O que o sindicalismo brasileiro nos ensina sobre o movimento LGBT
Movimentos sociais e suas relações com as estruturais estatais em questão.
A muitos de nós, ativistas e militantes do movimento LGBT que nos engajamos duramente nos movimentos do #EleNão durante o período eleitoral e em uma campanha contra a eleição do assumido homofóbico Jair Bolsonaro à Presidência da República, nos espantou ver a notícia de que entidades e ONG’s LGBTs, dentre elas a Aliança Nacional LGBTI, reuniram-se, em tom ameno e positivo, com Damares Alves e a equipe de transição do governo Bolsonaro.
Bolsonaro e Damares são aguerridos combatentes à grande maioria das pautas defendidas pelo movimento LGBT. Damares, em especial, é uma notória e ferrenha combatente da suposta “ideologia de gênero” e chegou a afirmar que a partir de 2019 é a hora da Igreja governar o país, ou seja, um ataque direto a Constituição de 1988 que determina o Estado Brasileiro como um Estado Laico.
Nesse contexto o espanto não é com o fato de ter ocorrido essa reunião. É recorrente que negociações entre partes desiguais e opostas aconteçam até para que se possa sentir qual a perspectiva de ataques à comunidade e para que se possa, fundamentalmente, medir a correlação de forças e apresentar o poder de pressão do movimento para com o oponente. Mas não parece que esse foi o tom da reunião. Ao que indicam as declarações de Damares e Toni Reis (líder da Aliança Nacional LGBTI) não se tratou de uma reunião onde o movimento LGBT apresentou suas divergências com as posturas do futuro presidente e as declarações de sua equipe de transição em uma postura de ultimato do movimento LGBT para que o futuro governo não tenha a ousadia de avançar sobre os duramente conquistados direitos adquiridos pela comunidade LGBT nas últimas décadas. O tom ameno, de diálogo e de respeito imperou na reunião.
Segundo as declarações, de uma perspectiva diretamente política, o que sobraram foram compromissos vagos, indefinidos, e de múltiplas interpretações. Como o próprio Toni Reis elencou: “Imperou o diálogo e os princípios de direito natural de preservação da vida, direito humano à dignidade e ao respeito, da administração pública como legalidade e impessoalidade, não ao bullying, não a violência, não ao assassinato de pessoas LGBTIs”. Ao que tudo indica foi uma reunião para se debater princípios. Mas não é de princípios que vive a comunidade LGBT. Nós necessitamos de políticas públicas que avancem sobre as necessidades mais urgentes da comunidade LGBT do país que mais nos mata no mundo. Que política teremos de combate à violência LGBTfóbica? Qual a estratégia, em termos de segurança pública, para combater esses assassinatos? Qual o compromisso da dupla Damares-Bolsonaro com a descriminalização das drogas, já que a guerra às drogas é o motivo mais latente do encarceramento de LGBTs vulneráveis? Qual o compromisso e as perspectivas políticas da equipe de transição em relação a saúde física e mental da população LGBT? Quais serão as políticas públicas para que se combata a segregação, o assédio, e a precarização do trabalho da comunidade LGBT?
Muitas perguntas pra um vazio de respostas. Um vazio ainda mais doloroso porque o que se avizinha no governo de Damares e Bolsonaro não é apenas a estagnação das já insuficientes políticas públicas voltadas a nossa comunidade, mas uma série de retrocessos. Algumas delas já são possíveis, inclusive, de se especular.
Primeiramente, já foi dito pelo futuro ministro da saúde de Bolsonaro, Luís Henrique Mandetta – investigado por fraude em licitação, tráfico de influência e caixa dois na implementação de um sistema de prontuário eletrônico enquanto era Secretário de Saúde da capital sul mato-grossense – , que a política de HIV/Aids do SUS, que é referência mundial, seria revista já que, nas palavras do investigado, “houve uma banalização da doença. E aceitamos isso como se fosse uma coisa natural. ‘Ah, deixa, vamos comprar remédios para todo mundo’. Precisa dosar melhor.”. Um verdadeiro ultraje! Outra pauta que com certeza será prioridade para o governo e sua base parlamentar é a aprovação da Escola Com Mordaça (apelidada pelo seus defensores como Escola Sem Partido), que elimina, entre outras coisas, a possibilidade de que se possa se debater com as próximas gerações o respeito para com a diversidade sexual e de gênero. Outro ataque que com certeza acontecerá durante o próximo governo, que já vinha acontecendo em menor escala, é o ataque a auto organização das Paradas LGBTs no país todo não apenas pelo governo federal, mas também por seus fiéis escudeiros nos estados como Witzel, Dória e Zema. Sem falar na possibilidade de restrição ao casamento igualitário e aos direitos à identidade da população T. Sobre todos esses pontos, nem Damares, nem Toni Reis, fizeram declaração alguma, depois da reunião.
Não à toa o que se tirou de mais concreto dessa reunião entre as entidades e a equipe de transição são medidas relativas à manutenção das estruturas administrativas voltadas às entidades LGBTs. Ao que parece daí vem o otimismo das entidades LGBTs que participaram dessa reunião. Algo preocupante e, ao mesmo tempo, previsível, tendo em vista a forma como se consolidou esse tipo de movimento LGBT no Brasil, ligado umbilicalmente ao Estado, por meio de financiamento estatal e espaço em estruturas governamentais.
O movimento LGBT não é o único que se consolidou no Brasil com relação direta com as estruturas de Estado. O sindicalismo brasileiro também se construiu assim, e as análises sobre os efeitos dessa relação Estado/sindicato podem nos ajudar a compreender os motivos de fundo para essa postura dessas entidades LGBTs frente a essa conjuntura política. Nesse momento, vamos fazer uma digressão e entender, a partir da leitura do professor do departamento de Ciência Política da UNICAMP, Armando Boito Jr., quais os efeitos da estrutura sindical para a luta dos trabalhadores, para que, depois, possamos esboçar qual postura, método e tradição, nós defendemos para o movimento LGBT, em um contexto de um neofascista, LGBTfóbico e fundamentalista religioso no poder.
Armando Boito Jr. e os efeitos da relação do sindicalismo com as estruturas do Estado
Em seu livro, publicado em 1991, chamado “O sindicalismo de Estado no Brasil: uma análise crítica da estrutura sindical”, Armando Boito Jr. desenvolve uma crítica bastante dura em relação aos efeitos da estrutura sindical brasileira. Tal estrutura, por meio da unicidade sindical (que impõe que para cada categoria regional tenha apenas um sindicato que a represente), da outorga (que dá ao Estado o monopólio da distribuição das cartas sindicais), do Imposto Sindical obrigatório (que faz com que o financiamento dos sindicatos seja compulsório, mediado pelo Estado e independente do número de associados de cada sindicato), entre outros mecanismos, faz com que o sindicato oficial no Brasil seja parte da estrutura estatal. Para Boito Jr, o sindicalismo de Estado (tipo específico de sindicalismo realizado aqui no Brasil, com inspiração no sindicalismo da Itália fascista de Mussolini), que faz dos sindicatos meros apêndices do Estado burguês, seria não apenas ineficaz, como deletério a luta dos trabalhadores. Boito Jr. é categórico na tese que defende. Para ele o sindicalismo de Estado tem por função manter o movimento sindical sob a direção política da burguesia. Para tal o sindicalismo de Estado (através de sua estrutura sindical e de sua ideologia da legalidade) cumpre dois papéis: a) Separar a luta reivindicativa dos trabalhadores da luta pela transformação revolucionária da sociedade, o que implica em subordinar a luta sindical à manutenção do modo de produção capitalista; e b) Enfraquecer e desorganizar profundamente essa mesma luta reivindicativa dos trabalhadores.
Esse papel que cumpre o sindicalismo brasileiro não é, para Boito Jr., uma característica do sindicalismo como um todo, como pregam algumas vertentes do pensamento social. O autor retoma teses de Marx e Lenin que revelam o valor político da intervenção das associações operárias, de poder, através da luta reivindicativa, irromper cenários de crise revolucionária nos países. No entanto esse valor político só é válido quando essas associações são ferramentas operárias independentes da classe burguesa ou dos Estados de classe, e esse é o ponto que degenera a estrutura sindical brasileira que acopla os sindicatos ao Estado burguês. Nesse sentido existe, nas palavras de Boito Jr, uma invariante estrutural no sindicalismo de Estado brasileiro, que, em qualquer cenário, produz efeitos de desorganização da luta dos trabalhadores. Esse modelo de sindicalismo provoca uma relação frouxa e inorgânica entre trabalhador e sindicato. Essa estrutura e a ideologia da legalidade desviam o movimento sindical do trabalho de base nos locais de trabalho. A unicidade e o imposto sindical obrigatório desviam o sindicato de Estado da luta pela ampliação e organização de seus associados. O autor afirma, contudo, que esses dispositivos legais só são eficazes porque estão associados ao legalismo sindical, enquanto ideologia.
Outra maneira de intervenção do aparelho de Estado nos rumos e na correlação de forças do movimento sindical vem com o monopólio da outorga dos sindicatos pelo Estado. Isso faz com que a liberação de cartas sindicais para sindicatos pelegos seja facilitada, enquanto se dificulta a vida de sindicatos combativos. Isso é amplamente documentado na história da formação da Força Sindical, que com apoio dos governos neoliberais e de parte da burguesia obteve para o seu grupo político, nos anos que precederam a sua formação, centenas de cartas sindicais que permitiram a Força se alçar como segunda maior central sindical brasileira. No entanto não é apenas no ato da outorga que a estrutura sindical opera o mecanismo de seleção de lideranças, já que o perfil do trabalhador que se move pelo tipo de ação do sindicato oficial (como prestador de serviços) é um perfil de retaguarda. Nesse sentido a estrutura sindical além de selecionar lideranças, também seleciona uma base social para esse modelo de sindicalismo. Além disso o Estado se dispõe de mais dois mecanismos presentes na estrutura sindical para dar cabo a tarefa de selecionar lideranças: a destituição de diretorias sindicais eleitas; e a tutela da Justiça do Trabalho sobre a ação reivindicativa. Dessa forma o Estado, por meio dos mecanismos legais previstos na estrutura sindical, consegue promover as correntes sindicais pelegas e combater as correntes sindicais combativas.
Isso faz com que Boito Jr chegue a afirmar que “o sindicalismo de Estado é governista ou reboquista e defensivo” (1991, p.263). A conclusão que o autor faz desse processo é a de que o aparelho sindical cria uma espécie de ciclo vicioso onde os trabalhadores, por conta do aparelho de Estado, deixam de confiar na sua própria capacidade de organização, e por conta dessa não confiança na sua capacidade de mobilização coletiva e no poder de pressão dos trabalhadores, confiam ao Estado a tutela do movimento sindical. Isso mostra que a estrutura sindical produz uma relação muito mais complexa do que meramente uma relação unilateral do Estado controlando os trabalhadores. É produzida, também, uma relação dos trabalhadores consigo mesmos, desmobilizando objetiva e subjetivamente a luta desses trabalhadores, disseminando uma ideologia que funciona como uma espécie de governamentalidade, para usar um termo de Michel Foucault, legalista. Nas palavras do autor: “O sindicalismo de Estado reproduz, ao reproduzir a impotência, as condições de sua própria reprodução: o legalismo de sindicalistas que não acreditam nas suas próprias forças e temem a liberdade sindical.” (1991, p.289).
O que o movimento LGBT tem a ver com isso?
Assim como o sindicalismo de Estado, em menor grau de controle e menor complexidade de estruturas, o movimento LGBT também teve um caminhar de adesão às estruturas do Estado. Mas não foi sempre assim. Em seu início, nas décadas de 70 e 80, o movimento LGBT brasileiro nasceu bastante combativo, aliando-se às lutas da esquerda de forma mais geral, tanto que as primeiras marchas pelos direitos civis LGBTs no país tiveram a presença e solidariedade das principais centrais operárias combativas do país. Também nessa época o então “movimento homossexual” foi parte ativa da fundação do PT, à época um partido comprometido com as causas dos mais pobres e com a construção de um horizonte socialista no país.
Com o advento do auge da epidemia de HIV/Aids no fim da década de 80 e início da década de 90 o movimento LGBT mudou drasticamente sua forma de organização e atuação. De um movimento independente, mais politizado e comprometido com causas mais amplas, o movimento caminhou para uma institucionalização, passou a funcionar fundamentalmente a partir de ONGs e associações financiadas por verbas estatais, espaços em secretarias, governos e mandatos parlamentares, além de uma relação com o mercado, com uma política mais corporativista, centrada em pautas específicas, com pouca ou nenhuma relação com a luta política mais global.
A partir desse ponto a relação com a estrutura sindical é bastante nítida: com o atrelamento das entidades de representação LGBT às estruturas do Estado, separa-se a luta política por uma transformação mais global da sociedade e a luta reivindicativa mais específica das LGBTs. Isso não apenas torna a luta LGBT dócil ao modo de produção capitalista (ainda mais quando surge a estratégia do pink money, e da ideia de emancipação por meio do consumo), como enfraqueceu as reivindicações históricas do movimento LGBT brasileiro. E isso não é mera implicância. Nós somos um país que nunca aprovou sequer uma lei no Congresso Nacional para a comunidade LGBT e os poucos avanços que tivemos foram conquistas de pareceres – frágeis – perante ao poder judiciário (CNJ, STF, etc), sendo que essas entidades LGBTs estiveram presentes nas mais variadas bases de governos de partidos da ordem, de PT a PSDB. Essa sequência de derrotas históricas e avanços que a qualquer momento podem se desmanchar no ar é o legado das últimas décadas desse movimento LGBT institucional e corporativista. Nesse sentido a conclusão de Boito Jr para o movimento sindical é absolutamente válida para esse tipo de movimento LGBT: são ou governistas (como foram durante os 13 anos de governo petistas em conciliação com os conservadores e fundamentalistas) ou defensivos e reboquistas (como parece se desenhar a relação com o futuro governo Bolsonaro, sob direção desses mesmos conservadores e fundamentalistas).
Esse cenário se agrava ainda mais no contexto do governo fundamentalista da dupla Bolsonaro/Damares. Retrocessos e ataques a nossa comunidade são iminentes. No entanto essa sinalização da equipe de transição de reunir-se com essas entidades dá a entender que, de uma certa forma o governo identifica no movimento LGBT uma pedra no seu sapato, e, dado que a grande prioridade da equipe de transição parece ser aprovar a reforma da previdência nos cem primeiros dias do governo, Damares parece querer apaziguar quaisquer outros conflitos que podem atravancar o andamento das pautas bomba. E nesse sentido a postura reboquista e subserviente de Toni Reis e da Aliança Nacional LGBTI parece ser bastante útil aos objetivos da equipe de transição.
O que queremos demonstrar aqui é que essas entidades não tomam essas atitudes por um déficit moral, mas sim porque dependem da estrutura do Estado para sua própria sobrevivência, e, além disso, acreditam não ser possível conquistar mudanças sem ser pela via da institucionalidade e da conciliação, já que essa ideologia legalista, assim como na estrutura sindical, faz com que as LGBTs desacreditem na própria capacidade de auto organização da comunidade, e na força que essa organização possui. Assim sendo, invertem-se os papéis: O movimento, que deveria apresentar seu poder de pressão e colocar o governo contra a parede, fica refém das estruturas do Estado e do poder de pressão de qualquer governo sobre sua autonomia, e. portanto, passa a ficar a reboque desse governo.
Da nossa parte acreditamos que esse tipo de organização, mais do que nunca, precisa ser superada pelo conjunto do movimento LGBT. Não apenas porque para nós LGBTs revolucionárias não é suficiente a luta reivindicativa sem estar atrelada a uma luta por uma sociedade igualitária sem qualquer tipo de opressão. Mas também, porque nessa transição autoritária de regime, a luta reivindicativa dentro das estruturas do Estado, que antes já era insuficiente, não tem a menor capacidade de barrar os iminentes retrocessos e ataques à comunidade LGBT, que se expressam já com urgência nas pautas do Escola Com Mordaça e da mudança da política de HIV/Aids do SUS.
Precisamos nos organizar por fora dessas velhas estruturas, em um movimento LGBT forte, combativo, com um programa bem definido e, fundamentalmente, independente das estruturas do Estado. A opção pela redução de danos por meio da conciliação reboquista adotada por Toni Reis e pela Aliança Nacional LGBTI, não apenas é insuficiente, mas desarma as possibilidades de construção de um movimento que impeça os retrocessos no governo Bolsonaro. Mais do que nunca, é hora de virarmos a chave e darmos um giro de 180º. Um Stonewall brasileiro tem que estar na ordem do dia.
Fontes: http://www.guiagaysaopaulo.com.br/noticias/cidadania/damares-recebe-ativistas-lgbt-e-prom ete-lutar-pelo-segmento
http://www.guiagaysaopaulo.com.br/noticias/cidadania/nova-ministra-de-dh-damares-cre-em -combate-a-homofobia-sem-escola
https://drauziovarella.uol.com.br/infectologia/os-avancos-e-o-futuro-do-programa-de-hiv-aids -no-brasil/
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BOITO JÚNIOR, Armando. O sindicalismo de Estado no Brasil: uma análise crítica da estrutura sindical. 1991.