Breve história das relações entre o Banco Mundial, o FMI e o Governo da Nicarágua

No quarto artigo da série, autor trata da relação do país caribenho com as grandes instituições da economia capitalista mundial.

Éric Toussaint 10 set 2018, 17:17

A América Central é considerada pelo Governo dos EUA como fazendo parte da sua zona de influência exclusiva. A política adotada pelo Banco Mundial em termos de empréstimos aos países da região é diretamente influenciada pelas escolhas políticas do Governo dos EUA. O caso da Nicarágua e da Guatemala nos anos 1950 é perfeitamente claro.

“Um dos principais países devedores [ao Banco Mundial], do ponto de vista do número de empréstimos, era a Nicarágua, um país com um milhão de habitantes controlado pela família Somoza. ‘Washington e os Somoza consideravam proveitosa a sua relação mútua. Os EUA apoiavam os Somoza e os Somoza apoiavam os EUA nas votações nas Nações Unidas e nas organizações regionais. Somoza ofereceu o território nicaraguense como base de treino e de expedição das forças cubanas no exílio, que acabaram num desastre na baía dos Porcos em 1961’ (Anthony Lake, Somoza Falling, Houghton Mifflin, 1989, p. 18). Entre 1951 e 1956, a Nicarágua recebeu nove empréstimos do Banco Mundial e um em 1960. Em 1953 estabeleceu-se uma base militar norte-americana donde foi lançada a operação da Central Intelligence Agency (CIA) que permitiu o derrube do presidente guatemalteco Jacobo Arbenz, que acabara de legalizar o Partido Comunista e ameaçava expropriar os haveres da United Fruit Company. A própria Guatemala, que tinha uma população três vezes superior à da Nicarágua, apesar de ser um dos primeiros países a receber uma delegação do Banco Mundial encarregada de efetuar um estudo sobre o país (publicado em 1951), teve de esperar até 1955 para receber o seu primeiro empréstimo, após o derrube do seu regime ‘comunista’”.1

A 12 de Abril de 1961, cinco dias antes de os EUA lançarem uma expedição militar contra Cuba a partir do território nicaraguense,2 a direção do Banco Mundial decidiu conceder à Nicarágua um empréstimo, sabendo perfeitamente que o dinheiro serviria para reforçar o poder económico do ditador. Isto fazia parte do preço a pagar pelo apoio à agressão contra Cuba. Eis um trecho da ata sobre a discussão entre os dirigentes do Banco, em 12 de Abril de 1961:

Sr. [Aron] Broches. Ouvi dizer que a família Somoza está em toda a parte e que seria difícil encontrar seja o que for na Nicarágua sem tropeçar neles.
Sr. [Robert] Cavanaugh. Não gostaria de dar a impressão que estou a promover um acordo que obrigue o povo para vender as terras cobiçadas pelo presidente.
Sr. [Simon] Cargill. Dado que o projeto em si mesmo é interessante, não creio que o interesse do presidente coloque um problema tal que obrigue ao seu abandono.
Sr. Rucinski. Estou de acordo em que é demasiado tarde para fazer marcha-atrás.
Sr. Aldewereld. O problema da propriedade das terras e da família Somoza é constrangedor, mas já sabíamos disso desde o início e agora é demasiado tarde para o discutirmos.
Quanto à atitude do Banco Mundial em relação ao regime sandinista nos anos 1980 e a influência exercida sobre o Banco pelo Governo dos EUA, citamos aqui um trecho do estudo de Catherine Gwin: “A Nicarágua dos anos 1980 constitui o exemplo mais recente que demonstra que a recusa de cedência de créditos pelo Banco [Mundial] coincide claramente com a política dos EUA. A razão invocada para a suspensão dos empréstimos foi a acumulação de atrasos. No entanto, em setembro de 1984 o Governo nicaraguense propôs formalmente uma solução para o problema das dívidas em atraso.3 Catherine Gwin apresenta em pormenor as propostas concretas formuladas pela Nicarágua e explica que embora essas propostas fossem aceitáveis, o Banco Mundial não fez qualquer esforço para ajudar o Governo da Nicarágua. Acrescenta que esta atitude contrasta com a leveza adotada pelo Banco Mundial em relação a outros regimes aliados dos EUA.

Lembrete: Embora o clã dos Somoza estivesse no poder na Nicarágua desde a década de 1930, graças a uma intervenção militar dos EUA, um poderoso movimento popular derrubou a ditadura a 18 de julho de 1979 e obrigou o ditador Anastasio Somoza a fugir. Os Somoza, detestados pelo povo, açambarcaram uma grande parte das riquezas do país e favoreceram a implantação de grandes empresas estrangeiras, sobretudo norte-americanas. A ditadura de Anastasio Somoza beneficiou de numerosos empréstimos do Banco Mundial. Após a queda da ditadura formou-se um governo de aliança que agrupava a oposição democrática tradicional (representante da fração “liberal” da burguesia e dirigida por chefes de empresa) e os revolucionários sandinistas, que não escondiam nem as suas simpatias por Cuba nem a sua disposição para empreender certas reformas progressistas (reforma agrária, nacionalização de certas empresas estrangeiras, confisco das terras pertencentes ao clã dos Somoza, programa de alfabetização, etc.).

Washington, que apoiou Anastasio Somoza até ao fim, considerava que o novo governo constituía uma ameaça de contágio comunista na América Central. No entanto a administração Carter, que estava no poder aquando do derrube da ditadura, não adotou de imediato uma postura agressiva. Mas as coisas mudam imediatamente quando Ronald Reagan entrou para a Casa Branca. A partir de 1981 Reagan anunciou a intenção de fazer cair os sandinistas e apoiou financeira e militarmente uma rebelião composta por antigos membros da guarda nacional (conhecidos como os “Contra-revolucionários” ou simplesmente os “Contras”). A aviação norte-americana minou vários portos nicaraguenses (ver quadro sobre a condenação dos EUA pelo Tribunal Internacional de Justiça, sediado em Haia). Face a esta hostilidade, o governo de maioria sandinista radicalizou a sua política. Nas eleições de 1984, que se desenrolam de forma democrática pela primeira vez em meio século, o sandinista Daniel Ortega foi eleito presidente com 67% dos votos. No ano seguinte os EUA decretam um embargo comercial contra a Nicarágua, que isola o país dos investidores estrangeiros. O Banco Mundial, por seu lado, interrompe os empréstimos a partir da vitória sandinista nas eleições presidenciais. Os sandinistas tentam então ativamente convencer o Banco Mundial a repor o crédito.

Mostram-se mesmo dispostos a aplicar um plano de ajustamento estrutural draconiano, posto em prática a partir de 1988. Contudo o Banco Mundial insiste na sua atitude e só volta a ceder crédito após a derrota eleitoral dos sandinistas nas eleições de fevereiro de 1990, que deram a vitória a Violetta Barrios de Chamorro, candidata conservadora apoiada pelos EUA.

A condenação dos EUA pelo Tribunal Internacional de Justiça

A agressão à Nicarágua feita pelo Governo dos EUA, que tentou, por diversos meios políticos, económicos e militares desestabilizar e derrubar o novo regime sandinista, foi objeto de um recurso apresentado contra os EUA no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), em Haia. Este tribunal emitiu em 1986 uma sentença que condenava os EUA por violação das obrigações impostas pelo direito internacional, em particular a proibição de utilizar a força (artigo 2º, § 4, da Carta das Nações Unidas) e a proibição de atentar contra a soberania de outro Estado.4

Vale a pena reproduzir o resumo oficial do processo textualmente, tal como se encontra publicado na página eletrónica do TIJ: “A 27 de Junho de 1986, o Tribunal emitiu o seu acórdão sobre o caso. Entre outras decisões, rejeitou a justificação de legítima defesa coletiva avançada pelos EUA relativamente às atividades militares ou paramilitares na Nicarágua ou contra esta e concluiu que os EUA violaram as obrigações impostas pelo direito internacional consuetudinário, que veda a intervenção nos assuntos de outro Estado, o recurso à força contra outro Estado, o atentado contra a soberania de outro Estado e a interrupção do comércio marítimo pacífico. O Tribunal disse ainda que os EUA tinham violado certas obrigações constantes num tratado bilateral de amizade, comércio e navegação de 1956 e cometido atos que privam o tratado dos seus fins e do seu objeto.

O TIJ decidiu que os EUA eram obrigados a pôr fim imediato e a renunciar a todo e qualquer ato que violasse as suas obrigações jurídicas e que deveriam indemnizar a Nicarágua por todos os prejuízos causados pelas violações provadas contra o direito internacional consuetudinário e o tratado de 1956; a fixação do montante deveria ser objeto de outro processo, caso as partes não chegassem a acordo. A seguir o TIJ estipulou por despacho um prazo para o depósito dos elementos processuais pelas partes sobre a forma e os montantes do ressarcimento; os arquivos testemunham do depósito feito pela Nicarágua a 29 de março de 1988, ao passo que os EUA mantiveram a sua recusa de participar no processo. Em setembro de 1991, a Nicarágua dá conhecimento ao Tribunal de que não pretendia prosseguir com esse processo. Depois de os EUA informarem o Tribunal que se congratulavam com o abandono do processo por parte da Nicarágua, o assunto foi retirado da agenda dos assuntos pendentes por despacho do presidente, com data de 26 de setembro de 1991.”

Como se vê, em 1991 o governo de Violetta Chamorro eleito em 1990 pôs fim ao processo e renunciou ao pedido de indemnizações por parte do Governo de Washington.

Quando Daniel Ortega foi eleito presidente da Nicarágua em 2006 e retomou funções no início de 2007, a atitude do Banco Mundial e do FMI contrastou rotundamente com a que tinham assumido nos anos 1980, assim como a atitude das autoridades de Washington. O regime de Daniel Ortega passa a ser considerado tolerável. Os acordos assinados entre o governo de direita durante o período 1990-2006 e as duas instituições financeiras de Bretton Woods, o Banco Mundial e o FMI foram renovados. O governo de Ortega voltou a ter crédito e prosseguiu a aplicação das reformas neoliberais iniciadas pelos governos precedentes. Em fevereiro de 2018 o FMI felicitou o governo de Daniel Ortega.5 Este decidiu logo a seguir aplicar contra-reformas no sistema de pensões e da segurança social e foram estas reformas que provocaram as primeiras grandes manifestações, em abril de 2018, logo reprimidas com violência. Ortega retirou essas reformas, tentando assim pôr fim às manifestações, mas o grau de repressão praticada, da qual resultaram numerosos mortos entre os manifestantes, levou a que o movimento de protesto continuasse. Por seu lado, o Banco Mundial, quando o Governo tinha acabado de anunciar as medidas neoliberais respeitantes à segurança social, felicitou em abril de 2018 a seriedade das políticas económicas seguidas por Ortega.6 Fiquemos atentos à continuação destes acontecimentos.

Extraído de: https://www.esquerda.net/artigo/breve-historia-das-relacoes-entre-o-banco-mundial-o-fmi-e-o-governo-da-nicaragua/56865


Notas

1 Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard (ed.). 1997. The World Bank, Its First Half Century, volume 1, p. 103. Assinale-se que este livro, donde foi transcrita esta citação, foi redigido por encomenda do Banco Mundial, por ocasião do seu cinquentenário. http://documents.worldbank.org/curated/en/313081468322727631/History(link is external)

2 A expedição foi lançada a 17 de Abril de 1961. Tratou-se do desembarque de mais de 1500 mercenários anticastristas na baía dos Porcos, em Cuba. A expedição foi um fiasco monumental.

3 Catherine Gwin, in Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard (ed.). 1997. The World Bank, Its First Half Century, volume 2, p. 258

4 Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), queixa contra as «Actividades militares e paramilitares na Nicarágua e contra esta (Nicarágua c. EUA)», Acórdão de 27 de Junho de 1986. No seguimento desta sentença os EUA anunciaram oficialmente que já não reconheciam a competência do TIJ.

5 “Nicarágua: Declaração final da visita dos técnicos do FMI”, 6 de fevereiro de 2018, https://www.imf.org/es/News/Articles/2018/02/06/ms020618-nicaragua-staff-concluding-statement-of-an-imf-staff-visit(link is external)

6 “Nicarágua: panorama geral”, 16 de abril de 2018, http://www.bancomundial.org/es/country/nicaragua/overview


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