70 anos lendo “O Segundo Sexo”

O livro é uma contribuição indispensável para pensar o feminismo do último terço do século XX.

Laia Facet 16 jan 2019, 18:31

Neste  2019 se celebram 70 anos da publicação de um dos livros centrais do feminismo: “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir. Um livro que, publicado em 1949, trouxe consigo muita polêmica à esquerda e direita, muita cumplicidade durante décadas entre várias gerações de mulheres e sem dúvida uma contribuição indispensável para pensar o feminismo do último terço do século XX. É impossível num artigo fazer uma reflexão exaustiva em torno deste livro, tanto sobre o que contém como sobre os debates que tem gerado ao longo destas sete décadas. Por isso, o objetivo deste artigo, além de uma comemoração do livro, é o de recuperar somente algumas das reflexões à luz do novo ciclo de mobilizações que vivemos hoje. 

A mulher “não se libera do homem porque tem em suas mãos uma cédula de voto”

Em 1949, quando se publicou O Segundo Sexo, muitos dos países europeu já haviam introduzido o sufrágio das mulheres. A reclamação central do sufragismo via-se realizada com suas potencialidades, mas também com seus limites: apesar do ao voto, a libertação das mulheres não se consumava, se mantinha a desigualdade social, econômica, laboral, política… por motivos de gênero. Escreverá Beauvoir na última parte de “O Segundo Sexo”: “O código francês já não considera a obediência um dos deveres da esposa e cada cidadania se tornou numa eleitora (…), não se libera do homem porque tem uma cédula de voto” 1/. E de fato a própria Virginia Woolf quando pôs no centro a questão da renda para as mulheres também discutia com os limites do direito a voto. 

No entanto, não somente discutiria com o final do sufragismo europeu, também com a história do movimento operário do qual, apesar das exclusões e dificuldades, participaram milhões de mulheres. Sobre isso poderiam ser escritas milhares de páginas, mas para a questão que aqui nos interessa resgato as seguintes linhas: “Não seria preciso crer que a mera justaposição do direito a votar e de uma profissão seja uma libertação perfeita: o trabalho na atualidade não é liberdade. […] acedem à independência no seio de uma classe oprimida; por outro lado, as tarefas realizadas na fábrica não as dispensa das tarefas domésticas” 2/.

Beauvoir dialoga com os dois grandes movimentos que organizaram as mulheres até seu momento: o sufragismo e o movimento operário. Por isso, podemos compreender O Segundo Sexo como um “exercício de época”, um exercício de repensar a opressão das mulheres e de que modo se seguia reproduzindo esta, no ocaso do sufragismo e depois a Revolução Russa. É esse “exercício de época” o que faz desta obra uma referência na segunda onda dos anos setenta na Europa e EUA.

Por que é importante assinalar esta questão? Em primeiro lugar, para compreender as condições de possibilidade de uma obra como esta: compreender que nem é um milagre de um gênio avançado para sua época, nem uma obra descolada de sua realidade, mas que responde às inquietudes de seu momento que um par de décadas mais tarde se massificariam no qual conhecemos como a segunda onda. Em segundo lugar, é importante historicizar O Segundo Sexo porque hoje nos encontramos num momento que talvez também esteja tocando levar a cabo esse “exercício de época”. Um momento no qual repensar tanto as chaves de nossa opressão como de nossa própria libertação depois de décadas de um neoliberalismo que hoje se encontra numa crise profunda.

“Ao ser humano somente lhe cabe dar sentido à vida”

Beauvoir escreve num momento de certa crise teórica depois da Segunda Guerra Mundial. Evidentemente, escreve desde o existencialismo francês com a vontade de rearmar um humanismo desmoralizante e com o objetivo de desmontar, por um lado, o essencialismo e por outro o determinismo. Dedicará o início de “O Segundo Sexo” a sustentar de que modo o determinismo da biologia, da psicanálise e do materialismo histórico (lembre-se, anos quarenta) dão explicações insuficientes para a opressão das mulheres. O núcleo da crítica a esse determinismo é assinalar que aquilo que entendemos por mulher é uma construção social e histórica: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”; e que portanto se pode transformar. Evidentemente, que assinale os limites dessas correntes de pensamento não significa que comece de zero e que não se apoie nelas. Pelo contrário, Beauvoir recuperara muito da psicanálise e da tradição do marxismo em suas análises. Entretanto, é essa situação de certo esgotamento teórico e a insuficiência que ela destaca nas três correntes de pensamento, que principalmente haviam tratado de explicar a condição das mulheres, a qual permite investigar por outro caminho. É outro caminho parte do existencialismo, no qual sempre se localizou Beauvoir. No entanto, décadas depois podemos sustentar que o desenvolvido n’ O Segundo Sexo supera ao próprio existencialismo francês, ainda que seja devedor do mesmo. Se há um elemento central na filosofia de Beauvoir que seja uma ponte entre seu existencialismo e o feminismo é sem dúvida a questão da liberdade.

Beauvoir, como os existencialistas congregados em torno da revista Les Temps Modernes, configurarão um existencialismo de tipo ateu. No caso de Beauvoir é uma questão que explicará sobretudo no primeiro volume de suas Memórias de uma jovem formal. De família burguesa e mãe crente, durante sua adolescência perceberá de que modo as decisões que tomou tanto em suas decisões, suas amizades, etc., não estiveram motivadas por Deus, que Deus tem deixado de ter presença em sua vida, deixou de ter uma função. Não há um destino que obedecer, não há uma vontade pré-determinada: há uma vida, uma existência, a qual um mesmo deve dar sentido. Isso tem claras implicações, em particular, para a vida das mulheres, os que tivemos que protagonizar grandes e cotidianas lutas para nos desfazer de um destino pré-estabelecido para nós, mulheres. Por outro lado, o fato de que seja o ser humano quem dê sentido à vida implica um ato de compromisso e responsabilidade.

Essa será uma questão-chave para entender a liberdade em Beauvoir: a liberdade se pratica e isso implica se resonsabilizar da própria vida. Isso não significa que Beauvoir compre o discurso liberal de que neste sistema temos liberdade de eleger, pelo contrário. Sobretudo no processo de escrever O Segundo Sexo, dar-se-à conta de que modo as mulheres – mas não só – se viram com a liberdade cerceada em praticamente todas as esferas de sua vida.

“Em que medida o fato de ser mulher afetou a nossa vida?”

Qual é a vida das mulheres? Quais liberdades não são ameaçadas? Ou como ela formulará: “Em que medida o fato de ser mulheres tem afetado a nossa vida?” 3/. As que leram O Segundo Sexo se lembrarão de páginas e páginas de anedotas, situações, experiências nas quais Beuavoir vai encenando de que modo as mulheres durante toda nossa vida nos encontramos com imposições, dogmas, mandatos,… da feminilidade dominante. Talvez hoje o chamaríamos as distintas situações em que se encontram as mulheres em sua socialização de gênero. Seguramente essa seja hoje, setenta anos depois, uma das partes mais pesadas de ler porque as situações concretas com as quais nos encontramos são distintas (ainda que menos do qual desejaríamos). No entanto, a sinceridade com a qual escreve sobre a sexualidade, sobre a maternidade, sobre a menstruação, sobre as relações… suscitou a cumplicidade de milhares de mulheres que pela primeira vez viam-se representadas, se sentiam refletidas e viam escritas as situações que elas mesmas haviam atravessado, seus mesmos dilemas, dificuldades e medos. Por óbvio, não esteve isenta de polêmica, essa mesma crítica frontal à feminilidade dominante lhe trouxe detratores de muito diverso tipo.

Como a mesma Beauvoir escreveu doze anos depois da publicação: “Tampouco aportei nenhum remédio para cada conflito particular. Pelo menos, ajudei a meus contemporâneas a tomar consciência de si mesmas e da situação” 4/. Um dos objetivos que perseguiu a literatura de Beauvoir era mostrar de que modo as mulheres lhes era imposta um destino que não haviam elegido. Uma feminilidade dominante que ela acusava, evidentemente, de atentar contra a liberdade das mulheres e que por isso, des-responsabilizava as mulheres de sua própria existência nas mãos de terceiros (pai, marido, patrão, padre,…). Esta questão não está isenta de polêmicas. Por um lado, atacou tão duro a feminilidade que chegou a ser acusada de misógina, coisa que ela mesma teve que desmentir. Sem chegar a considerá-la misógina, nem muito menos, é evidente que ao lê-la as leitoras mantemos um incômodo constante. Por outro lado, há uma tendência em O Segundo Sexo a entender o homem como o lugar ao qual devem chegar as mulheres quando se emancipem – algo que é muito próprio de todo o feminismo anterior aos anos setenta que mudaria as coordenadas de emancipação – e que em Beauvoir evoluirá.

“Através de O Segundo Sexo tomei consciência da necessidade da luta”

Na última parte, intitulada “O caminho da liberdade”, Beauvoir reflete sobre  la última parte, titulada “Hacia la liberación” Beauvoir reflexiona sobre cuál es la mujer independiente. En primer lugar, piensa en un sector de mujeres que han tenido acceso a la cultura y a ciertos trabajos cualificados, que tienen un salario suficiente y ciertas condiciones para realizarse en su trabajo y en su vida. Un sector de mujeres al que la propia Beauvoir pertenece. Pese a verlas como un sector minoritario, defiende que pueden ser el sector que prefigure esa “mujer independiente” que ella llama. Es evidente que si nos quedamos sólo con eso, queda una visión muy elitista o por lo menos estrecha de esa liberación. En una entrevista 25 años más tarde de su publicación, cuando ya había estallado el movimiento feminista de los setenta, declara:

“Ao investigar e escrever O Segundo Sexo foi quando percebi que meus privilégios resultavam de haver abdicado, em alguns aspectos cruciais pelo menos, a minha condição feminina. Se puséssemos o que estou dizendo em termos de classe, talvez seja mais fácil de compreender, eu me havia tornado uma colaboracionista de classe”. E prossegue: “Através de O Segundo Sexo tomei consciência da necessidade de luta. Compreendi que a grande maioria das mulheres simplesmente não tinha a possibilidade de escolher que eu havia tido” 5/.

Embora possa parecer algo que ela só declara 25 anos mais tarde, já nessa última parte do livro defende para as mulheres trabalhadoras: “Somente as que têm uma fé política, as que militam num sindicato, confiam no futuro e podem dar um sentido ético às ingratas fadigas cotidianas” 6/. Como dizíamos, em Beuavoir a liberdade se pratica e implica responsabilizar-se da própria existência e isso para as trabalhadoras não é uma tarefa fácil. Assim, a militância aparece como uma realização em si mesma e como uma promessa de liberdade para as que não têm escolha, que são as grande maioria das mulheres.

“Vai perder muitos amigos!”

“’Como você foi corajosa!’, disse-me Claudine Chonez, com uma admiração apiedada. ‘Corajosa?’ ‘Você vai perder muitos amigos!’” 7/. Se o processo de escrita de O Segundo Sexo foi toda uma aventura para Beauvoir, sua recepção não ficou atrás. Criticada pelo grosso dos intelectuais de esquerda, dos setores religiosos (esteve no índice de livros proibidos pela Igreja Católica), pelas mulheres do Partido Comunista Francês e pelo restante da esquerda, e inclusive por vários de seus companheiros existencialistas, definitivamente, a publicação de O Segundo Sexo desatou uma polêmica enorme. Mas também desatou a cumplicidade de milhares de mulheres numa correspondência que durou anos e que ela relata no terceiro volume autobiográfico, A força das coisas.

Por isso, a história de O Segundo Sexo é também a história de suas leitoras, sobre as quais Beuavoir declara: “Me surpreenderia e até me irritaria se aos trinta anos me tivessem dito que me ocuparia de problemas femininos e que meu público mais sério seriam mulheres. Não me arrependo. Divididas, desgarradas, inferiorizadas, para elas existem, mais que para os homens, apostas, vitórias, derrotas. Interessam-me; e me gosta mais ter através delas um alcance limitado, porém sólido, sobre o mundo, que flutuar no universal” 8/.

E a recepção aqui no Estado Espanhol? Escreve Carmen G. de la Cueva numa biografia sobre Beauvoir: “Como íamos nos aventurarmos, mulheres de nossa geração, a ler Simone de Beauvoir se nem sequer poderíamos encontrar seus livros?” 9/. A primeira edição na península data de 1988. Evidentemente, quem lia O Segundo Sexo no Estado Espanhol lia a edição argentina de 1954 que chegou aqui de maneira clandestina. Sem dúvida, um exemplo claro desse “alcance limitado, porém sólido”, e comprometido poderíamos acrescentar, das leitoras.

Setenta anos depois…

Obviamente, setenta anos depois podemos ver com grande distância O Segundo Sexo. Distâncias teóricas pelo enriquecimento tanto da teoria marxista das últimas décadas como dos feminismos; o que deve ser um motivo de celebração. Distância pelos modos com os quais se manifesta o machismo hoje, ainda que menos distantes do que desejaríamos. Porém a leitura de O Segundo Sexo segue incomodando e, seguramente por isso, segue sendo útil ler esta obra setenta anos depois.  

Dizia Virginia Woolf que as mulheres necessitávamos de uma residência própria. Talvez O Segundo Sexo é meter um espelho sem tapumes nessa residência e enfrentar-nos íntima, privada, pública e coletivamente a essa feminilidade adquirida que num primeiro momento não escolhemos. Enfrentar-nos a esse espelho para discutirmos e, evidentemente também, para discutir a própria Simone de Beauvoir.

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Notas

1/ El Segundo Sexo, Valencia, Cátedra, 2016, p. 851.

2/ Op. cit., pp.851-852.

3/ Op. cit., p.62.

4/ La fuerza de las cosas, Barcelona, Editorial Sudamericana, 1998, p. 232.

5/ Reproducción de la entrevista a Simone de Beauvoir de Fernando Gerassi, 1976

6/ El Segundo Sexo, p.852

7/ La fuerza de las cosas, p.225.

8/ Op. cit., p.232.

9/ Un paseo por la vida de Simone de Beauvoir, Carmen G. de la Cueva, Barcelona, Lumen, 2018, p. 169.


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