No universo de Gil o belo está em todo lugar

O novo disco de Gilberto Gil, OK OK OK, é a prova material da nobreza da alma do artista.

Pedro Micussi 5 set 2018, 12:51

Está disponível desde os dia 17 de agosto nas livrarias, lojas fonográficas e, claro, na vasta e sempre insaciável internet, o mais novo disco de Gilberto Gil. OK OK OK é o primeiro disco de estúdio do compositor baiano desde Gilbertos Samba, gravado em 2014. As quinze faixas do disco nos entregam quase que uma hora (exatos 55 minutos, para os mais rigorosos) de música brasileira da mais alta qualidade – um comentário que, ao levarmos em conta o autor da obra, poderia tranquilamente ser tomado como um enunciado tácito a esta análise.

Os arranjos revelam a harmonia envolvente de Gil que, numa rara combinação entre refinamento e delicadeza, trazem mais uma vez à cena aspectos estéticos inaugurados com a bossa nova de João Gilberto há 60 anos. Aliás, não seria um exagero enxergar o disco como uma continuação do tributo do compositor inaugurado há quatro anos ao músico de Juazeiro. Se seu repertório não é aqui reinterpretado, como o fora no disco supracitado, a sutileza das canções, seja em sua dimensão musical ou poética, poderiam servir como espécie de acalento ao grande mestre, hoje tragicamente envolto em tratativas judiciais.

Difícil encontrar temática outra que confira maior coesão ao disco senão a da própria vida. Não tratada de maneira piegas, entretanto, ela nos é revelada por meio de aspectos do envelhecimento que vão sendo, canção a canção, desenvolvidos pelo autor. De todo modo, este tabu inabitável à mente dos seres humanos enquanto jovens, não é tratado como algo arrebatador e unilateral. Ao contrário, vamos percebendo como a aventura de ficar velho traz com ela suas mazelas, evidentemente, mas alegrias outras, fatos novos, uma miríade de fenômenos que, ao serem vividos por Gil, passam também a ser objetos de sua elaboração artística.

Assim, uma biópsia cardíaca torna-se facilmente musa inspiradora em Quatro Pedacinhos, uma mescla espécie de ode à ciência e suas técnicas médicas com aquele registro espiritual que é tão caro e presente em Gil. Tema, aliás, que permeia inúmeras canções do compositor, seja em Ciência e Arte e A ciência em si do álbum Quanta, como até mesmo, em sentido lato, na clássica Oriente, de 1972.

Por certo, as dores da velhice também se fazem presentes. Em Jacintho, vamos descobrindo que a bexiga, os rins e os pulmões do artista vão pouco a pouco apresentando “alguns sinais de defeito”. O que poderiam vir a ser tema de tristes notícias de jornal, são ao contrário, contadas por Gil, assuntos de divertimento.1

Para a nossa sorte, Gil pode contar com o Dr. Roberto Kalil para tratar de suas dores e doenças. Em Kalil, o artista traz de volta à cena as ciências médicas, desta vez, entretanto, personificando a reverência prestada ao conhecimento aplicado. Rompendo o que alguém poderia denominar como o “fetichismo das técnicas”, Gil nos lembra que são pessoas de carne e osso que conduzem os tratamentos médicos. São profissionais que, seja na medicina ou em qualquer outro ramo laboral no mundo, emprestam sua vida às mais belas e nobres realizações das quais o ser humano enquanto espécie é capaz. Não apenas, é também um apelo ao devir do Brasil enquanto nação, no melhor sentido pradiano do termo, ao clamar pela existência de vida “inteligente e competente” em nosso país – felizmente as temos aos montes, seja na forma de Kalils ou de milhões e milhões de anônimos que, através de seu trabalho, dão corpo ao país. Por que não ver a canção, dessa forma, como um alento brasileiro ao nos fazer rememorar as potencialidades de nossa gente?2

Sim, dizíamos que nem só de desventuras é feito o envelhecimento de Gil. Em Sereno e Uma coisa bonitinha, o músico segue a demonstrar um dos mais clássicos e soberanos dos pares dialéticos: a oposição coexistente entre vida e morte. É, portanto, com a chegada cada vez mais imanente desta, a tal consciência da finitude a qual o artista se refere, que também possibilita o contato com novas vidas vindas de si próprio. Filhos e filhas, netos e netas, o que pode ser entendido como a realização de um dos sentidos mais profundos da vida, a perpetuação da espécie através da reprodução, o prolongamento do eu no outro. E são bonitos, como são bonitos pelo olhar e pela voz de Gil.

E a política? Ela também está presente. Se Chico em seu Caravanas do ano passado deixou o tema para o final, com a acachapante canção homônima encerrando o disco de forma triunfal, numa espécie de: pensaram que não haveria crítica social hoje? Gil se escusa de antemão. Dessa forma, OK OK OK3 trata diretamente do turbilhão em que se meteu a vida política nacional nos últimos anos que, “enquanto os ratos roem o poder”, deixam “os corações da multidão aos prantos”. Sem respostas categóricas, Gil lê a realidade brasileira e oferece uma espécie de justificativa, um pedido pelo direito ao silêncio.

Em tempos de ritmos de discussão frenéticos e de posicionamento permanente ao qual nos submete a internet, Gil responde àqueles que querem dele “a encarnação do mito” que o ex-ministro da Cultura preferirá, por enquanto, a meditação. “Espero que minha alma seja nobre / O suficiente enquanto eu estiver vivo” é o que nos responde. Não poderiam ser mais precisos e reconfortantes os versos que o compositor elege para nos convidar a entrar em seu mais disco que trata, em última instância, do estar vivo a partir de uma das dimensões mais profunda que esse fato representa,

OK OK OK é a prova material da nobreza da alma de Gil, de como ele, enquanto artista e indivíduo, parece seguir realizando com sucesso o exercício permanente de elevação de seu espírito. Nossa sorte é poder viver ao seu lado, emprestarmos dele sua sabedoria, vermos com nossos próprios olhos a beleza que os seus apontam, fazendo-nos crer que ela existe em quase tudo o que há. Nos ensinado a olhar, como diria Galeano, ao admirável que existe dentro de nós e em nossa volta. No universo de Gilberto Gil, ao que parece, o belo está em todo lugar.


Notas

1 Audaciosamente, poderíamos elevar a canção ao patamar do maior tema “tema de dor” da música nacional desde a genial Dor elegante, de Itamar Assumpção a partir de poema de Paulo Leminski.

O que seria, afinal, toda a obra de Gil e dos demais gênios da MPB senão uma reafirmação constante das capacidades criativas de povo brasileiro e do potencial de realização do país?

3 É interessante notar como tanto em “Caravanas” como em “OK OK OK” a canção que nomeia o disco são ambas as duas de conteúdo inegavelmente mais político e social nos dois álbuns. Seria o sinal da relevância que os dois artistas ainda conferem a tais problemáticas?


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