A evolução do regime do presidente Daniel Ortega a partir de 2007

No segundo texto da série, autor analisa como Ortega conseguiu tornar aceitável a sua eleição pelas classes dominantes sem perder o apoio de dirigentes populares.

Éric Toussaint 3 ago 2018, 17:15

A fim de ganhar as eleições presidenciais de Novembro de 2006, Daniel Ortega conseguiu tornar aceitável a sua eleição pelas classes dominantes, nomeadamente a associação patronal COSEP, a direcção da Igreja Católica representada pelo cardeal Obando y Bravo, os antigos presidentes Arnoldo Alemán e Enrique Bolaños, o FMI. Daniel Ortega fez também por conservar o apoio de uma série de dirigentes das organizações populares sandinistas. E conseguiu alcançar este objectivo até aos dias de hoje. Os dirigentes em questão consideram Ortega o protector duma série de conquistas dessas organizações e sobretudo das suas direcções.

O que Ortega conseguiu fazer de 2007 a 2018 traz à memória o que fez no México o Partido Revolucionário Institucional (PRI) nos anos 1960-1970 (ver caixa sobre o regime do PRI): defender os interesses do grande capital, abrir ainda mais a economia às grandes empresas estrangeiras, manter boas relações com o FMI, o Banco Mundial e outros organismos multilaterais, sempre assegurando o apoio de uma série de organizações populares sobre as quais exerce uma influência muito forte, manter uma assistência social mínima (apoio material e financeiro aos mais pobres, sem combater estruturalmente as causas da pobreza), graças a uma conjuntura económica internacional favorável às exportações e à ajuda fornecida pela Venezuela. Tal como o PRI em 1968, Ortega não hesitou em utilizar a violência contra os protestos sociais. Mas, proporcionalmente à dimensão da população, fê-lo em 2018 numa escala muito superior à do PRI. Tal como o PRI nessa época, Ortega beneficia do apoio de vários governos anti-imperialistas (Cuba, Venezuela, Bolívia) e de uma parte da esquerda latino-americana. Quanto tempo pode isto durar? Depende de vários factores: a amplitude da crise económica do modelo que reduz a margem para uma política de distribuição de algumas migalhas para os mais pobres, a capacidade dos movimentos sociais e da esquerda radical nicaraguenses para ultrapassar a desorientação, o desânimo, a repressão brutal, o descrédito lançado sobre o sandinismo e o socialismo pela caricatura que é o regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo, e a capacidade da esquerda internacional para ultrapassar a sua desorientação.

O regime do PRI no México

O PRI, criado em 1946, conseguiu, a partir dos anos 1950-1960, deturpar e desviar o que restava da Revolução Mexicana de 1910-1920 e das grandes conquistas sociais realizadas durante o mandato presidencial de Lázaro Cárdenas entre 1934 e 1940 (nacionalização do petróleo e dos caminhos de ferro, expropriação de 16 milhões de hectares aos proprietários estrangeiros ou nacionais e redistribuição dessas terras às comunidades nativas «índias» para uso colectivo, vitória sobre a dívida – com uma redução de 90 % – devida principalmente aos bancos norte-americanos – ver Éric Toussaint, Le Systême Dette, Les Liens Qui Libèrent, 2017, cap. 11, p. 242-243). O PRI monopolizou o poder e rodeou-se de satélites. Controlava os sindicatos operários e da função pública, assim como a maioria das organizações camponesas. Controlava todos os órgãos do Estado, uma parte das indústrias estratégicas e os meios de comunicação de massa. Reprimiu muito duramente a sublevação estudantil de 2 de Outubro de 1968, provocando o massacre de Tlatelolco. O número exacto de mortos nunca foi revelado. Fontes credíveis falam de 300 mortos. O governo do PRI acabou por reconhecer uma trintena de mortos, mas este número não convence. No rescaldo da repressão de 1968, o PRI conseguiu eliminar centenas de militantes de esquerda, tornando banais os desaparecimentos, a fim de permanecer no poder. Utilizou grupos paramilitares para organizar a repressão e fazer execuções. A partir dos anos 1980, eliminou progressivamente numerosas conquistas sociais que subsistiam do período 1910-1940. Na sua qualidade de partido-estado adoptou as recomendações do Consenso de Washington, privatizou massivamente o sector público e iniciou uma forte liberalização dos mercados no México.

Apesar da repressão, o PRI no governo conseguiu obter o silêncio cúmplice de vários governos e partidos de esquerda na América Latina até aos anos 1990, pois defendia interesses que divergiam dos de Washington quanto a alguns aspectos de monta.

Para compreender o carácter complexo da política do PRI no poder e as suas relações particulares com a esquerda latino-americana, é interessante olhar para alguns exemplos. O presidente «terceiro-mundista» Echeverría (1970-1976) rompeu as relações com a ditadura de Pinochet e acolheu centenas de militantes chilenos perseguidos. Ofereceu também asilo a militantes de esquerda provenientes da Argentina, do Uruguai e do Brasil. Mas ao mesmo tempo Echeverría (que aliás era um colaborador da CIA) aplicou pela primeira vez de maneira massiva a política de desaparecimentos forçados, para eliminar guerrilheiros mexicanos. Ora, as políticas progressistas, como seja o acolhimento de exilados da esquerda latino-americana, levaram uma parte da esquerda a não criticar o regime do PRI. Assim, quando a militante dos direitos humanos Rosario Ibarra (a quem o regime do PRI fez desaparecer o filho, em Abril de 1975) participou, como animadora do Comité Eureka, nas reuniões do FEDEFAM (Federación Latinoamericana de Asociaciones de Familiares de Detenidos-Desaparecidos), foi duramente criticada pelas Mães dos desaparecidos do Cone Sul (Argentina, Chile, Uruguai, etc.), sobretudo as chilenas, que se recusavam incluir o México na lista dos regimes que praticavam os desaparecimentos à força. As militantes chilenas não queriam que se mencionasse o regime do presidente Echeverría, nomeadamente por ele oferecer asilo a dirigentes e militantes da Unidade Popular fugitivos à ditadura de Pinochet. Mais tarde, o governo mexicano foi dos primeiros a reconhecer o regime sandinista, que tinha derrubado a ditadura de Somoza. Além disso apoiou o processo de negociação entre a guerrilha salvadorenha e o regime no poder. O governo mexicano tinha além disso permitido a Fidel Castro e aos seus camaradas, entre os quais Raul Castro e Che, treinarem-se no México, antes de lançarem a expedição contra o regime de Batista em Novembro de 1956, partindo da costa do México a bordo do barco Granma. O regime mexicano defendeu o regime cubano face aos EUA depois da vitória da revolução em 1959.

O governo do PRI do presidente Carlos Salinas de Gortari (de 1988 até finais de 1994) reprimiu o levantamento zapatista a partir de Janeiro de 1994. O monopólio do poder do PRI começou a fracturar-se com os acontecimentos trágicos do sismo de 1985, que abalou duramente a Cidade do México. A sociedade teve de se organizar por si mesma para colmatar a inacção governamental durante a catástrofe natural, o que deu origem a uma nova consciência social e política. A fractura decisiva do monopólio do PRI manifestou-se nas eleições para o governo da Cidade do México em 1997, quando Cuauhtémoc Cárdenas (filho de Lázaro Cárdenas) foi eleito governador como candidato de um partido que se opunha ao PRI.
O PRI regressou ao poder em 2012. Em Julho de 2018, Andrés Manuel López Obrador, opositor ao PRI, à cabeça da Morena – uma formação de centro-esquerda – ganhou as eleições e tornou-se presidente.

Voltemos ao que se passou depois da vitória eleitoral de Daniel Ortega em Novembro de 2006 e o início da sua presidência em 2007. Como diz Mónica Baltodano, ex-comandante guerrilheira: “Em 2007, com a chegada de Ortega à Presidência, manifesta-se de maneira evidente uma tendência que se tinha tornado cada vez mais clara. O pragmatismo económico exibido pela Frente em relação às privatizações e às políticas neoliberais crescia a olhos vistos. Começa então uma nova fase em que Ortega entra num processo de aproximação com o outro pilar do poder nacional: os grandes patrões, agrupados no Conselho Superior das Empresas Privadas (COSEP). Foi então que se produziu a simbiose entre Ortega e o grande capital nacional. Não lhe chamo aliança: trata-se duma simbiose, pois o que define a natureza do regime actual é a sua missão principal consistir em fortalecer e criar condições para a economia de mercado, fortalecer o grande capital, não deixando de distribuir algumas migalhas aos pobres, para que estes permaneçam tranquilos. (…) Ortega e o seu grupo não estão com o grande capital por conveniência táctica. Estão com o grande capital, porque agora eles próprios se tornaram um importante grupo capitalista: actualmente o governo representa essa comunidade de interesses entre a nova oligarquia sandinista, a oligarquia tradicional e o grande capital multinacional”.

Daniel Ortega recusa pôr em causa a legitimidade da dívida reclamada à Nicarágua e a renovação dos acordos com o FMI

A seguir à vitória da Revolução de Julho de 1979, a direcção sandinista decidiu não pôr em causa o reembolso da dívida contraída pela dinastia Somoza. No entanto essa dívida, na sua totalidade, preenchia os dois critérios que permitem qualificar uma dívida como odiosa e recusar o seu pagamento: não tinha beneficiado a nação e os credores sabiam-no, por serem directamente cúmplices do regime corrupto de Somozaii. Facto agravante, mas não indispensável para qualificação de odiosa: a dívida serviu para financiar uma ditadura responsável por crimes contra a humanidade.

A dívida acumulada depois disso pelos três governos de direita que se sucederam entre 1990 e 2007 serviu para financiar as contra-reformas neoliberais, as privatizações, os atentados aos direitos económicos e sociais da população. Além disso foi possível demonstrar que essa dívida tinha alimentado a corrupção, em particular durante o mandato de Arnoldo Alemán (1997-2002). Daniel Ortega, depois de ter sido eleito presidente, tinha podido – se quisesse – inspirar-se na iniciativa do presidente do Equador, Rafael Correa, que também foi eleito em finais de 2006. Rafael Correa montou uma comissão de auditoria da dívida em Julho de 2007, com ampla participação cidadã (incluindo representantes de movimentos sociais muito críticos a seu respeito, como a CANAI e Ecuarunari). Esta comissão tinha por missão identificar a parte ilegítima e ilegal da dívida pública(link is external) interna e externa reclamada ao Equador. Com base nos trabalhos da comissão, o Governo do Equador suspendeu unilateralmente, em Novembro de 2008, o pagamento de uma parte da dívida identificada pela comissão de auditoria como ilegítima e ilegal. Graças a ela, o Equador obteve em 2009 uma vitória sobre os credores. Acrescentemos que o Equador expulsou em Maio de 2007 o representante permanente do Banco Mundial; e pediu ao FMI – organismo com o qual decidiu não voltar a assinar acordos – que abandonasse os locais que ocupava nos edifícios do Banco Central(link is external). Recordemos ainda que a Bolívia, seguida pelo Equador e a Venezuela, decidiram abandonar o organismo de arbitragem do Banco Mundial em matéria de litígios sobre os investimentos (CIRDI).

Daniel Ortega adoptou uma atitude completamente diferente: fez tudo por manter boas relações como o FMI e afirmou que aplicaria as reformas que este pretendia. Empenhou-se em produzir um excedente primário do orçamento, a fim de continuar com o reembolso da dívida e comprimir o défice orçamental. Optar por esta via implicava recusar uma resposta positiva à legítima reivindicação de aumentos salariais dos trabalhadores da função pública, que tinham retribuições particularmente baixas, em particular no ensino e na saúdeiii.

Daniel Ortega aumentou o número de tratados de livre comércio

Quando a FSLN estava na oposição, Daniel Ortega, como principal dirigente, conseguiu que o grupo parlamentar sandinista votasse em 2006 a favor de tratados de comércio livre com os EUA. Foi mais uma reviravolta na orientação da FSLN, porque antes disso ele tinha acusado o Governo do presidente Enrique Bolaños de submeter a Nicarágua aos interesses de Washington. A aprovação pelos deputados da FSLN desse tratado foi acompanhada do apoio à mudança de uma série de leis conformes às condições prévias avançadas pelos EUA. Outros tratados de livre comércio foram aprovados com o apoio da FSLN: um tratado com Taiwan (com início de aplicação em 2008), um que envolve a América Central com o México (2011) e outro entre a América Central e a União Europeia (2012).

Daniel Ortega ampliou a abertura da Nicarágua aos interesses das empresas estrangeiras no domínio do agronegócio, das indústrias mineiras, da pesca

O Observatório das Multinacionais na América Latina (OMAL), sediado no país basco e claramente inclinado para a defesa dos interesses dos povos, forneceu estudos detalhados sobre os compromissos do governo de Daniel Ortega com as multinacionais, no seguimento dos seus antecessores.

Mónica Baltodano faz referência a este facto no seu testemunho. Segundo ela, as relações do governo de Enrique Bolaños com a multinacional espanhola Unión Fenosa, do sector da energia, eram tensas. Bolaños tinha apresentado queixas contra a Unión Fenosa e correram 12 julgamentos e sentenças pronunciadas pelos tribunais contra essa multinacional. Mónica Baltodano afirma: «Tudo se resolveu com o governo de Ortega. Em Novembro de 2007, enquanto Daniel Ortega declamava um discurso virulento contra as multinacionais na cimeira ibero-americana, em Santiago do Chile, Bayardo Arce [homem de confiança de Daniel Ortega, antigo membro da direcção nacional que se aproveitou fortemente da piñata, E.T.] voava para o Palácio de Moncloa, em Madrid, ao encontro da direcção da Unión Fenosa. A partir do «Protocolo de Acordo entre o Governo da Nicarágua e a Unión Fenosa» – que viria a ter honras de lei, a 12/02/2009, pela Assembleia Nacional, numa legislação que incluía toda a espécie de garantias para a empresa – todo o passado conflituoso foi rasurado. Rasurados foram todos os julgamentos, todas as queixas e multas pendentes. A seguir outras leis foram promulgadas em benefício da multinacional. Jamais as relações com a multinacional espanhola que distribui a energia foram tão fluidas como com este governo”.iv

Baltodano acrescenta que, sob a presidência de Daniel Ortega, a privatização do sector energético, e portanto dos recursos naturais nicaraguenses, foi crescente e em proveito das multinacionais, nomeadamente naquelas em que Ortega investiu. Mónica Baltodano sublinha a apropriação, apoiada pelo Governo, «das principais explorações mineiras do país» pela empresa B2Gold, com sede no Canadáv, com consequências nefastas para o ambiente e as comunidades locais. Baltodano denuncia ainda a desflorestação derivada das concessões cedidas às «máfias da madeira»

Mónica Baltodano descreve também a maneira como a multinacional Pescanova conseguiu obter belos negócios sob o governo de Daniel Ortega: «Outro exemplo, menos conhecido, é o da pesca, pela mão da multinacional espanhola Pescanova. A investigadora espanhola María Mestre publicou na Diagonal (Dezembro/2010) um relatório sobre a acção(link is external) da Pescanova na Nicaraguavi. A Pescanova chegou à Nicarágua em 2002, onde comprou a empresa Ultracongelados Antártida S.A., a maior fábrica espanhola de processamento de mariscos, que possuía um terço duma empresa nicaraguense de produção de camarão e laborava em Chinandega. A partir daí, a Pescanova expandiu-se, não se limitando a processar o camarão e a produção de larvas de camarão em laboratório, mas também obtendo cada vez mais área de concessão. Em 2006 a Pescanova dispunha de 2500 hectares; em 2008 – sob o governo de Ortega – tinha duplicado a área e controlava 58 % da superfície de concessão de pescas. Entre Janeiro e Abril/2009, a Pescanova já controlava 82 %”.vii

O canal interoceânico

Este projecto com mais de dois séculos foi reactivado pelo governo de Daniel Ortega. A 14/Junho/2013 a Assembleia Nacional da Nicarágua aprovou por 61 votos contra 28 uma lei que outorga uma concessão, por períodos renováveis de 50 anos, ao consórcio chinês HKDN Nicaragua Canal Development. Os custos são calculados em 50 000 milhões de dólares (41 000 milhões de euros). A construção começou em 2015 e deveria terminar em 2019, com abertura prevista para 2020. Finalmente a realização do projecto foi suspensa, pois a empresa chinesa foi à falência e o seu proprietário desapareceu.
O projecto suscitou a oposição das organizações ecologistas e científicas. Existe o risco grave de poluição do lago da Nicarágua, que constitui uma importante reserva de água doce para a biodiversidade e para a população local, que bebe a água do lago e se serve dela para regar as terras agrícolas. No plano social, 25 000 pessoas teriam de ser deslocadas.

A proibição total do aborto entra em vigor no código penal de 2008

Como foi mencionado no artigo anterior, o grupo parlamentar sandinista votou em 2006, de mão dada com os conservadores, uma lei que proíbe inteiramente o aborto. Foi sob a presidência de Daniel Ortega, que recusou fazer marcha atrás, que esta proibição foi incluída no novo código penal que entrou em vigor em Julho/2008. A proibição não prevê qualquer excepção, mesmo em caso de perigo de vida para a mulher grávida ou em caso de gravidez resultante de uma violação. A Amnistia Internacional esclarece: «Devido à grande taxa de gravidez adolescente na Nicarágua, uma grande parte das mulheres afectadas pela nova legislação tem menos de 18 anos. A revogação das normas que autorizavam o aborto terapêutico põe em risco a vida de mulheres adultas e jovens e coloca os profissionais da saúde numa posição inadmissível». Antes da aprovação deste novo código penal, o aborto «terapêutico» (em caso de perigo para a saúde da mulher grávida ou em caso de gravidez resultante de violação) era legal e considerado legítimo e necessário, graças a uma lei aprovada pelo governo liberal de Zelaya em 1893, no seguimento de uma evolução iniciada em 1837. Um governo representante dos interesses populares deveria ter tomado em mãos um novo avanço na legislação, alargando o direito ao aborto (por exemplo, autorizando a mulher grávida a decidir por si mesma, quaisquer que fossem as causas da gravidez, e suprimindo a norma que previa a obrigatoriedade de três médicos se porem de acordo sobre a interrupção da gravidez e de a mulher grávida ter de obter o consentimento do marido ou da família mais chegada). Em vez disso, Ortega decidiu dar um terrível passo atrás.

Esta lei retrógrada foi acompanhada de ataques graves contra as organizações de defesa dos direitos das mulheres, que foram das mais activas na oposição ao governo de Daniel Ortega. Em especial o Movimiento Autónomo de Mujeres de Nicaragua (MAM), fortemente mobilizado contra a proibição da interrupção voluntária da gravidez, viu-se sob a mira das autoridades. Os movimentos feministas foram vítimas da repressão administrativa, policial e judiciária. A fim de as varrer, Daniel Ortega e Rosario Murillo intimaram-nas a juntar-se ao movimento de mulheres afecto ao regime. Noutra deriva muito inquietante do regime, Murillo não se coibiu de denunciar o MAM e os seus apoiantes estrangeiros na luta pelo direito ao aborto como sendo obra do diabo.

O recurso à religião

Daniel Ortega e Rosario Murillo recorrem sistematicamente a referências à religião cristã, afirmando com frequência que estão sob a graça de Deus. O regime dirigido por esta parelha presidencial provocou um profundo recuo ideológico. No seguimento deste texto, Deus, o Diabo, a Fé, a Justiça Divina aparecem em maiúsculas para reflectir o facto de em todos os textos de Murillo e Ortega eles serem grafados dessa maneira.

Falando das mutações sofridas pela FSLN sob a direcção de Daniel Ortega e Rosario Murillo, Mónica Boltadano escreve: «Uma segunda mutação a analisar é a que levou a Frente Sandinista do racionalismo ao fundamentalismo religioso. O programa da revolução reivindicava o respeito pelas crenças religiosas e preconizava o laicismo. A Constituição de 1987 estabelece que o Estado não tem religião oficial e que a educação pública é laica. Em que pé estamos agora? O uso e abuso da religiosidade popular e a sua manipulação contínua, com vista a fortalecer o projecto de poder. As instituições do Estado operam como reprodutoras das crenças religiosas, para sublinhar que tudo o que se passa no país resulta da «vontade de Deus». Estabelecendo assim que a autoridade [de Rosario Murillo e de Daniel Ortega, ET] provém da vontade divina, tal como no absolutismo monárquico, em que os reis afirmavam receber o seu poder directamente de Deus. E este laço divino, segundo o discurso oficial, faz com que a Nicarágua viva “abençoada e próspera”. Em resultado deste modelo, as hierarquias religiosas fazem lei, as Igrejas comandam, as autoridades civis promovem crendices religiosas e todas as instituições do Estado e municipais se encontram cheias de imagens, símbolos e mensagens religiosas.»

Da parte de Rosario Murillo, as referências a Deus e ao Diabo já vêm de longe – encontrei um extracto de um artigo assinado por ela em 1991 como responsável da Ventana, o suplemento cultural do diário sandinista Barricada. Na fase de preparação do primeiro Congresso da FSLN escrevia ela: «Dentro da Frente encontramos sandinistas e não sandinistas. Milionários e miseráveis. Almas de Deus e almas do Diabo (…). Sim, meus senhores, a Frente Sandinista é actualmente uma frente, e como frente, onde se encontra de tudo, é neste momento um monte de merda»viii. Mais tarde Murillo abandonou esta classificação grosseira da Frente como um monte de merda, mas em compensação introduziu em todos os seus discursos uma apresentação maniqueísta e religiosa fundamentalista, conservadora e obscurantista dos acontecimentos e das pessoas.

No discurso pronunciado por Rosario Murillo a 19/Julho/2018, aquando da celebração do 39.º aniversário da vitória da revolução, fez apelo constante à fé, à graça de Deus, à denúncia das acções diabólicas dos manifestantes que protestam contra a política do regime que ela co-dirige.

No dia seguinte prosseguiu na mesma senda com uma declaração na cadeia de TV Canal 4, que é propriedade de um dos seus filhos: «Sabemos que existem Instituições dispostas a reconhecer os delitos e os crimes de quem causou tanta dor, tanta morte, tanto sofrimento, tantos crimes aberrantes, diabólicos, na nossa Nicarágua. E confiamos na Justiça, confiamos também na Justiça Divina.»ix
Mais adiante acrescenta: «Este povo de Deus, porque o povo nicaraguano é um povo de Deus! Poucos povos há no mundo com tanta Fé e tanta Devoção, e com tanta Relação com Deus. E nós, os Católicos, com a Virgem Maria, com tanta (…) Fé.»x

Na mesma declaração ela opõe o povo às mulheres e aos homens que lutam pela despenalização do aborto, exprimindo-se da seguinte maneira: «Um povo que defendeu a Vida em todas as suas formas, desde o ventre materno … Desde o ventre materno! No entanto, muitos que se dizem “Cívicos”, mas que de cívicos nada têm por serem criminosos, desfilaram nas ruas de Manágua para pedirem o Aborto. Atentando contra a Vida! É esta a Verdade.»xi
Rosario Murillo apresentou os manifestantes que protestam desde 18/Abril/2018 como os verdadeiros culpados das centenas de mortos que enlutam o povo: «… o Povo sabe, sabe quem provocou os mortos; sabe-o bem, porque esses mesmos, por suas lutas de ambição, pela sua cultura da droga, com a qual pretendem aterrorizar o país, pessoas drogadas, alcoólicas, pessoas ligadas a toda a espécie de crimes e delinquências; o Povo nicaraguense sabe que entre eles mesmos provocaram um morticínio para culparem o Governo.»xii

Na véspera, a 19/Julho/2018, aquando de um grande ajuntamento convocado pelo regime, Daniel Ortega também foi longe na sua argumentação maniqueísta e inquisitorial. Segundo ele, os contestatários, que ele apelidou de terroristas e putschistas, usam de práticas diabólicas e satânicas. Afirmou que os terroristas torturam «de maneira satânica» (sic!) as pessoas do povo nas barricadas!xiii Afirmou literalmente que os contestatários «terroristas» e «putschistas» estão totalmente «satanizados». Apelou aos bispos católicos para que «exorcizem» esses «diabos» (foram estes os termos utilizados por Ortega para designar os manifestantes) para expulsarem o diabo que se apoderou deles. Ortega afirma que eles lançam fogo aos cadáveres junto às barricadas e que dançam à volta deles. Apelou aos bispos para que respeitem a palavra de Deus e não apoiem as exigências dos manifestantes contestatários, que pedem a demissão do casal presidencial.

A terceira parte versará sobre a crise dramática de Abril a Julho/2018 na Nicarágua.
O autor esteve uma dúzia de vezes na Nicarágua e no resto da América Central entre 1984 e 1992. Participou na organização de brigadas de trabalho voluntário de sindicalistas e doutros militantes da solidariedade internacional que partiram da Bélgica para a Nicarágua durante os anos 1985-1989. Foi um dos animadores das FGTBistes para a Nicarágua. Encontrou-se com diversos membros da direcção sandinista: Tomas Borge, Henry Ruiz, Luis Carrión, Victor Tirado Lopez durante o período 1984-1992. Esteve em contacto com o ATC, organização sandinista de trabalhadores agrícolas. Foi convidado para o primeiro congresso da FSLN em julho de 1991 e para o 3º Fórum de São Paulo, que decorreu em Manágua em julho de 1993. No International Institute for Research and Education d’Amsterdam deu aulas de formação, na década de 1980, sobre a estratégia revolucionária da FSLN, antes da tomada do poder no período pós-1979.

O autor agradece a Nathan Legrand a sua revisão e ajuda na procura de documentos. Agradece a Claude Quémar e a Brigitte Ponet as suas revisões e a Joaldo Dominguez a edição digital.

[Reprodução da versão traduzida pelo esquerda.net.]


i Mónica Baltodano, «Qu’est-ce que ce régime? Quelles ont été les mutations du FSLN pour arriver à ce qu’il est aujourd’hui?», Inprecor n.° 651/652, maio-junho/2018 (ou aqui).

ii Sobre a doutrina da dívida odiosa ver: http://www.cadtm.org/Dette-odieuse?lang=fr(link is external) e http://www.cadtm.org/Demystifier-Alexandre-Nahum-Sack(link is external)

iii Adolfo Acevedo Vogl, «Nicaragua: Hacia el quinto programa con el FMI», 23/11/2006, http://www.cadtm.org/Nicaragua-Hacia-el-quinto-programa(link is external)
Adolfo Acevedo Vogl, «Cuales son les principales exigencias del FMI?», 21/12/2006, http://www.cadtm.org/CUALES-SON-LAS-PRINCIPALES(link is external)
Adolfo Acevedo Vogl, 7 Fevereiro/2008, «La aprobacion del presupuesto: un posicionamiento y una propuesta. se apunta usted a respaldarla???» http://www.cadtm.org/LA-APROBACION-DEL-PRESUPUESTO-UN(link is external)
Adolfo Acevedo Vogl, «Nicaragua: La Carta de Intencion al FMI y la “sobre-recaudacion” fiscal. Una propuesta ciudadana», 20/09/2008, http://www.cadtm.org/Nicaragua-La-Carta-de-Intencion-al(link is external)

iv Mónica Baltodano, op. Cit.

v Ver http://www.b2gold.com/projects/nicaragua/(link is external)

vi Maria Mestre, «Pescanova, el gigante camaronero de Nicaragua», 3/12/2010, Diagonal: https://www.diagonalperiodico.net/global/pescanova-gigante-camaronero-nicaragua.html(link is external)

vii Mónica Baltodano, op. Cit.

viii Extracto citado em Éric Toussaint «Front ou parti: que choisir?», Inprecor, n.° 329, 26/Abril/1991.
ix «Sabemos que hay Instituciones que serán capaces de reconocer los delitos y los crímenes de quienes han causado, tanto dolor, tanta muerte, tanto sufrimiento, tantos crímenes aberrantes, diabólicos, en nuestra Nicaragua. Y confiamos en la Justicia, confiamos en la Justicia Divina también.» http://www.lavozdelsandinismo.com/nicaragua/2018-07-20/declaraciones-de-la-companera-rosario-murillo-vicepresidenta-de-nicaragua-20-07-2018-texto-integro/(link is external) ou https://www.el19digital.com/articulos/ver/titulo:79300-rosario-en-multinoticias-20-de-julio-del-2018(link is external)

x «Ese Pueblo de Dios, porque el Pueblo nicaragüenses es el Pueblo de Dios! Pocos Pueblos hay en el Mundo con tanta Fé y tanta Devoción, y con tanta Relación con Dios. Y nosotr@s, los Católic@s, con la Virgen María, con tanta Relación, con tanta Fé.»

xi «Un Pueblo que ha defendido la Vida en todas sus formas, desde el vientre materno… Desde el vientre materno! Mientras, muchos de los que hoy se llaman “Cívicos”, que de Cívicos no tienen nada porque son criminales, han desfilado en las Calles de Managua, pidiendo Aborto. Atentando contra la Vida ! Esa es la Verdad.»

xii «…el Pueblo lo sabe, sabe quién produjo los muertos; sabe incluso, porque sabemos cómo entre ellos mismos por sus pleitos de ambición, por sus pleitos también propios de esa cultura de drogadicción con la que pretendieron aterrorizar al País, personas drogadictas, alcohólicas, personas vinculadas a todo tipo de crímenes y delincuencia; el Pueblo nicaragüense sabe que ahí también entre ellos mismos se quitaron la Vida para culpar al Gobierno.»

xiii Ver em espanhol em vídeo os discursos de Rosario Murillo e de Daniel Ortega. A passagem do discurso de Ortega aqui referida começa às 2:10 h do vídeo.


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