O grito que falta
Independência e mortes, seria mais correto dizer. Pois o país que surgia conservava estruturas de exclusão, como o latifúndio, a monocultura e a escravidão.
Pedro Américo de Figueiredo e Melo era um pintor brasileiro que vivia em Florença, na Itália. Nascido em 1834, recebeu, já cinquentão, uma encomenda de D. Pedro II que o notabilizou: fazer um quadro que representasse o fato histórico do Sete de Setembro de 1822, quando o pai do imperador liderou o rompimento político-administrativo do Brasil com a metrópole portuguesa.
Pedro Américo, entre 1886 e 1888, caprichou na imaginação e criou um cenário épico inexistente. A história oficial, desde aquela época, tinha que ser grandiosa. Falseada, para ter mais brilho. Ainda mais com um regime em crise, que terminaria um ano depois.
Pedro pintor recebeu do xará imperador 30 mil contos de réis. Uma boa bolada! Para você ter uma ideia, o orçamento de São Paulo para a saúde, às vésperas de Proclamação da República, foi de 22 mil contos de réis.
As distorções orçamentárias vêm de longe…
Pequenos detalhes: para vencer as distâncias da época, as mulas eram muito mais resistentes que os belos e fogosos cavalos, como esses em que Pedro quase I e sua guarda estão montados. Além disso, ninguém usava uniforme de gala para subir a Serra do Mar. A comitiva do Príncipe Regente – de 14 pessoas, e não com a quase meia centena da tela famosa – vinha de Santos.
E o D. Pedro, com desarranjo intestinal, não estava para poses: como relata seu confessor, padre Belchior Pinheiro, “acabara de quebrar o corpo às margens do Ipiranga, com dores que apanhara em Santos”. Pronunciou suas palavras – e não brados – de rompimento com Portugal “abotoando a fardeta”: “
As Cortes me perseguem, chamam-me com desprezo de ‘rapazinho’ e ‘brasileiro’. Pois verão agora quanto vale o ‘rapazinho’. De hoje em diante nossas relações estão quebradas. Nenhum laço nos une mais!”.
Um lema, não pronunciado na cena criada, ficou: “Independência ou morte!”. Ali, naquele local ermo, ninguém foi contra.
Independência e mortes, seria mais correto dizer. Pois o país que surgia conservava estruturas de exclusão, como o latifúndio, a monocultura e a escravidão.
A emancipação nacional, singular na América, manteve o regime monárquico e a cultura patriarcal. O Brasil independente nascia sem cidadania, com opressão, mais Estado que Nação. Por isso ainda hoje se clama, no Sete de Setembro, pelo Grito dos Excluídos. Eles estão aí, massivos – quase 13,3 milhões de desempregados e outros milhões de subassalariados (83% dos trabalhadores formais ganham até três salários mínimos).
Brasileiros jogados na ninguendade, sem direito ao teto, à terra, ao ambiente, à cidade. E ainda pagando 53,9% dos impostos no sistema tributário regressista e injusto.
Os cacoetes dos donos do poder de então continuam nos governantes atuais: autoritarismo, patrimonialismo, elitismo, entreguismo, corrupção, dominação de classe.
Em um aspecto de sua obra de arte Pedro Américo acertou. Olhe bem seu óleo em tela que ficou conhecido como “O grito do Ipiranga”. No canto esquerdo, observando espantado os protagonistas da cena, está um camponês maltrapilho, tocando seu carro de boi, com pesadas toras de madeira do extrativismo predatório. Ele parece dizer, sem ilusões: “o que eles estão anunciando aqui não mudará minha vida. Não virão grandes transformações”.
Artigo originalmente publicado no site do PSOL.