Escola sem partido: censurar a escola, criminalizar o ensino

Quando começou a ganhar visibilidade projetos pelo Escola sem Partido, nossa corrente buscou analisar os fundamentos dessas proposições conservadoras.

Maycon Bezerra 31 out 2018, 16:43

Segue ganhando força no debate público e em vários ambientes políticos o projeto que busca estabelecer uma lei da mordaça que ameaça com pena de prisão, professores e professoras que “assediem ideologicamente” seus alunos. Tendo sido aprovado na Assembléia Legislativa de Alagoas um projeto de lei com essa essência, ficou claro que o movimento pela “escola sem partido” é uma ameaça efetiva à educação e aos direitos democráticos do povo brasileiro. Principalmente, depois que alguns dos principais porta-vozes do projeto foram recebidos no gabinete do ministro da educação do governo ilegítimo, mafioso e antipopular de Michel Temer. O presente texto busca discutir o projeto em questão a partir de uma abordagem que o situa no contexto mais amplo da correlação de forças nacional e internacional, nos marcos da etapa histórica que vivemos. Não é possível avaliar corretamente as possibilidades e limites dessa ofensiva reacionária no campo da educação e da liberdade de pensamento, sem relacioná-la com as forças mais amplas no interior das quais está inserida e adquire sentido. Precisamos dessa avaliação como parte do processo de mobilização e luta que devemos impulsionar contra o projeto e seus promotores. A isso nos lançamos.

Já faz quase 10 anos que a crise internacional do capitalismo submete o mundo a uma dinâmica econômica marcada pelo baixo crescimento, provocando alternadamente também, estagnação ou recessão mais ou menos profunda em diferentes partes do globo. Nesse momento, cabe ao Brasil o primeiro lugar entre os países mais afetados, mergulhado na mais longa recessão de nossa história. O que se destaca nesse cenário é a ausência de uma perpectiva clara de saída da crise, que se arrasta. O comércio internacional estanca e os fluxos internacionais de capitais que chegaram a compor 45% do PIB dos países capitalistas mais avançados, hoje formam apenas 5% desse indicador, em um contexto em que as taxas de retorno dos investimentos estagnaram.

Como resposta a essa crise, as altas esferas financeiras transnacionais se lançam a uma fuga para a frente, impondo globalmente um receituário ultracapitalista, baseado em uma lógica espoliativa muito semelhante àquela da “acumulação primitiva”. Fundo público; recuros naturais; setores econômicos estratégicos; direitos sociais e trabalhistas; por toda parte, tudo isso deve ser sacrificado no altar do “ajuste econômico” e das “políticas de austeridade”. A agenda ultracapitalista semeia regressão social para colher, na outra ponta, mais concentração de riqueza. À medida que avançam as fronteiras da miséria e da barbárie, mesmo na superpotência imperialista, os 62 multibilionários situados no topo da pirâmide global acumulam a mesma quantidade de riqueza que os 3,5 bilhões mais pobres do planeta. Da mesma forma, os 28 maiores bancos do mundo controlam 90% da riqueza financeira global.

Profundamente antissocial, esse receituário não pode contar com o entusiasmo, nem com o simples consentimento, da parte das maiorias trabalhadoras dos diferentes países a ele submetidos. Dessa maneira, sua implementação depende da capacidade da classe dominante fraudar ou sumprimir os canais pelos quais a soberania popular pode se expressar. No Brasil, o estelionato eleitoral de Dilma seguido pela manobra fraudulenta do impeachment, mostram bem a fisionomia do processo político requerido pela aplicação do ajuste espoliativo. Na França, o retrocesso na legislação trabalhista precisa excluir o parlamento da discussão e apoiar-se no estado de exceção e na repressão violenta contra a oposição popular. No México, a repressão à resistência dos profissionais da educação contra a privatização do setor, leva à chacina, com mais de oito mortos a bala pela polícia recentemente. Lá como cá fica evidente que os de cima não hesitam em impor na marra sua agenda, e que os de baixo estão dispostos a não permitir nem aceitar serem empurrados para trás.

A inquietação social, expressa nas lutas que se multiplicam, não deixa dúvidas: o capital terá que seguir enfrentando cerrada resistência à imposição de seu receituário. As mobilizações de rua, greves e mesmo levantes revolucionários têm ocupado o centro do palco histórico. Desde 2011, com o movimento Occupy Wall Street e com os indignados espanhóis, veio à luz, ainda que carente de maior sistematização, a plataforma democrática, com significativa tonalidade anticapitalista, que afirma os interesses dos 99% contra a elite do 1% do andar de cima. Confrontados com as exigências democráticas radicais que a juventude indignada ergueu, arrastando boa parte do povo atrás de si, os regime políticos tradicionais da burguesia entraram numa crise profunda. A incorporação dos partidos da velha esquerda – como os socialdemocratas europeus ou o PT brasileiro – ao arranjo tecnocrático público-privado que comanda os Estados, inflexivelmente a serviço do rentismo financeiro, tornou os regimes burgueses impermeáveis às demandas democráticas da juventiude e das massas, enrijecendo-os de modo crítico.

É crescente a crise de legimtidade dos regimes políticos burgueses, diante dela emergem, pela esquerda, novas formas de fazer política, expressas em novos instrumentos partidários como o Syriza grego (apesar de sua capitulação), o HDP turco, o Podemos espanhol, ou o peruano Frente Amplio. Refletindo um proceso na mesma direção, despontam as campanhas políticas em torno de Bernie Sanders, nos EUA, ou Jeremy Corbyn no Reino Unido. Em comum, todos esses fenômenos têm o fato de que foram e/ou seguem sendo uma expressão política, com seus limites e contradições maiores ou menores, da inquietação social que acompanha a crise internacional, a ofensiva espoliativa do capital e a crise de legitimidade dos regimes políticos tradicionais da burguesia. Expressam a experiência prática dos povos que lutam para encontrar uma saída democrática, progressista, anti-rentista (e mesmo anticapitalista) à crise. Certamente que, por outro lado, erguem a cabeça diversos movimentos reacionários e mesmo neofascistas. O acirramento da polarização política nas ruas e nas urnas é outra expressão da inflexível captura dos regimes “democrático-burgueses” pelo interesse rentista, alheio às necessidades dos 99% da população.

No Brasil, onde o nível das desigualdades e injustiças econômicas, sociais e políticas, secularmente acumuladas e reproduzidas, é gigantesco, a crise de legitimidade do regime burguês emergiu de modo particularmente explosivo nas Jornadas de Junho de 2013, sem encontrar condições para sua estabilização até o presente. Na verdade, o povo e suas reivindicações democráticas, que tomaram as ruas então, foram duramente reprimidos. Não houve nenhum avanço significativo em relação às políticas de educação e saúde públicas que, ao lado das demandas relativas à mobilidade urbana, estiveram no centro daquelas mobilizações. Ao contrário, a precarização desses serviços não cessou de se agravar, chegando à beira do colapso. Agrega-se ao quadro de crise e instabilidade galopante, os resultados das investigações da Operação Lava-Jato, impulsionadas pela Polícia Federal e Ministério Público, que desmascaram a corrupção generalizada nas relações entre a casta política dirigente do regime e o grande capital.

A desmoralização política de Dilma e do PT, com o estelionato eleitoral que levou a presidenta a aplicar o ajuste neoliberal proposto pela campanha derrotada, não apenas levou a uma fragilização imensa do governo (junto às bases populares e, consequentemente, junto aos políticos do parlamento), como, por outro lado, demonstrou a incapacidade do regime burguês em absorver a vontade popular, mesmo quando ela triunfa através do voto. Debilitado o governo, nos marcos de um regime cada vez mais desacreditado, a manobra fraudulenta do impeachment, destinada a empossar Temer à revelia do voto popular, apareceu como uma plataforma para associar os interesses capitalistas, em torno da aplicação radical do “ajuste”, com os interesses da casta política mafiosa em abafar as investigações da Justiça sobre a corrupção sistêmica na política nacional. É bastante reveladora, também, da crescente incompatibilidade entre o domínio capitalista e a vigência de critérios democráticos de exercício do poder, o fato de que a “saída” para a crise apontada pelos de cima tenha sido um arranjo de bastidores, pelas costas do povo, para a aplicação de um programa recentemente derrotado pelo voto popular.

Desde 2013, como resposta da classe dominante à erupção popular na cena política nacional, desenvolve-se um sistemático enrijecimento do regime burguês. Além da “carta branca” dos governos dos distintos níveis à ação brutalmente repressiva da polícia contra as manifestações públicas, a utilização de expedientes arbitrários de perseguição e criminalização das lutas sociais, a aprovação da “lei antiterrorista” nesse mesmo sentido e inúmeros outros exemplos, tivemos em 2015 a contrarreforma política conduzida por Eduardo Cunha, que não apenas reduziu o tempo das campanhas eleitorais pela metade, como aprovou a “lei da mordaça eleitoral” que legaliza a exclusão do PSOL e demais partidos da esquerda socialista dos debates na TV e rádio. Esse enrijecimento do regime reflete a dificuldade crescente da burguesia em defender, em campo aberto, sua agenda antissocial. A redução do espaço ou o silenciamento da dissidência e da crítica anticapitalista, bem como a obstrução do desenvolvimento de alternativas políticas democrático-radicais, torna-se imprescindível para garantir alguma estabilidade ao regime político burguês, contestado pelas massas, especialmente pela juventude, que reencontrou o caminho das ruas. Nesse momento, medidas ainda mais restritivas do espaço político democrático constam entre as opções privilegiadas dos de cima, como a imposição de uma cláusula de barreiras nas eleições e a formação de um semiparlamentarismo voltado a conferir todo o poder ao Congresso Nacional, destituído hoje de qualquer legitimidade popular.

Para além das instituições da “sociedade política” propriamente dita, o sistema de poder da classe dominante se apóia também em poderosas instituições da “sociedade civil”. Os aparatos ideológicos mais fortes a serviço do regime atual de dominação vigente no país, podem ser identificados, em primeiro lugar, na mídia empresarial e oligopolista de massa e, secundariamente, numa vasta rede de igrejas evangélicas dirigidas por uma cúpula que constitui, simultaneamente, um segmento eclesiástico, um setor da política nacional e uma fração específica da burguesia, com forte presença também na mídia de massa. O segmento da mídia empresarial que tem à frente o poderosíssimo conglomerado das Organizações Globo, é o aparato ideológico mais forte, mais consolidado e mais decisivo da burguesia brasileira. É possível dizer que os irmãos Marinho dirigem aquele que é o verdadeiro “partido político”, enquanto intelectual coletivo, das esferas mais altas do capitalismo brasileiro, profundamente financeirizadas e entrelaçadas ao capital transnacional. O bloco constituído pelas máfias eclesiásticas reflete uma formação mais recente. Bastante diversificado, sem uma direção unificada, esse “neopentecostalismo empresarial” se encontra, por outro lado, profundamente enraízado nos setores populares e capilarizado por todo o país.

Do desamparo geral das massas do nosso povo, de onde o farisaísmo fundamentalista, charlatão e mafioso, já extraía muito dinheiro, extrai agora também, e cada vez mais, muito poder político e simbólico-ideológico. A estratégia de fundir igreja-empresa-comitê eleitoral em uma só instituição tem sido muito exitosa em promover a expansão acelerada da capacidade política, em sentido amplo, desses mercadores da fé. Os escalões superiores desse setor da liderança evangélica constituem uma fração própria da burguesia, que tem uma origem e um repertório de recursos bastante distintos daqueles próprios às velhas oligarquias quatrocentonas: nutrindo por elas tanta desconfiança quanto elas lhe dirigem desdém e hostilidade. Essa “burguesia gospel” funda seu poder econômico na “extorsão carismática” dos fiéis e seu poder político no controle eclesiástico do voto. A sua presença sempre crescente na mídia de massa, consolida e faz avançar sua influência, que pode ser expressa no fato de que a “bancada evangélica”, suprapartidária e multieclesiástica, dotada de uma agenda reacionária, em grande medida, importada da direita religiosa dos EUA, é hoje maior do que qualquer bancada partidária no Congresso Nacional.

Esses dois blocos de aparatos ideológicos da burguesia, o midiático-empresarial e o eclesiástico-empresarial, competem e cooperam entre si. Nas condições presentes de crise do regime burguês, seguem demarcando suas diferenças, mas o primeiro bloco não tem mais o monopólio da produção do consenso (que outrora dividiu com a hierarquia católica, com a qual ainda é fortemente ligado) e reconhece isso na prática. O avanço do bloco evangélico, solidamente apoiado em amplos setores populares, vai se mostrando um “mal necessário” para a velha grande burguesia, sempre desconfortável com o arrivismo e o odor popularesco dos novos sócios no condomínio do poder nacional. A forma decisiva como a “bancada evangélica” se comportou – e segue se comportando – na condução da transição que busca consolidar o governo pós-impeachment demonstra cabalmente a funcionalidade desse bloco político-ideológico à reprodução da dominação burguesa na sociedade brasileira.

Sem qualquer espaço na mídia de massa ou nas maiores igrejas evengélicas, os setores políticos e ideológicos da esquerda democrática e anticapitalista operam – no campo da luta simbólica – através das margens possíveis de ocupar nas redes sociais digitais; nas igrejas católica e evangélicas históricas, principalmente; no plano dos movimentos sociais e no interior das escolas e universidades públicas. É nessas últimas que seguem causando mais incômodo, nesse momento, aos “donos do poder”, não apenas pela sua capilaridade, como pelas condições e pela natureza das relações que ali se estabelecem. O caráter mais democrático próprio às instituições públicas, bem como sua função diretamente educativa, ainda permite que o pluralismo e o vivo debate científico, teórico, político e ético – completamente ausentes na grande mídia e na igreja fundamentalista – se expresse e cumpra sua função formativa. No contexto do grave sucateamento promovido pela classe dominante e seu regime contra a educação pública, estudantes e educadores se organizam e intensificam sua mobilização e luta, ocupando a linha de frente do combate ao ajuste espoliativo e antipopular, imposto ao país pelo interesse do financismo. Nessas circunstâncias, sob uma atmosfera política e social bastante tensa e a instabilidade do regime bem pronunciada, as greves, mobilizações e ocupações que se desenvolvem nas escolas e universidades públicas do país fazem soar o alarme da reação.

Vai surgindo no horizonte dos setores mais reacionários da burguesia, a firme intenção de impor a censura ideológica macartista e religiosa no ambiente escolar, criminalizando a liberdade da atividade docente. A adesão da direita religiosa ao projeto da “escola sem partido”, dá musculatura ao que era uma excentricidade da “vanguarda intelectual” da extrema direita neoconservadora: que sempre foi muito minoritária, ainda que bem patrocinada pelos do Instituto Millenium, o super “think tank” do partido da Globo. O que vai se desenrolando, é resultado do esforço expreso na ação ideológica hegemonista permanente desse poderoso oligopólio midiático empresarial, que desde o final da década de 90, começou a promover, através de todos os seus veículos, um esquadrão de publicistas dedicados à construção de um novo consenso ético-político na sociedade brasileira. Credores de um ponto de vista importado da direita neoconservadora dos Estados Unidos, produzem conclusões que são plenas de indiferença social e cinismo. Seu trunfo principal foi a narrativa de identificação dos governos do PT com o ideário de esquerda e marxista, enquanto a própria cúpula do petista negava qualquer associação dessa natureza, pela sua prática e pelo seu discurso, despolitizando sua base social enquanto a extrema direita politizava intensamente a sua. Grande parte da burguesia e uma base de massa na classe média são, hoje, dirigidas por essa perspectiva neoconservadora “made in USA”, assumindo como bandeira seu egoísmo de classe em uma roupagem “up to date”.

A espiral ideológica reacionária do fundamentalismo de mercado e do indivíduo, impulsionada desde cima, se encontra com o fundamentalismo evangélico, a partir de baixo. Operando praticamente no vazio, sem concorrência política e ideológica significativa na base da sociedade, esse fundamentalismo evangélico instrumentaliza em seu favor o conservadorismo popular autoprotetivo que, historicamente, se desenvolve como forma distorcida de autodefesa, individual e familiar, em resposta ao ambiente de desagregação e violência imposto aos meios populares mais empobrecidos. É certo que a maioria da comunidade evangélica, nas classes populares, se mantem distante da atividade política direta e apenas uma minoria se articula efetivamente em torno da agenda que as lideranças evangélicas nacionais importaram da direita religiosa do EUA. No entanto, pelo seu número absoluto, essa minoria é bastante presente e ruidosa, combinada aos setores radicalizados da classe média, são capazes de cumprir o papel de tropa de choque política desse neoconservadorismo. Aqui, ao macartismo histérico e ao policial-militarismo é combinado o ódio obsessivo à luta das mulheres e da comunidade LGBT por seus direitos, assim como a militância sectária agressiva contra as minorias religiosas, especialmente das religiões afrobrasileiras, mas também da pequena comunidade muçulmana.

Assim como os governos do PT mantiveram intacto o controle oligopolista das comunicações de massa pelo partido da Globo, financiando-o com dinheiro público, recusando-se a fazer qualquer movimento no sentido de uma democratização da mídia, esses mesmos governos buscaram sustentação parlamentar e eleitoral em uma coalização heterodoxa, no interior da qual ocupou espaço crescente a chamada “bancada evangélica”. Por um lado e por outro, os governos de Lula e Dilma criaram as condições necessárias para a ofensiva da extrema direita que vem mostrando os dentes na conjuntura nacional e hoje aposta na “escola sem partido”. “Cria cuervos que te sacarán los ojos”, poderíamos dizer. Agora, depois do impeachment de Dilma, esse bloco segue em sua ofensiva hegemônica. A necessidade de manter unida e mobilizada sua tropa, assim como a necessidade objetiva de desmantelar as trincheiras a partir das quais se resiste ao ajuste ultracapitalista da burguesia, parece fazer da luta em torno do sentido da educação desenvolvida nas escolas e universidades um novo front privilegiado para a ação desse setor politico, acompanhada atentamente, mas com alguma distância, pelas altas esferas da classe dominante.

O chamado projeto “escola sem partido” remonta ao ativismo minoritário do setor mais fanatizado dos leitores de Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino et caterva. No entanto, agora, o fundamentalismo evangélico aderiu à iniciativa em sua militância contra a disucussão de gênero e sexualidade nas escolas. Essa adesão significa um salto de qualidade e dá ao projeto uma densidade social muito maior. Não se trata mais de uma discussão restrita aos guetos da vanguarda da extrema direita; já foi aprovado como lei no estado de Alagoas, tramita em várias câmaras de vereadores e algumas assembléias estaduais e já chegou ao gabinete do Ministério da Educação. Enquanto projeto de lei, seu objetivo é claramente intimidatório, ameaçando com pena de prisão os educadores que “assediarem ideologicamente” seus alunos. No entanto, enquanto bandeira de luta vai além e busca mobilizar estudantes e familiares contra educadores apontados como “molestadores ideológicos”. Nas redes, os dirigentes da iniciativa e muitos de seus seguidores proferem um discurso de ódio e chegam a incitar a violência física contra professores considerados “doutrinadores”. É uma tarefa inadiável o enfrentamento a esse projeto, em defesa de uma educação pública, gratuita, laica, democrática e emancipatória e, por isso mesmo, é preciso desvelar a natureza dos argumentos nos quais se baseia esse movimento.

O elemento central da exigência dos defensores da “escola sem partido” se resume à idéia de que o ensino escolar – mas também o ensino universitário – deveria ser neutro, tanto do ponto de vista político quanto ético e teórico. Essa exigência de neutralidade se vincula à noção de que a educação institucionalizada deveria se abster de qualquer pretensão formativa, que deveria ser uma atribuição deixada “às famílias” ou “à liberdade individual” do estudante, devendo, por outro lado, se dedicar à instrução de determinados conteúdos “neutros” e funcionais ao objetivo maior de integração dos discentes ao mercado de trabalho. A narrativa sob a qual se desenvolve expressa uma paranóia fascistóide, de acordo com a qual as escolas e universidade teriam sido tomadas pelo “marxismo cultural”: um projeto “totalitário” e “anticristão” voltado a privar os estudantes de sua autonomia intelectual e moral. As pretensões supostamente totalitárias do “marxismo cultural” no campo do ensino estariam presentes na interpretação crítica das desigualdades da sociedade contemporânea; na tomada de posição crítica e antagônica à ditadura militar; na defesa dos princípios dos direitos humanos e da igualdade e justiça social; na discussão relativa à historicidade cultural do gênero e da sexualidade humana; assim como até no ensino da teoria evolucionista de Darwin. Cada um desses aspectos do programa educacional do “marxismo cultural” poderia ser uma ameaça à liberdade do indivíduo e à segurança e “santidade” do valores das famílias, devendo, portanto, ser repelidos pelos “cidadãos de bem”.

Do ponto de vista dos promotores e partidários do projeto “escola sem partido”, não seria função da escola ou das universidades, submeter os estudantes a qualquer programa de ensino que “atente contra suas convicções e valores”: mesmo que eles signifiquem a convicção de que a Terra é plana ou os valores da supremacia da raça ariana. Por trás dessa exigência se encontra o fundamentalismo do indivíduo e aquilo que podemos definir como um “populismo pedagógico”. Na base desses pontos de vista, ainda que não explícita ou conscientemente formuladas, estão as mesmas premissas do relativismo do pragmatismo e das correntes perspectivistas (“pós-modernistas”): segundo as quais não haveria qualquer conhecimento que pudesse ser considerado como objetivamente verdadeiro. Cada ponto de vista ético ou político produziria sua própria verdade sendo, todas, equivalentes entre si em valor cognintivo, ou, no máximo, na medida em que “funcionem” na prática imediata. A partir desse agnosticismo, todo o conteúdo científico dos programas de ensino cai reduzido à condição de mera opinião (e opinião de “partido”). Sendo assim, todo aspecto do ensino de ciências históricas e sociais, e também de ciências naturais, que esteja em contradição com determinadas “convicções e valores” de algum estudante ou sua família, poderia ser por estes considerado como parte de uma doutrinação ilegítima e inaceitável, a ser denunciada às autoridades policiais competentes. Por essa via, o fundamentalismo do indivíduo e o “populismo pedagógico”, fundados nesse relativismo extremista e cínico, buscam subordinar a educação escolar à tutela das “convicções e valores” do senso comum conservador, posto em movimento pelo trabalho ideológico permanente da mídia empresarial oligopolista e dos grandes templos, principalmente.

À escola e às universidades estaria reservado o papel de fornecer simples “instrução”, porque educação “vem de casa”. Ao invés de pretender desviar os estudantes de seus “valores familiares”, a educação institucionalizada deveria se ater a treiná-los na apropriação de determinadas informações e conhecimentos “neutros” e praticamente orientados a uma inserção satisfatória no mercado de trabalho, preferencialmente nos escalões de renda mais alta. Certamente trata-se de uma visão medíocre da escola e da universidade, própria ao fundamentalismo de mercado, que destitui o conhecimento de qualquer “valor de uso”, tornando-o mero “valor de troca”. Trata-se da ignorância dogmática que acredita ser sabedoria e do irracionalismo bem formado e mal intencionado dos publicistas antiintelectuais de aluguel, a serviço do poder. Além do mais é uma visão carente de realismo, não utópica mas distópica, segundo a qual o conhecimento escolar poderia funcionar como um “ativo” a acumular, resultante de um “investimento” a encontrar valorização no âmbito da futura inserção do jovem no mercado capitalista. Essa analogia rasteira que embala a mentalidade sombria de uns quantos, revela a capacidade que a hegemonia burguesa tem de subordinar a percepção, explicação e avaliação do mundo à sua prórpia imagem e semelhança. Desse ponto de vista, não há para a escola ou para a universidade qualquer consciência crítica a promover, qualquer sensibilidade a refinar, nem qualquer ética a amadurecer.

A exigência de que, na escola e na universidade, o conhecimento e o educador sejam “neutros”, política, ética e teoricamente atendo-se “aos fatos”, revela a incoerência e superficialidade do pensamento dos partidários da lei da mordaça. Aqui os ecos do positivismo se entrelaçam ao relativismo populista e irracionalista, dando origem a um “frankenstein” discursivo, subteórico. A “escola sem partido”, como escola neutra, sem ideologia, significa sem ideologia de esquerda (porque a ideologia burguesa está presente por toda parte, inclusive na perspectiva de quem propõe a lei). A ausência absoluta de ideologia na prática educativa é uma exigência absurda, por duas razões: 1) há tantas ideologias orientando e produzindo teoria científica quantos são os interesses sociais distintos competindo por seu significado e apropriação – ocorre que no que se refere ao sentido do desenvolvimento teórico da maior parte das ciências naturais, há um consenso estrutural, nas ciências sociais, não, daí a intensidade maior da controvérsia científica, ainda que tendo a realidade objetiva, sempre, por fundamento útlimo; 2) para o educador, a ciência (que já é ideológica, em si) torna-se meio de uma prática específica – a prática educativa – que é uma mediação propriamente ideológica justamente ao ser técnica, porque o educador é mais profundamente “ideológico” ao fomentar uma concepção científica, secular e realista da natureza e da história do que ao fazer qualquer proselitismo político. Impressionante, no entanto, é o cinismo ou a incapacidade dos censores educacionais para perceberem que as escolas e universidades são, hoje, como foram no passado, constituídas por uma maioria de educadores conservadores ou despolitizados. A “hegemonia marxista” na educação – apresentada como fato a combater – é menos que um mito, é uma mentira grosseira.

Em última análise, a lei da mordaça constitui um ataque frontal ao direito do povo a uma educação de qualidade. Sem mencionar a violência que representa contra profissionais do ensino de todo o país. É um ataque contra o pensamento científico, o princípio da laicidade estatal e educativa e contra a própria figura do educador. A campanha de propaganda tóxica dos partidários da “escola sem partido” representa sistematicamente o professor e a professora como delinquentes, da estatura dos molestadores de crianças. Essa corja fascista estimula a mobilização violenta de estudantes e familiares contra seus professores “assediadores”. As gangues formadas por alunos e parentes, organizadas e mobilizadas pelo governo do Rio de Janeiro, para confrontar fisicamente as ocupações de escolas estaduais, que questionavam a asfixia financeira contra o setor, são um sinal de qual poderá ser o método a vir a ser utilizado pela classe dominante para disputar o terreno das escolas e universidades públicas nesse momento de crise e instabilidade.

Nesse cenário, é preciso que os educadores e estudantes e todos aqueles comprometidos com a causa da educação e, sobretudo, da educação pública, saibam afirmar que a escola e a universidade são espaços de formação humana, não de mero treinamento de mão-de-obra. Há um imenso patrimônio de saberes que herdamos, como civilização, e temos o dever de transmitir, enriquecido, às próximas gerações. Há uma humanidade histórica e social a promover em cada ser humano e a educação sistemática é um meio decisivo para realização dessa tarefa, através da mediação do conhecimento científico, da experimentação estética, da ação dos educadores e da coletividade escolar. É preciso assegurar à educação institucionalizada a tarefa de se comprometer com a promoção de uma efetiva autonomia intelectual, ética e política de todos. O que apenas é possível através da superação crítica permanente do senso comum, pela qual o sujeito cai em seu próprio campo de visão, quando se apropria das determinações que constituem o mundo natural e social do qual faz parte e do qual é feito. Para tanto, a educação não pode ser neutra, precisa tomar partido: o partido da igualdade essencial de todos, em direitos, deveres, dignidade e oportunidades, na garantia inalienável e universal à diferença.

As escolas e universidades públicas devem ser defendidas como instituições estratégicas na qualificação da cidadania e da força de trabalho para o desafio, que segue pendente, de concluirmos nossa integração como sociedade nacional em uma democracia autêntica e substantiva. As instituições educativas devem operar como fábricas de produção do futuro, não como engenhos para reproduzir o presente ou regredir ao passado. Precisam estar sistematicamente em luta contra as tendências conservadoras que bloqueiam a emergência do novo. A juventude precisa fazer a escola e a universidade, fazendo-se nelas, afirmando seu protagonismo futuro no presente. A escola e a universidade precisam contrariar as velhas “convicções e valores”, cujo ativismo representa sempre o passado querendo engolir o futuro. A educação precisa estar conscientemente em luta pela verdade e na crítica à mídia empresarial oligopolista e ao fundamentalismo religioso: as poderosas forças de doutrinação por trás dos partidários da “escola sem partido”. Não é possível qualquer avanço progressivo, no sentido de uma democracia digna desse nome, sob a tirania ideológica desses dois aparatos. A mídia oligopolista é inimiga da pluralidade e a igreja fundamentalista é inimiga da razão e da inteligência.

A educação precisa estar ligada ativamente às lutas e processos que rompem as barreiras do possível, impostas pelos interesses dos de sempre. Precisa se fazer território democrático, laboratório de democracia, posto avançado da luta da maioria. Para promover igualdade, precisa de liberdade, contra a qual se erguem os da “escola sem partido”, revelando sua funcionalidade ao que há de mais atrasado e nocivo. A escola precarizada, rebelada, ocupada é a escola que querem amordaçar. É a escola dos mais pobres, dos que dela dependem mais, para mais fins. Querem desmontar a escola pública e fazê-la morrer em silêncio, sem causar alarde. Não conseguirão, a cada dia a resistência aumenta, mais setores se articulam e denunciam a sinistra trama. A extrema direita ataca, mas está sobre terreno movediço. Não pode golpear tanto, nem pode se apoiar tão firmemente. De nossa parte, a tarefa é somar forças, multiplicar as vozes e tomar as ruas, redes e palácios em defesa da educação pública, gratuita, democrática, laica e emancipatória, contra a censura do sucateamento e da lei da mordaça. Não aceitaremos temer, porque como dizia Marighella, não temos tempo para tal e não é racional renunciar a ser livre. Ousamos lutar e ousaremos vencer.

Artigo originalmente publicado em 21 de julho de 2016. Fonte: https://esquerdasocialista.com.br/escola-sem-partido-censurar-escola-criminalizar-o-ensino/?fbclid=iwar1p9riaiivv_lhuwvm_jg5nknzhsver44k4wb1ulvzg5yomjrj2mlmivym


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