Braudel analisa Caio Prado Jr.

Historiador francês analisa as obras Formação do Brasil Contemporâneo e História Econômica do Brasil.

Fernand Braudel 23 nov 2018, 17:37

Caio Prado Júnior nos oferece dois excelentes livros sobre o Brasil. Um deles constitui a melhor história econômica de que dispomos sobre seu país; o outro é o início de uma obra que se anuncia -e que esperamos monumental- sobre o Brasil de hoje. Dois livros, dois esboços, dois percursos diferentes, de calibres igualmente distintos, mas no mesmo tom. Cabe indagar: no mesmo tom científico?

Inspirados na “dialética materialista” e com um vigor singular, acentuam os “processos” da história. Poderíamos dizer, as correntes e os fluxos da vida em que o passado não cessa de inflar e de alimentar o instável e efêmero presente. Correto, toda história implica uma filosofia, conforme esclarece nosso autor no vigoroso prefácio de “História Econômica do Brasil”. Quanto a isso, não procuraríamos desavenças. Não há paisagem, nem história, sem posto de observação. Isso vale tanto -se não mais- para nossas incertas ciências humanas, quanto para as ciências da natureza. Trata-se, rigorosamente, de considerar a posição do observador.

Perdoem-nos esses alertas, não há razão para desenvolvê-las aqui nos “Annales”. Desnecessário afirmar o que há de justo, forte e eficaz na dialética materialista aplicada à história; graças a ela, o manto da nossa disciplina foi iluminado. Isto é uma verdade trivial. Não é preciso lembrar quanto, nos “Annales”, temos combatido pró e contra esses esclarecimentos, às vezes úteis e novos, mas também terrivelmente deformadores quando realizados sem a devida atenção.

Em todo caso, se o debate teve que ser reaberto, não vamos dispensar apressadamente dois livros vigilantes, repletos de méritos e cheios de riquezas. Uma crítica, que seria também a defesa dos nossos pontos de vista, revelar-se-ia tremendamente infeliz.

Apesar da prévia opção filosófica, Caio Prado é, para bem e para mal, um historiador nato. Trata-se de um observador habituado a checar as fontes, a confrontar a relação entre os fatos, a avançar com prudência e, principalmente, atento à vida múltipla dos homens, que confunde os teóricos, sempre caprichosos, mesmo em relação às causas mais profundas e determinadas…

Nesses livros, que ninguém se deixe enganar pelo tom voluntariamente despojado de paixão exterior, de poesia fácil e pitoresca. Mal-disfarçados, deixam entrever uma violenta paixão pelo imenso país, do qual estudam a infância e adolescência, com aguda inquietação pela verdade, inteligência e honestidade -que ainda é a melhor maneira de amar os homens, onde quer que estejam. Compreender o Brasil, decifrar suas origens, diagnosticar seus males de maneira científica, válida, distante das vias fáceis e incertas do ensaio, das veredas da pura poesia, das instituições… Logo se verá, se não agora (ninguém é profeta em seu país), que tais livros tendem a germinar, tomando assento na linhagem das grandes e belas obras nas quais o Brasil busca descobrir sua verdadeira face, desde Euclides da Cunha até Paulo Prado e Gilberto Freyre. Sinal de novos tempos: nessa explicação nacional, sempre reiniciada, os historiadores substituíram os poetas, filósofos e ensaístas. Deixemos de lamúrias.

Foi para o ativo Fondo de Cultura Económica do México que Caio Prado escreveu -primeiro em espanhol- esta história econômica do Brasil a que nos referimos na edição em português. Ela se apresenta sob a forma de um livro claro, rápido, de 300 e tantas páginas, em que forçosa e deliberadamente os fatos do passado são expostos em grandes linhas. O autor, que não aprecia painéis, narrativas rebuscadas e quadros construídos de cima para baixo, é bastante feliz em seus sucintos resumos, nos quais o importante é destacado com precisão e dito com vigor.

Oito capítulos cronológicos conduzem o leitor do princípio do século 16 aos tempos atuais: “Preliminares (1500-1530)”; “A Ocupação Efetiva (1530-1640)”; “Expansão Colonial (1640-1770)”; “Apogeu da Colônia (1770-1808)”; “A Era do Liberalismo (1808-1850)”; “O Império Escravocrata e a Aurora Burguesa (1850-1889)”; “A República Burguesa (1889-1930)”; “A Crise de um Sistema (1930 até hoje)”. Nota-se rapidamente que Caio Prado não conferiu aos capítulos, todos com enfoques excelentes, os supostos títulos sobre o pau-brasil, o açúcar, a pecuária, o ouro, o café, a borracha, o algodão… Esses títulos são reveladores.

A história econômica não é para Caio Prado um campo fechado, mas uma história interligada, mesclada e intimamente vinculada à vida política e à evolução social. Não será aqui, nos “Annales”, que protestaremos. Imagino que outro historiador marxista não hesitaria em decompor, em uma parte, a massa viva da história do Brasil, reservando o etéreo em suas formas diversas para a introdução (e seria necessário comentar tais introduções…).

Poder-se-ia afirmar que a novidade reside no estudo do último século, de 1850 aos nossos dias, ou ainda no mais de meio século que vai da revolução de 1889 e da queda do Império de d. Pedro 2º até hoje? Esse penúltimo capítulo do livro se subdivide em cinco tópicos, sucessivamente: o apogeu de um sistema (advento de uma burguesia de negócios, triunfo do capitalismo estrangeiro e consolidação de uma corrente de exportação de produtos primários); uma crise de transição (entendida, principalmente, como a crise financeira que é a consequência crônica do sistema, oscilações no câmbio, quase bancarrota, consolidação do enorme montante da dívida externa); expansão e crise da produção agrícola (um destacado estudo sobre o comércio do café); a industrialização; o imperialismo (esse título, sem epítetos, parece-me muito discutível, mas…).

Todas essas questões mereceriam um exame cuidadoso que não podemos desenvolver aqui. Seria desejável que uma tradução francesa colocasse essas riquezas ao alcance de nossos leitores, professores, especialistas e do público esclarecido da política e dos negócios. Insurjo-me contra qualquer explicação da indústria brasileira que, como indica Caio Prado, não considere suas curiosas origens. Mais do que um nacionalismo econômico, não foi a instável política alfandegária que originou uma indústria artificial, sem perspectiva de conjunto e que ainda se ressente do passado?

Na verdade, o que a análise dessas descrições densas e inovadoras revela é a atenção do autor ao conjunto da paisagem histórica (uma vez que o Brasil menos conhecido é o de ontem e o de hoje, deformado ano após ano pelos desconcertantes e ininterruptos fogos de artifício das inovações econômicas e humanas). Isso o leitor percebe nos demais capítulos do livro, bem como a clareza, a sutileza das análises e explicações. Exemplo: em 1889, há cem anos de distância, a revolução brasileira segue a grande Revolução Francesa. Simples acidente, dirão alguns; apenas um golpe militar, com a participação de alguns civis, afirmarão outros. O povo brasileiro permaneceu inerte, bestializado, na expressão de um dos fundadores da República, “sem consciência alguma do que se passava”. Simples acidente.

Entretanto, com ele tudo muda na história do imenso país. Completa-se uma evolução lentamente preparada. Sob o impacto das novas águas, rompem-se todos os diques (incontáveis) do conservantismo imperial. Assim, o militar é introduzido na cena política, por anos a fio. Melhor e mais característico da nova época são os homens de negócios, alçados pela República a uma posição dominante, cheios de importância. O Império, entendido aqui não apenas o regime político, mas a sociedade imperial, a atmosfera da vida brasileira, sempre lhes fora contrário. Mauá, esse extraordinário corretor de negócios, por quem Henri Hauser tem tanto interesse, foi posto no índex do Império… Outros tempos, outros hábitos: nos primeiros anos da República, até mesmo os áulicos do Império lançaram-se às especulações e empreendimentos. Vê-se com esse exemplo, rapidamente tratado, mas suficientemente esclarecedor, que Caio Prado sabe observar, ponderar suas explicações -e que, embora tão distante de nós, segue a mesma trilha dos “Annales”.

Supõem-se que tenha algumas restrições. Elas derivam de divergências no enfoque inicial. Aquilo que um brasileiro -penso em Gilberto Freyre- entrevê como tendência a explicar a história do Brasil de dentro para fora (e é seu direito e mesmo dever), imputando-lhe maior responsabilidade por seu destino do que teve realmente. Cada parte do planeta reflete a história do mundo todo, sofre-a, acomodando-se a ela. Por mais atento que Caio Prado esteja à vida desse vasto conjunto, à intervenção dos grandes trustes bancários, por exemplo, limita-se muitas vezes ao horizonte brasileiro. Esse, de tão amplo, torna-se uma prisão para o historiador. Por que Caio Prado não dá maior atenção à história do Atlântico Sul? Para o Brasil, o oceano não é o instrumento de sua ligação com o mundo? Acredito, como ele, que a uma economia brasileira, feita pelo homem brasileiro, se opõe dramaticamente uma economia imposta de fora, inumana, ligada ao “imperialismo” mundial. Essa distinção ilumina uma série de pontos e fatos notáveis. Afinal, o Brasil não está condenado a abrir-se para o mundo, como todas as partes do globo?

A organização do livro merece algumas ressalvas. Tendo seguido um caminho cronológico, Caio Prado não foi levado a acentuar antes a mudança, em detrimento daquilo que persiste? Assim, para falar como Gaston Roupnel, mais do que uma história estrutural, nos é oferecida uma história conjuntural.

E ainda mais: por inclinação, e também por hábito, Caio Prado, salvo engano, crê antes na história, nas realidades vivas da relação das coisas entre si, do que nas coisas mesmas. Procura, por instinto, os cruzamentos e as fronteiras, a maneira como a história econômica reencontra a política e a vida social, mesmo que comprometa o desenvolvimento claro da argumentação. Também esteve pouco atento ao problema dos preços, abordado obliquamente, sem ocupar-se devidamente com as crises cíclicas e intercíclicas, sempre presentes na matéria econômica e humana do Brasil. Nesses domínios, o grande livro de C. E. Labrousse, intelectualmente tão revolucionário, não teve tempo de despertar curiosidades e reações do outro lado do Atlântico.
Haveria muito a dizer sobre esta magnífica análise do Brasil contemporâneo, da qual Caio Prado nos deu o primeiro volume. Considero o livro mais rico e aberto do que o estudo de história econômica. Mas o que Caio Prado nos oferece é apenas uma introdução; um balanço do Brasil colonial, do qual o país é o filho legítimo, um e outro, diz, não emancipados. É em nome dessa herança viva, mesmo quando transformada, que este primeiro volume, dedicado à atualidade, inicia um balanço amplo, minucioso e inteligente dos três primeiros séculos europeus do Brasil.

Voltam-se as costas para a atualidade, mas para melhor apreendê-la. A matéria viva do Brasil atual é uma sucessão de transformações. Contudo ainda não encontrou os marcos nos quais se amalgamar de forma minimamente durável: “Sente-se a presença de uma realidade já muito antiga que até nos admira de aí achar e que não é senão aquele passado colonial”. Daí a necessidade de estabelecer construtivamente um marco, no início do século 19, mas não apenas para oferecer um quadro da história. O autor, repito, não aprecia essas histórias imóveis, dissociadas do tempo, cronologias superficiais e, portanto, inconsistentes e irreais. Para ele a história é movimento, agitação, hidrografia viva. O início do século 19, em que tudo se precipita, não é apenas a topografia das partes visíveis. É também o manancial de onde partem os veios d’água e os rios, toda essa ebulição da vida fustigada pelo tempo.

Três partes amplamente concebidas: o povoamento, a vida material, a vida social. Esses títulos revelam apenas parte do dinamismo dos estudos. Podemos afirmar seu rico conteúdo ou escolher alguns filões, algumas páginas de testemunho. Um livro como este se lê com paixão, explora-se como uma mina de fatos e de idéias. Difícil resumi-lo. Posso afirmar que o considero muito breve, apesar de sua amplitude? Apreciaria um estudo que atentasse mais para as ligações entre o homem e o meio brasileiro e que, geógrafo de formação e vocação, Caio Prado poderia e deveria escrever. Eis um grande tema, o das relações entre o homem e a terra brasileira. E, sempre na minha opinião, talvez ainda falte a esta brilhante análise um estudo sistemático da civilização, conduzido segundo as idéias inovadoras de Lucien Febvre e Marcel Mauss, para além das habituais e estéreis rotinas…

Tradução originalmente publicada na Folha de S.Paulo.


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