutalidade, mas estamos na Bélgica e, como cidadãos belgas, com os nossos amigos congoleses, com os nacionais dos diferentes países que vivem na Bélgica, é fundamental que se cumpra este dever de memória e restabelecimento da verdade histórica. Como podemos propor, pode ser desmantelando a placa de bronze encontrada na prefeitura e colocando-a em um museu com todas as explicações necessárias. No mínimo, a placa pode ser acompanhada por uma explicação adequada, correspondente à verdade histórica, com base em trabalhos científicos. É por isso que pedimos às autoridades comunais que contribuam para a justiça dos cidadãos do Congo e, aqui, todos os cidadãos do mundo. É também por isso que estamos a apelar ao estabelecimento de uma comissão parlamentar de inquérito sobre o passado colonial da Bélgica.

Fonte: http://www.cadtm.org/spip.php?page=imprimer&id_article=2922


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