Crise e barbárie

Em último artigo de especial sobre a crise de 2008, resgatamos texto do economista marxista publicado na Crítica Marxista em 2009.

Plínio de Arruda Sampaio Jr. 18 set 2018, 18:21

A crise financeira, que eclodiu com a intensidade de um furacão tropical na segunda metade de 2008, gerou um estado de absoluta incerteza em relação ao futuro da ordem global. A desconfiança na solidez das instituições financeiras, provocada pela quebra em cadeia de bancos que até então pareciam inabaláveis, desencadeou uma virulenta crise de crédito que desorganizou rapidamente as relações de produção e circulação que sustentavam a expansão da economia mundial. Ao expor a extraordinária fragilidade do sistema monetário internacional e os precários fundamentos que sustentam a globalização dos negócios, a crise pôs por terra os parâmetros que balizavam os cálculos econômicos, deixando o sistema capitalista sob a ameaça de uma depressão sem precedentes. A rapidez e a virulência com que os problemas financeiros se transformaram em problemas econômicos propriamente ditos, patentes nas dificuldades ciclópicas que ameaçam a sobrevivência das maiores corporações industriais e comerciais do planeta, e na expansão exponencial do desemprego em todo o mundo, revelam a gravidade dos desafios que devem ser enfrentados.

A especificidade da crise econômica mundial é dada pelo processo de li- beralização que solapou as restrições institucionais que, nos primeiros anos do pós-guerra, tinham estabelecido certos limites à atuação do capital financeiro. Ao levar ao paroxismo a liberdade de movimento dos capitais e a desregulamentação dos mercados, o processo de liberalização liderado pelos Estados Unidos, sob a batuta dos organismos financeiros internacionais, criou as condições ideais para o pleno desenvolvimento da especulação financeira, mercantil e produtiva em escala global. O resultado era previsível. A valorização do capital fictício descolou-se completamente da valorização produtiva e a acumulação produtiva desgarrou-se por completo da capacidade de consumo da sociedade. Em poucas palavras, a farra especulativa transformou-se em uma clássica crise de superprodução, cuja solução demandará uma brutal queima de capital produtivo, comercial e financeiro, com tudo o que isso implica: destruição de forças produtivas, fechamento de empresas, nova rodada de concentração e centralização de capitais, escalada do desemprego, aumento da pobreza e da desigualdade social, crise social e instabilidade política.

A especificidade da crise

A crise em curso não é um fenômeno aleatório, que poderia ter sido evitado com políticas econômicas adequadas, e sim, uma consequência inelutável do próprio desenvolvimento capitalista. Em relação às inúmeras turbulências que marcaram a conturbada trajetória das finanças internacionais desde o início do movimento de liberalização, no começo da década de 1980, há pelo menos duas mudanças significativas no caráter dos problemas econômicos atuais. Ambas convergem para a configuração de uma crise geral do capitalismo – um fenômeno estrutural que terá repercussões de longo alcance sobre as relações sociais e os nexos internacionais e transnacionais que conformam o sistema capitalista mundial.

Em primeiro lugar, a profundidade e a extensão dos desequilíbrios econômicos e financeiros que precisam ser digeridos superam as das crises anteriores em todas as suas dimensões e, pelos seus efeitos sobre o conjunto da economia mundial, só são comparáveis historicamente à hecatombe que desarticulou a divisão interna- cional do trabalho e o sistema monetário internacional na década de 1930. Como todos os espaços econômicos nacionais se encontram fortemente interconectados e estreitamente dependentes do que ocorre na economia norte-americana, não há como conter o processo de disseminação da crise sem subverter os próprios alicerces do caráter liberal da ordem econômica internacional montada nas úl- timas quatro décadas sobre as bases do sistema de Bretton Woods, o que, salvo um desdobramento inesperado dos acontecimentos, parece bem pouco provável no momento.

Em segundo, a impotência do poder político para lidar com a situação não permite que se vislumbre uma solução rápida e indolor para o impasse da econo- mia mundial. A superação dos entraves à acumulação de capital exige uma ação coordenada, de caráter transnacional, envolvendo todas as dimensões do processo econômico – o financeiro, o monetário, o comercial e o produtivo –, cuja possibi- lidade de concretização, retórica à parte, parece totalmente implausível. O Estado norte-americano, que deveria liderar esse processo, tem-se revelado impotente para enfrentar o desafio e não há a menor possibilidade de que alguma outra potência imperialista venha a ocupar esse vazio. Nesse contexto, o mais provável é que

o mundo fique a reboque da prepotência e do provincianismo do imperialismo norte-americano, sem um plano estratégico para enfrentar as dificuldades que emperram o funcionamento da economia mundial.

Enganam-se os que imaginam que a atuação conjunta dos governos dos países desenvolvidos para salvar os bancos e o emprego de técnicas anticíclicas de elevação do gasto público sejam indícios efetivos de que o poder público tem demonstrado capacidade para enfrentar a crise. A superação da crise requer transformações de grande envergadura nas forças produtivas, nas relações entre o capital e o trabalho, na estrutura técnica e financeira do capital, na forma de organização do Estado e no equilíbrio econômico e político entre os países que compõem o sistema capitalista mundial, mudanças que vão bem além dos pacotes de auxílio financeiro e econômico ad hoc, que vêm sendo anunciados uns após outros pelas autoridades econômicas. Até o momento, as potências imperialistas têm tido atuação estritamente reativa, sempre atrás dos acontecimentos, comandada pela histeria desesperada dos “mercados” – respondendo aos interesses do capital financeiro –, sem ousar enfrentar a essência do problema: a gigantesca crise de superprodução provocada pelo processo de acumulação de capital e a absoluta falta de controle público sobre a ação do capital financeiro. Não há nenhum indí- cio de que se pretenda conter o big business. Muito pelo contrário. Os aparelhos ideológicos do grande capital têm sido inequívocos na advertência de que não se pode utilizar o “pretexto” da crise para reverter o movimento de liberalização econômica das últimas décadas.

Não é impossível que o esforço para “administrar” a crise, sancionando as pressões de socorro econômico e financeiro dos grandes grupos econômicos in- ternacionais, evite o desmoronamento espetacular dos mercados, dando a muitos a impressão de que os problemas gerados pela paralisia da economia mundial poderão ser contornados sem maiores traumatismos. É a aposta de todos os segmentos comprometidos com a ordem global. No entanto, o mais provável é que, dada a impotência dos governos para enfrentar a origem do problema, o desdobramento da crise se arraste por tempo indefinido, alternando momentos de pânico com momentos de relativo alívio, em uma lenta digestão do capital fictício e produtivo sobreacumulado. Para além da propaganda, o fato concreto é que a economia mundial está a léguas de qualquer tipo de ação “reguladora”, capaz de impor limites à anarquia da iniciativa privada e conter o caráter ultrarregressivo do padrão de acumulação liderado pelas finanças internacionais, causas fundamentais dos problemas que paralisam a economia mundial.

A impossibilidade de voltar a Keynes

Os que confundem a pseudoestatização do sistema financeiro em curso com a volta da regulação de tipo keynesiana tomam a nuvem por Juno. Não é o Estado que está impondo limites ao capital, mas o capital financeiro que está aprofundando ainda mais a conquista do Estado. Sob o pretexto de evitar uma crise sistêmica de

efeitos potenciais catastróficos, a política econômica está promovendo o maior ataque à economia popular de que se tem notícia na história. Sob a avassaladora pressão dos maiores grupos econômicos do planeta, os recursos que até ontem faltavam para financiar as políticas públicas agora sobram para socorrer os bancos e as grandes corporações falidas, sem que nada garanta, diga-se de passagem, que o cataclismo seja evitado. Para aquilatar a magnitude da riqueza transferida para o setor privado, basta lembrar que, segundo cálculos da Cepal, até o fim de outubro de 2008 os maiores grupos financeiros do mundo já tinham recebido, sob a forma de injeção de liquidez e pacotes de recuperação financeira, um montante de recursos públicos equivalente a quase US$ 7 trilhões – valor igual a quase duas vezes o PIB anual da América Latina, mais de quatro vezes o PIB anual do Brasil.1 Para evitar o equívoco de imaginar que a forte intervenção do Estado representa

um abandono do neoliberalismo, é importante lembrar que o socorro ao grande capital não representa em si uma novidade no padrão de política econômica, pois todas as crises financeiras das últimas décadas foram enfrentadas pela linha de me- nor resistência, com escandalosas operações de “bail out” que cobriam os prejuízos das grandes corporações e sancionavam a ciranda especulativa.2 Na realidade, a desregulamentação dos mercados e a socialização dos prejuízos constituem mo- mentos distintos de um mesmo padrão ultrarregressivo de intervenção do Estado na economia. A novidade das medidas que estão sendo adotadas para enfrentar a crise reside no volume de recursos envolvidos nas operações de salvamento, fenômeno que evidencia que a crise em andamento está aprofundando ainda mais a promiscuidade existente entre a oligarquia financeira que comanda as grandes corporações e o alto comando do Estado capitalista. Postas em perspectiva, as tendências em curso – a mundialização do capital e das finanças, a liberalização comercial e financeira, a desregulamentação dos mercados e o controle absoluto do big business sobre o aparelho de Estado – aparecem como características estru- turais do padrão de desenvolvimento capitalista na fase superior do imperialismo. A crise radicaliza tais tendências, levando ao paroxismo o caráter antissocial, antinacional e antidemocrático do capitalismo.

Assim como a crise que desarticulou a divisão internacional do trabalho do início do século XX gerou incomensurável sacrifício humano, antes que as relações sociais e a ordem internacional que sustentaram o ciclo expansivo dos chamados “anos gloriosos” fossem reorganizadas, em um penoso processo de transforma- ções que se arrastou por décadas, os problemas que abalam a globalização dos negócios prenunciam o início de um período histórico conturbado, cujo desfecho é totalmente incerto. Os que esperam uma solução técnica e institucional para a crise de grande envergadura que se abateu sobre a economia mundial, sonhan- do com a possibilidade de um novo Bretton Woods e com um renascimento do welfare state, abstraem as condições objetivas e subjetivas que tornaram viável a reorganização da ordem econômica internacional no pós-Guerra e a efêmera vida do capitalismo keynesiano, deixando de considerar suas substanciais diferenças em relação à situação concreta gerada pela crise atual.

A ausência de uma potência hegemônica capaz de liderar a “reforma” da ordem internacional contrasta radicalmente com a situação do pós-Guerra. Na crise que selou a sorte do liberalismo, a decadência da Inglaterra como centro da economia mundial veio acompanhada de uma acirrada disputa, envolvendo várias potências imperialistas emergentes, para decidir quem assumiria a posição de potência hege- mônica. O indescritível sofrimento decorrente de uma depressão de longa duração, o horror do holocausto nazista, a barbárie de duas guerras mundiais e a ameaça do comunismo criaram as condições históricas concretas que permitiram aos Estados Unidos – o grande vitorioso da Segunda Guerra Mundial – se aproveitarem de sua inconteste supremacia para moldar a ordem internacional a seus interesses, sem, contudo, desconsiderar a necessidade de acomodar parcialmente os pleitos de seus parceiros estratégicos, no centro e na periferia da economia mundial, por uma relativa autonomia de seus espaços econômicos nacionais. Foi o que permitiu, por um breve lapso de tempo, que o processo de integração do sistema capitalista mundial em torno da economia norte-americana avançasse gradualmente, convi- vendo, pelo menos até a crise do dólar no início dos anos 1970, com uma relativa proteção dos mercados internos contra a concorrência de mercadorias importadas e com a presença de significativa restrição aos movimentos de capitais.3 Foram essas condições concretas que viabilizaram a emergência de espaços econômicos nacionais dotados de um regime de acumulação central e de “centros internos de decisões” relativamente autônomos, com certa capacidade de subordinar a lógica da valorização do capital aos interesses nacionais.

O contexto atual é radicalmente distinto. A inequívoca decadência do im- pério norte-americano não abala sua absoluta supremacia econômica e militar. O colapso da União Soviética e a desorganização do movimento socialista não colocam sua burguesia diante da necessidade de fazer concessões às burguesias aliadas e muito menos à classe trabalhadora. Logo, na ausência de uma substancial reviravolta no contexto histórico, é bastante improvável que os Estados Unidos renunciem unilateralmente a seus privilégios imperiais em prol de mecanismos supranacionais de poder. E, no entanto, dadas as novas características do padrão de desenvolvimento capitalista, essa seria uma condição indispensável para lidar com o risco sistêmico e com a desorganização da produção em escala global – fenômenos inerentes ao processo de mundialização do capital.

A brutal assimetria na correlação de forças a favor do capital financeiro que caracteriza o capitalismo contemporâneo, desequilíbrio que aumenta à medida que o avanço da crise impulsiona o processo de concentração e centralização de capitais, também contrasta com o que ocorria no imediato pós-guerra, quan- do, por uma série de circunstâncias, as forças mais conservadoras da burguesia encontravam-se na defensiva, abrindo brechas para que, em algumas sociedades nacionais, o Estado burguês conseguisse transcender o interesse puro e simples do grande capital e contemplar, pelo menos parcialmente, os interesses populares na definição das prioridades que regem as políticas de Estado. Em meados do século XX, o trauma ainda muito recente da crise da década de 1930, a mudança na correlação de forças gerada pela derrota do fascismo, a necessidade de pro- mover a reconstrução da Europa e do Japão e a urgência em estabilizar a vida econômica e política do “mundo livre” para conter o risco comunista permitiram a cristalização de um arcabouço institucional que, sem ferir os interesses estratégicos do capital financeiro, estabeleceu uma série de limites à mobilidade espacial e setorial dos capitais. Foi o suficiente para abrir espaço para políticas econômicas de inspiração keynesiana e para o avanço do welfare state que, de uma ou de ou- tra maneira, vigoraram até início da década de 1970 nos países capitalistas mais desenvolvidos. As condições históricas atuais são bem distintas. Na ausência de uma vigorosa reação popular, que coloque em xeque o caráter ultraconservador do bloco no poder, é uma ilusão imaginar a possibilidade de políticas que possam afrontar, ainda que minimamente, o interesse estratégico do capital financeiro.

Por fim, ao contrário do que ocorria em meados do século XX, a complexa teia de relações comerciais e produtivas que unifica o sistema capitalista mundial cria obstáculos insuperáveis à possibilidade de soluções “nacionais” para a crise global. O avanço do processo de globalização dos negócios solapou as bases ob- jetivas e subjetivas que davam sustentação às políticas econômicas baseadas em um regime central de acumulação. O grau já alcançado de socialização das forças produtivas simplesmente não comporta a possibilidade de um recuo “nacional”, pois isso implicaria grande perda de eficiência econômica (decorrente da menor economia de escala), representando forte regressão na divisão social do trabalho. Além disso, o controle absoluto do Estado capitalista pelos grandes conglomerados internacionais torna muito pouco provável a possibilidade de um recuo protecio- nista, uma vez que o grau de internacionalização do capital é incompatível com o espaço econômico nacional como horizonte de reprodução ampliada do capital. Não há, portanto, bases objetivas e subjetivas para um retorno a Keynes.

Capitalismo e barbárie

Na ausência de forças capazes de deter a fúria especulativa do grande capital, a solução da crise pela linha de menor resistência – pela exacerbação da exploração do trabalho e pela luta autofágica entre os grandes conglomerados multinacionais – tende a tornar o regime do capital ainda mais regressivo e predatório, pois é gigantesco o volume de capital sobreacumulado que precisa ser digerido antes que as condições para a reprodução ampliada do capital possam ser restabelecidas. O fim do ciclo expansivo aprofundará e generalizará a barbárie capitalista, abrindo um período de grandes convulsões sociais e acirramento das rivalidades entre os Estados nacionais. Sabe-se pela já longeva história do capitalismo que, enquanto não houver uma alternativa concreta ao regime do capital, mais dia menos dia, com maior ou menor sacrifício, as condições para a retomada da acumulação de capital serão restabelecidas e o capitalismo iniciará um novo ciclo expansivo. Os dramáticos acontecimentos da primeira metade do século XX, que deixaram a humanidade à beira do abismo, mostram, no entanto, que, na era do capitalismo monopolista, as crises capitalistas provocam grande destruição, não deixando margem para a possibilidade de soluções racionais e civilizadas para os proble- mas da humanidade. Não há nenhum motivo para imaginar que, no século XXI, o desfecho será diferente. Nos marcos da ordem burguesa, o futuro é sombrio. Mais do que nunca, o regime do capital virá acompanhado de crescente instabilidade econômica, absoluta irracionalidade no uso da riqueza, gritante desigualdade social, escalada da prepotência imperialista e inexorável comprometimento das conquistas democráticas.

SAMPAIO JR., Plínio de Arruda. Crise e barbárie. Crítica Marxista, São Paulo, Ed. Unesp, n.29, 2009, p.41-47.


Notas

1 CEPAL, 2007 – Panorama de la inserción internacional de América Latina y el Caribe – Tendencias, 2008, p.6.

2 J. Crotty, “If financial market competition is so intense, why are financial firm profits high? Reflec- tions on the current ‘Golden Age’ of finance”. Political Economy Research Institute, Working Papers Series, n.134, April, 2007.

3 Para uma interessante interpretação da relação do Estado norte-americano com o capital financeiro, ver o artigo de L. Panitch e S. Gindin, “Las finanzas y el império norteamericano”. L. Panitch y C. Leys (Eds.). El Império Recargado, Socialist Register, 2005.


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